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Gordofobia médica: saúde não tem tamanho

Atendimentos preconceituosos afastam pessoas gordas dos consultórios e as privam de cuidados básicos com a saúde



Ícone triangular em amarelo e preto. O fundo é amarelo e os detalhes em preto. Há uma moldura triangular preta. No centor, um ponto de exclamação e as letras "TW". O ícone simboliza atenção.

Esta matéria possui conteúdo que pode desencadear fortes emoções. Caso você esteja passando por um momento de maior sensibilidade tenha cautela ao prosseguir com a leitura. Se você se sentir desconfortável interrompa a leitura e volte quando estiver mais forte emocionalmente.

“O ginecologista disse que eu não devia usar calça jeans, porque uma mulher gorda que nem eu fica horrível e que ninguém era obrigado a ver isso. Eu fiquei chocada, respondi que fui me consultar por motivos de saúde e não para receber conselhos de moda”, relata a psicóloga Laís Sellmer. Essa é a realidade que muitas pessoas gordas enfrentam na hora de procurar atendimento médico, e esse preconceito tem nome: gordofobia médica.

Ilustração horizontal e colorida de silhueta de um corpo gordo, em que são visíveis os músculos e os ossos. A ilustração do corpo é do joelho ao peito. Na parte esquerda, aparecem os músculos, na cor vermelha. Na parte direita, estão os ossos, em azul. O restante do corpo é cinza. O fundo é bege.

A gordofobia se caracteriza pela aversão e preconceito com pessoas gordas. Trata-se do julgamento de alguém como inferior, desprezível ou repugnante por estar acima do peso que é considerado padrão pela sociedade e pela medicina. Ela está presente na nossa sociedade e se torna ainda mais grave quando o gordofóbico é um profissional da saúde. Uma pesquisa canadense apontou que, em 2019, 18% dos médicos afirmaram se sentirem enojados ao atender pacientes gordos, e 33,3% indicaram se sentir frustrados com pacientes que têm obesidade.Tais percepções podem levar a atendimentos desrespeitosos e humilhantes que culpabilizam o peso como único causador e responsável pelas queixas dos pacientes.

Diante disso, a nutricionista Katleen Marques buscou entender como a gordofobia está presente entre os alunos de cursos da área da saúde. Formada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Katleen defendeu o seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre o tema: “Atitudes e crenças frente à obesidade em acadêmicos de nutrição e enfermagem”. O objetivo foi avaliar a estigmatização do corpo gordo e promover um olhar mais ampliado e empático na hora dos atendimentos. O trabalho foi orientado pela professora Greisse Viero da Silva Leal e coorientado por Luma Stella Teichamann Bazzan.

Entre novembro de 2019 e abril de 2020, a nutricionista aplicou um questionário em 304 acadêmicos de nutrição e enfermagem de três instituições de ensino superior diferentes. Katleen buscou avaliar a ocorrência de atitudes e julgamentos em relação a pessoas gordas dentro dos cursos de graduação.  “As pessoas são muito gordofóbicas e elas, às vezes, acham que não são ou que isso é besteira. Esse tipo de pensamento precisa mudar, pois comentários e atitudes preconceituosos podem afastar os pacientes dos consultórios e gerar grandes traumas”, afirma a nutricionista.

A gordofobia médica e seus impactos

O assunto se popularizou em 2018, depois que  a influenciadora Flávia Durante criou a hashtag #gordofobiamédica, que reuniu mais de 80 relatos de pessoas que passaram por situações de preconceito na busca de atendimentos de saúde.

Print de tweet. No canto superior esquerdo, fotografia de perfil em círculo. A mulher tem pele branca, rosto redondo, olhos e cabelos escuros. Ao lado, o nome da usuária e o ahoba: "Flávia Durante, @flaviadurante". Ao lado do nome, selo de verificação azul. No canto superior direito, o botão 'Follow', com escrita e moldura em azul e fundo branco. O texto do tweet está em preto e dividido em oito linhas: "Amiga gorda na merda de parto, no momento mais feliz de sua vida, ouviu um médico comentando pro outro: "tem anestesia pra rinoceronte?" Tô com saco cheio de só falar de beleza, de magra biscoiteira e de discutir quem é plus dizer ou não, vamos falar mais de #gordofobiamédica". A hashtag está em azul. Abaixo, as seguintes informações: "Translate tweet"; "2:23PM - 27 Jul 2018". O fundo é branco.

