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Agricultura familiar no prato da merenda escolar

Professores da UFSM fazem parte de grupo de pesquisadores que identificou desafios e soluções do PNAE em estudo publicado na FAO



A merenda escolar, principal refeição do dia para milhares de estudantes brasileiros em situação de vulnerabilidade, nem sempre teve o prato cheio com ‘comida de verdade’. Ela é determinada pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que foi criado em 1955 com o nome de Campanha da Merenda Escolar e configura-se como uma das políticas públicas mais antigas do país. No entanto, o programa era centralizado e os alimentos oferecidos aos estudantes eram, em sua maioria, industrializados, enlatados e pouco nutritivos. Em 2009, com a Lei nº 11.947, veio a regulamentação da alimentação escolar, que passou a garantir produtos orgânicos e mais saudáveis para os pratos dos refeitórios escolares. A legislação obriga que um mínimo de 30% dos recursos das compras públicas da alimentação escolar sejam destinados aos produtos oriundos da agricultura familiar.

Ilustração horizontal e colorida de uma paisagem colorida em pixel art. No lado esquerdo, uma propriedade rural: em cima, uma casa de tijolos amarelo queimado com telhado de telhas vermelhas; há um caminho de chão batido que liga a casa até os quatro canteiros de tomate e cenoura. Ao lado dos canteiros, um celeiro de armazenamento em formato de cilindro, com tijolos vermelhos à vista. Na estrada, caminhonete com caçamba cinza. Na propriedade, há macieiras e laranjeiras espalhadas e ela é preenchida com grama verde clara. Ao lado direito da casa, a estrada de chão se encontra com o asfalto. Ele tem uma bifurcação: no caminho para cima, leva ao RU, e para baixo, a uma escola. O RU é um prédio de dois andares azul com detalhes em preto, cinza e branco. Do lado esquerdo dele tem um caminhão caçamba branco com alimentos: cenoura, tomate e laranja. Abaixo, a escola é marrom e bege, e tem a parede vazada na parte do refeitório: há duas mesas redondas com quatro alunos sentados. Um deles é usuário de cadeira de rodas. Ao fundo, um balcão estilo buffet, com alimentos coloridos. Atrás dele, uma mulher negra com roupas brancas. Na frente, uma estudante de cabelos compridos, de costas. Na parede, cartazes coloridos com laranja e cenoura desenhados. Ao redor do caminho, do RU e da escola, há árvores verde escuras e grama verde clara. Ao fundo, montanhas em verde musgo e céu e nuvens em azul claro.

É sobre essa lei que um grupo de pesquisadores se debruçaram: queriam analisar os aspectos positivos e as dificuldades encontradas no processo de aplicação prática. O grupo é composto por dois pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), uma pesquisadora da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), outra da Universidade Comunitária Regional de Chapecó (Unochapecó) e outro da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O resultado do estudo foi publicado em documento da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Um guarda-chuva e uma mudança

“O Programa Nacional de Alimentação Escolar, do Brasil, é referência no mundo inteiro”, diz Vanessa Ramos Kirsten, docente do Departamento de Alimentos e Nutrição no curso de Nutrição no campus da UFSM de Palmeira das Missões, e também participante da pesquisa citada. Vanessa afirma que a lei nº 11.947 faz parte de um guarda-chuva, o Programa Fome Zero, criado em 2003: “A gente tinha, à época, um governo que se preocupava muito com a segurança alimentar e nutricional e com a erradicação da fome, e havia estratégias intersetoriais para abraçar tudo isso”. Como uma das estratégias, criou-se o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que, com recursos federais, fazia compras de produtos da agricultura familiar para distribuição a populações em situação de vulnerabilidade. 

 

Outra tática foi a potencialização da alimentação escolar a partir da qualidade da comida, e também o fortalecimento econômico do lado da produção, que sofria com o aumento do êxodo rural: a agricultura familiar. O artigo 17 da lei nº 11.947 estabeleceu a obrigatoriedade de que todos os municípios usem no mínimo 30% dos recursos destinados às compras públicas da merenda escolar para alimentos da agricultura familiar, o que promoveu uma mudança estrutural no PNAE: “Essa é uma revolução que promove a melhora do cardápio”, afirma Vanessa. 

 

Com a porcentagem mínima de produtos da agricultura familiar, aumentam as chances de que estudantes tenham à disposição alimentos frescos, orgânicos, com menos agrotóxicos e menos industrializados. Além disso, dá autonomia aos municípios e permite a descentralização da gestão e da criação dos cardápios, uma vez que a legislação privilegia a produção local, os alimentos regionais e tradicionais do lugar em que a escola se encontra. A legislação ainda dá preferência aos agricultores familiares mais vulneráveis, pertencentes às comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e assentados.

