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Comida que chega à mesa

Produção em larga escala ou ligada à agricultura familiar: dois modos distintos que são responsáveis pelo abastecimento dos alimentos que chegam até nós



Condições naturais, fatores cambiais e mesmo um longo processo histórico dão conta de definir, com o passar do tempo e também com o avanço tecnológico específico de cada lugar, que tipos de produtos um país é capaz de produzir e em que escala, segundo o que considera a Associação Brasileira de Consultoria e Assessoria em Comércio Exterior (Abracomex). O que acontece é que nem sempre cada território consegue produzir toda a diversidade de produtos de que necessita e, principalmente, em quantidade suficiente. É a partir daí que surge um processo do qual ouvimos falar constantemente no noticiário, mas que nem sempre compreendemos por completo: o comércio exterior, ou, como também é conhecido, comércio internacional.

São índices que sobem e descem, taxas específicas e expressões que nem sempre são de fácil entendimento. Apesar das complicações que parecem rodear o assunto, a explicação dada pela Abracomex pode tornar mais fácil a sua compreensão: os países não são capazes de produzir todos os produtos de que necessitam e, inseridas na lógica de mercado, as empresas buscam especialização nas atividades em que são mais competitivas. Por conta disso, gera-se um “intercâmbio” de mercadorias entre empresas de diferentes países a que denominamos “comércio exterior”.

Como a própria definição já sugere, a competitividade é fator importante a ser considerado quando falamos sobre o comércio internacional. Tratam-se, afinal, de disputas de ordem econômica – embora, não raro, somem-se também fatores políticos e mesmo culturais. Ainda que possa parecer um tema distante, as decisões tomadas nesse âmbito podem ter implicações diretas em nosso cotidiano. Falar sobre ele é, por exemplo, pensar a produção de alimentos no mundo – e as consequências que dela decorrem.

 

UMA PRODUÇÃO VOLTADA AO MERCADO EXTERNO

No comércio exterior brasileiro, os alimentos se colocam como um componente fundamental. Não é à toa que soja, café e carne bovina, por exemplo, costumam figurar entre os produtos mais exportados pelo país. Embora ao longo das últimas décadas esse processo tenha se intensificado, ele não é uma novidade, como aponta o professor do Departamento de Economia da UFSM Paulo Feistel, que tem desenvolvido seus estudos nessa área, focando, sobretudo, nas especificidades do nosso país.

Para explicar a relação comercial do Brasil com outros países, Feistel recorre ao passado. Ele explica que, historicamente, as nossas exportações foram feitas a partir de commodities, ou seja, bens que ainda estão em estado bruto ou ainda produtos primários. É o caso, por exemplo, de legumes, cereais e alguns metais. O que as torna tão importantes é que, apesar de se tratarem de mercadorias primárias ou com baixo nível de industrialização, suas possibilidades de negociação são variadas, considerando justamente sua característica de serem pouco industrializadas. Além disso, como costuma seguir um padrão, o preço das commodities é, em geral, negociado na Bolsa de Valores Internacionais, e está sujeito a fatores que determinam sua valorização ou queda, como é o caso da oferta e da demanda. Olhar para o passado brasileiro nos ajuda a entender essa colocação do professor Feistel. São os casos do ciclo do café, da borracha ou mesmo do açúcar, que mostram uma tendência de, historicamente, basearmo-nos em uma economia extrativista.

A partir dos últimos anos da Segunda Guerra Mundial, até o final da década de 1980, o Brasil passou por um importante processo de industrialização. Isso fez com que os produtos manufaturados surgissem na pauta de exportação com mais força. Hoje, no entanto, a situação é outra. O cenário brasileiro de exportações passa a se voltar, uma vez mais, às commodities. O professor Feistel cita alguns fatores centrais para essa mudança, dentre os quais destaca: “A abertura comercial que ocorreu no país fez com que a nossa estrutura industrial fosse posta em xeque, pois não era tão desenvolvida. Isso que fez com que perdêssemos competitividade com o resto do mundo, em termos de indústria”. Aliado a isso, há também o grande crescimento da China no mercado internacional, em especial a partir dos anos 2000.

 

A AGRICULTURA FAMILIAR COMO POSSIBILIDADE

A carne bovina, a soja e a cana estão entre os produtos mais exportados pelo Brasil. Apesar disso, o modelo de produção do agronegócio sofre críticas devido aos impactos que pode causar ao meio ambiente

Por estar diretamente ligada a grandes volumes de alimentos, a produção voltada ao comércio exterior está vinculada também à lógica do agronegócio, um conceito entendido por envolver todo o processo de produção, armazenamento, processamento e distribuição dos produtos agrícolas. Em geral, ele costuma ser associado também à ideia de produção em larga escala.

No caso brasileiro, como apontam dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o setor responde por sete dos dez produtos mais exportados pelo país. Nessa lista estão o café, a carne bovina e a soja, por exemplo. Os dados refletem a potencialidade brasileira para a produção agropecuária e justificam por que, muitas vezes, somos vistos como o celeiro do mundo.

Entretanto, essa não é a única realidade que se torna destaque ao se tratar do agronegócio. Se na economia o setor é abordado como aquele capaz de equilibrar as finanças do país, ambientalistas não poupam críticas ao modelo de produção no qual se estrutura o agronegócio. Tendo como uma de suas características a produção de monoculturas em larga escala, modelo que exige a exploração de vastas extensões de terra, os impactos no meio ambiente podem ser severos.