A gordofobia, além de causar sérias consequências na saúde mental e na vida social das pessoas gordas, também pode provocar o diagnóstico tardio de doenças graves por gerar medo de frequentar consultórios médicos. A filósofa, ativista e pesquisadora Malu Jimenez fundou o grupo de Estudos Transdisciplinares do Corpo Gordo no Brasil e afirma que todas as pessoas gordas já sofreram gordofobia médica. “Toda pessoa gorda já sofreu com isso, porque a gordofobia é um estigma estrutural institucionalizado e cultural da nossa sociedade. O modo como a gente pensa em corpo é gordofóbico. Uma pessoa gorda, quando chega ao consultório médico, já é avaliada e julgada antes mesmo dos exames”, explica Malu. 

A pesquisadora ainda ressalta que a consequência mais grave da gordofobia médica é a morte. Malu defendeu sua tese de doutorado sobre o tema na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT): “Lute como uma gorda: gordofobia, resistências e ativismos”. Ela conta que um dos depoimentos que recebeu para a pesquisa foi da irmã de uma mulher que morreu por medo de voltar a sofrer preconceito. A mulher foi ao ginecologista, colocou o avental necessário para o exame e percebeu que ele não servia. Fora isso, a maca do consultório não suportou seu peso e quebrou. Diante da situação, ela se sentiu humilhada pelo médico, que a agrediu verbalmente pelo acontecido, e ficou sete anos sem procurar serviços de saúde. Traumatizada pelo ocorrido, a mulher descobriu um câncer tardiamente e faleceu. “Esse tipo de situação acontece com muitas outras pessoas gordas que não vão ao médico porque não querem ser tratadas dessa maneira. A gordofobia também aparece quando, em um consultório, os equipamentos não comportam o paciente. São várias situações que vão fazer com que esse corpo deixe de procurar a saúde”, evidencia Malu.

Fotografia horizontal e colorida de uma mulher gorda de pele branca. Ela tem rosto redondo, olhos escuros, cabelos curtos, castanho claros e lisos, com uma franja no lado direito. Tem uma verruga na bochecha esquerda. Usa brincos triangulares vermelhos e grandes. Veste camiseta preta, com a frase em letras grandes e na cor branca, no centro: "Lute como uma gorda." Está com a mão direita levantada, na qual usa um anel preto, e com a mão esquerda na altura do peito. No braço esquerdo, tem uma tatuagem grande. Ela está séria. Ao fundo, em desfoque, paisagem de árvores verdes. Atrás dela, poste de construção antiga e escadas.
Malu Jimenez é filósofa, ativista, pesquisadora e fundadora do grupo de Estudos Transdisciplinares do Corpo Gordo no Brasil.

Diante da procura por profissionais não gordofóbicos, a psicóloga Laís Sellmer decidiu criar uma rede de apoio, nas redes sociais, por meio da indicação de médicos respeitosos. Co-fundadora do projeto Saúde sem Gordofobia, Laís viu a necessidade de divulgar esses profissionais, pois recebia muitos relatos de pacientes que deixavam de fazer exames médicos por medo de sofrer preconceito. “Quando uma pessoa gorda passa por essa situação, ela se culpa e se machuca, pois a gordofobia médica é uma situação de abuso. A partir disso, ela se priva de olhar seus exames ou de fazer uma consulta. E o mais hipócrita é que as pessoas gordas são criticadas justamente por não cuidarem da saúde”, explica Laís. 

A psicóloga também destaca que a gordofobia atinge as pessoas de outra maneira quando parte de um profissional da saúde: “A gente vai ao profissional buscando amparo e ajuda, e quando você recebe uma agressão ali é muito difícil, é sim diferente da gordofobia que acontece pela sociedade”.

A formação profissional e a patologização da obesidade 

O TCC da nutricionista Katleen Marques, citado no início desta reportagem, concluiu que o estigma com o corpo gordo ainda é muito presente. Através do uso de uma escala de medição de atitudes gordofóbicas (Antifat Attitudes Test – AFAT), a nutricionista observou o comportamento dos estudantes diante de falas preconceituosas. A escala possui 34 questões divididas em três categorias: depreciação social e do caráter; não atratividade física e romântica; e controle de peso e culpa. Os alunos deveriam responder se concordavam ou não com algumas afirmações como: “Pessoas gordas não se importam com nada além de comer”, “Pessoas gordas não são atraentes” e “A maioria das pessoas gordas é preguiçosa”.