 

Para Óscar Torres Figueiredo, docente no Departamento de Engenharia Florestal no campus da UFSM em Frederico Westphalen e também participante do estudo, há o intuito de aproximar os agricultores com os consumidores para fortalecer a economia local, o que representa políticas públicas a nível federal e local que são pensadas e geridas em uma escala descendente. Isso envolve um trabalho conjunto entre escolas, profissionais da Nutrição, gestores públicos, técnicos do Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, das cooperativas e dos próprios agricultores. “A comida e o alimento, neste caso, representam apenas a conclusão de esforço desde o agricultor, passando pelos gestores e que vai beneficiar o consumidor, porque a criança que vai nutrir-se com esse alimento sabe que é um alimento que vem do local, que é um alimento de qualidade”, destaca.

 

Óscar e Vanessa concordam que a iniciativa brasileira é pioneira, uma vez que vários países, principalmente da África e da América Latina, fizeram movimentos parecidos ao tentar associar as compras públicas e a agricultura familiar com a merenda escolar. Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que reuniu dados de 2001 a 2017, o programa Bolsa Família, aliado a outros programas sociais, conseguiu, em 15 anos, reduzir a pobreza em 15% e a pobreza extrema em 25%. Em 2018, o Brasil voltou ao Mapa da Fome. As desigualdades sociais se aprofundaram com a pandemia da Covid-19 e constituem, inclusive, fator de risco para a doença. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da Covid-19, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), são 19 milhões de brasileiros que convivem com a fome diariamente. Este número representa um total de 55,2% dos domicílios em insegurança alimentar e nutricional: mais da metade dos brasileiros e brasileiras passam fome. Para as crianças dessas famílias, a alimentação escolar é o principal prato do dia. “Crianças bem alimentadas têm uma capacidade cognitiva maior, então isso repercute a longo prazo na educação”, afirma Óscar. Para o engenheiro florestal, o problema da fome não é de falta de alimentos: “É falta de acesso, de capital, tanto para comprar quanto para produzir alimentos”, evidencia.

A terra que produz o alimento

“Sustentabilidade começa com o que nós colocamos no prato no dia a dia”, ressalta Óscar. O entrelaçamento entre a sustentabilidade e a terra encontra exemplo na agricultura familiar: ausência ou diminuição do uso de agrotóxicos, preservação de florestas e nascentes, diminuição do plástico no empacotamento e menor distância do transporte dos alimentos. Ao destinar recursos para a agricultura familiar, o programa garante também a sustentabilidade financeira. Óscar reitera que, a partir de 2009, pela primeira vez agricultores familiares tiveram um mercado seguro para a venda de seus produtos, o que garante possibilidades de crescimento e de investimentos na propriedade. Além disso, para o engenheiro florestal, sustentabilidade também é uma questão de ética: “Estamos falando de alimentos de verdade, que não são adulterados com químicos. Estamos dando ao corpo alimentos que ele reconhece”. A importância também está na educação alimentar dos e das estudantes: “A educação é o futuro das nossas crianças. Mas se você está dando alimento envenenado e ultraprocessado, você está destruindo o futuro delas”, argumenta Óscar.

 

Para o agricultor familiar Joceli Sidloski, que produz suco de uva orgânica e reside no interior de Frederico Westphalen, os recursos provenientes do programa são essenciais: “Se não vender para a merenda escolar, eu fecho as portas, porque é muito difícil competir com grandes empresas”, afirma. Junto com a família, é proprietário do Sucos Barril, produto orgânico e integral distribuído pela Cooperativa dos Produtores Rurais da Agricultura Familiar de Frederico Westphalen (Coopraf). Além da suco de uva, a cooperativa vende outros tipos de alimentos para a merenda escolar: verduras, legumes e frutas da época, sucos, geleias, conservas, mel, farinhas, cucas e bolachas, açúcar mascavo, mandioca, filé de peixe e produtos lácteos. A Coopraf atende toda a rede municipal de Frederico Westphalen (escolas, creches e outras entidades) e mais de 50 escolas municipais de 19 municípios da região. Para Evandro Antonello, administrador da cooperativa, a importância da destinação de recursos públicos está no desenvolvimento, no fortalecimento e na diversificação da produção, além da manutenção da família no campo.

 

Marildo Mulinari, agricultor  assentado na área do Instituto Riograndense do Arroz (Irga), em Eldorado do Sul, afirma que a merenda escolar é um dos principais nichos do Movimento Sem Terra (MST). O maior volume das compras é da cidade de São Paulo, mas as prefeituras da região metropolitana do Rio Grande do Sul também têm feito a aquisição do kit de alimentação, que inclui arroz orgânico, extrato de tomate, geleia, suco, panificados e outros alimentos. Apesar da importância do programa para o MST, Marildo denuncia que, com a ascensão de Jair Bolsonaro ao governo federal, os recursos para as compras públicas da agricultura familiar têm sido descontinuados, principalmente aqueles relativos ao PAA. 