A agricultura familiar afeta menos o meio ambiente e se caracteriza pela produção diversificada de alimentos. No entanto, com o processo de modernização da agricultura brasileira, ocorreu também um estímulo à especialização do pequeno agricultor em um determinado tipo de cultura

Outra crítica que se faz é ao modo como esse tipo de produção afeta o pequeno agricultor. Para o professor do Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural da UFSM, Paulo Roberto Silveira, junto com o processo de modernização da agricultura brasileira, ocorreu também um estímulo à especialização do agricultor em um determinado tipo de cultura, em detrimento de uma produção diversificada. Ele salienta que são duas as principais consequências desenvolvidas: uma ambiental e outra que afeta a lógica de produção e vivência do agricultor familiar.

No caso do meio ambiente, o professor considera que a produção intensiva e repetitiva de uma mesma atividade agrícola provoca a degradação do solo, reduzindo também seu potencial de fertilidade. Além disso, pontua que, para conseguir manter uma produção satisfatória, os agricultores acabam optando por utilizar uma grande quantidade de insumos, fertilizantes e herbicidas, influenciando também na qualidade da água e do alimento. Isso ocorre por conta da contaminação que esses produtos podem gerar nos rios próximos ao local em que são aplicados e mesmo fazer com que o consumidor acabe por ingerir um alimento que já recebeu grande carga de substâncias.

Para o pequeno agricultor, as mudanças são até mesmo estruturais. Com a tendência de abandonar a diversidade de culturas, o produtor perde flexibilidade em relação ao mercado. “Quanto mais produtos ele produzisse, mais possibilidades ele teria de, em um eventual fracasso de uma dessas culturas ou de uma queda dos preços, ele se manter com a renda mínima necessária para a família”, explica Silveira. Ele considera, ainda, outro ponto que tem sido foco de suas pesquisas: a produção de alimentos para o consumo da própria família, que perde espaço com a opção pela monocultura. A consequência é o empobrecimento da dieta.

O que ocorre, diferentemente do modo produtivo centrado na família, é a adoção de uma agricultura intensiva, própria do agronegócio, que vem seduzindo o agricultor. O professor Silveira considera que isso acontece porque o modelo atual conta com grande mecanização do processo, e a disponibilidade da mão de obra familiar não é mais, em muitos casos, suficiente. Além disso, produtos como a soja e o fumo, para citar dois exemplos, dão maior certeza de espaço no mercado econômico, pois têm comercialização garantida. Quando a safra não é boa ou o preço de mercado está em queda, porém, as dívidas pesam no bolso, sobretudo do pequeno agricultor.

 

POLÍTICAS PÚBLICAS E INVESTIMENTOS: UMA SOLUÇÃO 

Apesar dos problemas e processo de mudanças pelos quais passa a agricultura familiar, sua importância para o país não pode ser deixada de lado. Embora os maiores volumes de alimento sejam produzidos pelo agronegócio, o mercado externo é o seu principal destino. E é nesse contexto que a agricultura familiar ganha espaço, pois, como aponta Silveira, “em todos os tipos de alimentos, inclusive nos grãos, a produção do pequeno produtor é bastante significativa. Quando ela não corresponde por mais de 50% do volume total do abastecimento, é algo próximo a isso ou, até mesmo, superior à metade”.

Na prática, esse dado, somado a outros, resulta em um fato histórico: a saída do Brasil do Mapa Mundial da Fome. O dado foi anunciado em setembro de 2014 pelas Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Conforme pontuou a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, esse é um resultado que surge a partir da união de vários fatores e políticas públicas. Dentre eles estão o aumento da oferta de alimentos no país. Ainda, segundo dados da FAO, ao longo dos últimos dez anos, houve um aumento de 10% na oferta de calorias no país. Desses números já estão descontadas as exportações e contabilizadas as importações realizadas. Mas esse não é o único fator decisivo. Também foram fundamentais investimentos de geração de renda e, ainda, os feitos diretamente na agricultura familiar. Diferente do que mesmo os estudiosos da área costumavam entender, hoje sabemos que o problema da fome está mais ligado à desigualdade que existe nas políticas de distribuição e no modo como a produção está concentrada.

O professor Silveira considera que o sucesso relativo em combater a fome é uma decisão política de viabilizar condições de acesso ao alimento para aqueles que, historicamente, não tiveram essa disponibilidade. “Isso significa dizer que já tínhamos grande produção de alimentos, mas que eles não chegavam a todas as pessoas. Esse é um processo que se viabiliza a partir da criação de políticas públicas, como tem ocorrido”. Apesar da notícia de que o país saiu do Mapa Mundial da Fome, ele alerta para alguns desafios que ainda precisam ser considerados nesse cenário. O professor entende que a política de abastecimento que temos é extremamente fragilizada. “Por exemplo, muitas vezes o ideal seria que tivéssemos uma produção local ou regional que conseguisse abastecer as demandas daquela população e que se trouxesse de fora dela o mínimo necessário”, explica. Porém, não é isso que acontece. Não existe uma estrutura de planejamento capaz de operar regionalmente; por isso os alimentos acabam, muitas vezes, circulando por longas distâncias. O professor considera que essa é uma lacuna que os municípios poderiam suprir.

Outro problema apontado pelo professor Silveira é que, de forma cada vez mais progressiva, a produção de cana para fazer álcool e a de soja para fazer biodiesel, por exemplo, irão concorrer com a produção de alimentos para o consumo humano. Sua sugestão é uma política governamental decisiva para estimular a produção de alimentos, uma vez que a tendência é que ela diminua. “A não ser que consideremos alimentos somente os grãos, porque nos outros tipos a tendência é um decréscimo. Ambos os modos de produção [agronegócio e agricultura familiar] podem coexistir, mas é preciso que haja um equilíbrio entre ambos”, destaca. Talvez esse seja um dos grandes desafios do abastecimento de alimentos no Brasil.

Repórter: Daniela Pin Menegazzo
Ilustradora: Carolina Delavy Chagas

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