Alguns resultados mostraram atitudes negativas dos alunos com as pessoas gordas:  38% concordaram que, se elas quisessem emagrecer, elas conseguiriam; 23% acreditam que elas se prendem a qualquer desculpa; 16,4% dos acadêmicos acreditam que ‘‘Não há desculpas para ser gordo’’ e 48,4% concordaram com a afirmação ‘‘A maioria dos gordos compra muita besteira ou ‘junk food’”. “Os acadêmicos consideram que a obesidade é de responsabilidade do indivíduo, muitas vezes generalizando o excesso de peso como algo essencialmente negativo, sem levar em consideração que o ambiente sociocultural e a mídia têm forte influência sobre a imagem que o sujeito constrói sobre o corpo real e o ideal”, explica Katleen. 

Para a pesquisadora Malu Jimenez, a existência de estigma entre os estudantes é preocupante: “A formação dessas pessoas é gordofóbica, elas vão levar esse estigma para o atendimento, e isso é muito violento. A gordofobia é tão estrutural que a forma como a gente sai preparado de uma universidade é estigmatizante com corpos que vão frequentar o seu consultório”, expõe. De acordo com Malu, o preconceito já começa na graduação pelo modo como a ciência categoriza o corpo gordo. Segundo ela, o ativismo contra a gordofobia luta para que a obesidade não seja considerada uma doença. A psicóloga Laís também concorda com o pensamento: “Quando se estabelece a obesidade como uma doença, essa classificação se torna a identidade da pessoa que a possui. A doença é definida a partir de um cálculo matemático que rotula as pessoas sem conhecê-las e sem avaliar as suas reais condições de saúde”.

Criado em 1832 e adotado pela Organização Mundial da Saúde em 1972, o cálculo de Índice de Massa Corporal (IMC) se baseia no peso e na altura para dizer qual o peso ideal de uma pessoa. Quando essa conta ultrapassa o número 30, significa que o indivíduo tem obesidade. Para Laís, o uso do IMC para classificar o corpo gordo é ultrapassado, pois é preciso levar em consideração a composição corporal e os exames bioquímicos antes de atribuir uma doença a alguém. “As pessoas gordas são tão estigmatizadas que elas não têm o direito de ficar doentes sem serem julgadas, pois elas já são vistas como pessoas doentes. Se eu chego em um médico com uma queixa, ele não pode presumir e me associar a uma pessoa doente antes de me examinar – e é isso que acontece com o corpo gordo”, afirma Malu. 

Como diminuir o estigma

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 60,3% da população brasileira adulta possui excesso de peso. O estigma e preconceito com as pessoas gordas já atinge a maior parte da sociedade. Por isso, é necessário buscar maneiras de conscientização das pessoas sobre a gordofobia.

Malu relata que só descobriu o que era a gordofobia aos 37 anos de idade – ou seja,  passou uma parte da vida sem saber que sofria um preconceito. Para ela, é imprescindível aumentar o debate sobre o assunto na sociedade e dentro dos cursos de saúde: “É preciso propor novos saberes sobre o corpo gordo, questionar esse padrão de atendimento que machuca e maltrata”, diz. Para Katleen, a gordofobia médica também pode ser amenizada se os profissionais da saúde buscarem se informar sobre o assunto. “Se cada profissional da saúde começar a se atentar e tomar conhecimento do assunto, utilizar métodos de inclusão e escutar mais os seus pacientes antes de julgar, acho que já irá fazer uma grande diferença”, afirma a nutricionista. 

Nesse sentido, existe o movimento “Health At Every Size” (“Saúde para todos os tamanhos” em português), criado nos Estados Unidos e que busca trazer uma abordagem diferente para o tratamento de pessoas gordas. Essa conduta prioriza a saúde e o bem-estar físico e psicológico, independentemente do peso. Os profissionais seguem alguns princípios como abordar o peso de forma inclusiva, focar na melhora da saúde como um todo e não somente no emagrecimento, priorizar o respeito e usar a alimentação e exercícios físicos para melhorar a qualidade de vida. Além disso, a abordagem também propõe a reflexão acerca de móveis, ambientes e equipamentos que comportem pessoas gordas e procura ajudar os pacientes com a sua auto-aceitação. 

Expediente:
Reportagem: Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Design gráfico: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll. acadêmica de Jornalismo e bolsista; Alice dos Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária; Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.
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