 

Na pandemia, os cortes de investimento na compra desses produtos aumentaram: com as escolas fechadas e a ausência de merenda escolar, a alternativa foi distribuir cestas básicas para as famílias dos e das estudantes. No entanto, grande parte da composição dessas cestas era de alimentos industrializados. A volta às aulas, ainda em plena pandemia, também viu riscos na garantia da alimentação escolar. Para Marildo, mesmo com as dificuldades impostas pelo governo, o movimento teve um papel importante no combate à fome: “A reforma agrária passou a ser a solução daqueles que passam fome nas favelas. Temos distribuído milhares e milhares de toneladas de alimentos e mostrado que a reforma agrária popular pode produzir alimento em larga escala, livre de veneno e de agrotóxico, respeitando o meio ambiente e a natureza, com o ser humano e a vida acima do lucro”, enfatiza.

O prato que alimenta e educa

Arroz, feijão, ovos, leite em pó, iogurte, alface, mandioca, banana, batata-doce, beterraba, bergamota, couve, cebola, cenoura, laranja, maçã, moranga cabotiá, repolho, tempero verde, tomate, carne suína, carne moída, filé de peixe e coxa e sobrecoxa de frango. Esses alimentos oriundos da agricultura familiar compõem o prato da merenda escolar dos estudantes santa-marienses, em 80 escolas que formam a rede municipal de ensino. São 40% dos recursos para as compras públicas destinados a esses produtos. De acordo com a Assessoria de Imprensa da Secretaria de Educação do município, durante a pandemia, houve distribuição por meio da elaboração e entrega de kits de alimentos aos alunos da rede. As cestas eram compostas por alimentos perecíveis – como os da lista acima – e não perecíveis, a exemplo de farinhas, açúcar, óleo de soja, macarrão e biscoitos.

Para Óscar Figueiredo e Vanessa Kirsten, o sucesso da implementação da lei nº 11.947 se deve à pressão do governo à época. A dispensa de licitação facilita a aquisição dos produtos: a desburocratização, por meio de chamadas públicas, não exige criação de empresas por parte dos agricultores e não reduz o preço dos alimentos a um valor mínimo, o que garante que o pagamento seja justo. Entre as dificuldades, estão a adequação do cardápio à realidade local, a necessidade de que a nutricionista responsável se comunique com as cooperativas e com a Emater para saber qual a disponibilidade de alimentos, e o transporte dos mesmos, uma vez que nem sempre as famílias tinham estrutura logística para a distribuição. De acordo com números divulgados em 2020 pelo Ministério da Educação (MEC), são mais de 40 milhões de alunos atendidos pelo PNAE, em um montante de R$3,97 bilhões, que garantem cerca de 50 milhões de refeições diárias.

Em 2015, o Decreto nº 8473 estabeleceu o mesmo percentual mínimo de compras da agricultura familiar para hospitais públicos, prisões e restaurantes universitários. Vanessa Kirsten participou de outro estudo que avaliou a implementação do decreto nos RU ‘s do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Para a pesquisadora, no entanto, a execução não foi tão exitosa quanto a da merenda escolar, em função do contexto político da época e da descontinuidade de programas do tipo pelos governos subsequentes. O Restaurante Universitário da UFSM realiza compras da agricultura familiar, que atendem os três RUs do campus sede. Em 2019, último ano em que o funcionamento do RU foi integral, antes da pandemia, o investimento era de R$ 664.896. Deste valor, apenas R$ 218.486 eram oriundos do PNAE. Entre os alimentos adquiridos, estão: arroz, banana, batata-doce, bergamota, beterraba, brócolis, cenoura, cubos de pernil suíno, feijão, laranja, mandioca, maçã, moranga, repolho, tempero verde e tomate. Desde 2020, no entanto, o RU passou a ser administrado por uma empresa terceirizada e ainda não há dados sobre valores e número médio de refeições desde então. No Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), já houve compra de produtos da agricultura familiar quando a Usina de Leite da UFSM foi administrada por uma cooperativa. De acordo com a Assessoria de Imprensa do HUSM, atualmente não há aquisição de produtos do tipo.

Expediente:

Reportagem: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;

Design gráfico: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;

Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Alice dos Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária; Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário; e Ana Carolina Cipriani, acadêmica de Produção Editorial e voluntária;

Relações Públicas: Carla Costa;

Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;

Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.
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