Ir para o conteúdo Revista Arco Ir para o menu Revista Arco Ir para a busca no site Revista Arco Ir para o rodapé Revista Arco
  • International
  • Acessibilidade
  • Sítios da UFSM
  • Área restrita

Aviso de Conectividade Saber Mais

Início do conteúdo

Intolerância religiosa em ambiente escolar provoca silenciamento, exclusão e evasão de estudantes

Preconceitos são praticados principalmente por meio de microagressões



A intolerância religiosa dentro do ambiente escolar começa quando, em salas de aula de escolas públicas, há um crucifixo instalado acima do quadro. “Pela Constituição Federal, o Estado tem que ser laico, a laicidade tem que estar em todos os ambientes públicos. Se colocarmos os crucifixos, deveríamos colocar todos os outros símbolos [de religiões]”, afirma Lorena Marquezan, professora do curso de Ciências da Religião da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Além disso, práticas intolerantes também acontecem de maneiras explícitas, quando a fé alheia é questionada e criticada – tanto por parte de colegas quanto de professores -, e de maneiras implícitas, por meio da exclusão dos alunos em grupos, de risos e deboches e do silenciamento. Para Marcelo Pires, professor de história que fez sua dissertação sobre a temática, muitas vezes os estudantes que têm religiões diferentes da cristã se silenciam com medo de represálias, de deboches e de reprovações por parte de professores e colegas.

Descrição da imagem: ilustração horizontal e colorida de uma sala de aula vista dos fundos. No centro ao fundo da imagem, quadro verde escuro com símbolos de várias religiões desenhados com giz branco. Ao lado, um homem alto de pele branca aponta para o quadro. Ele tem cabelos escuros e veste camiseta de manga comprida na cor verde pastel. Acima do quadro, um crucifixo amarelo. A parede é verde marinho. À frente do quadro, quatro alunos sentados junto a mesas brancas. Eles estão de costas e olham para a frente. São dois meninos e duas meninas. A parede do lado esquerdo é amarela mostarda e tem cartazes com a tabela periódica e uma lista. No lado direito, há janelas grandes e verticais. O chão da sala é laranja.

Victor O’xalá é batuqueiro, quimbandeiro e umbandista, criador e coordenador da Marcha contra a Intolerância Religiosa de Santa Maria. Ele também é diretor do Batuque do Rio Grande do Sul e membro do Conselho Municipal dos Povos de Terreiro. Essa atuação vai ao encontro da luta contra a intolerância religiosa, pois Victor já sofreu várias microagressões por praticar sua fé. Quando vai a escolas para dar palestras sobre religiões de matriz africana e está vestido de branco – cor que marca as vestes típicas da religião umbanda em períodos de resguardo -, Victor já percebeu risos, deboches e olhares desconfiados. Ações como esta em escolas estão previstas na lei 10.639, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira. “A gente vê que fica desconfortável, fica mais seco o tratamento com o aluno, né? Começa aí a intolerância religiosa dentro do ambiente escolar”, afirma. No culto aos orixás, que faz parte dos cultos de nações africanas, há rituais que tem como uma das obrigações ficar em recesso por um período de 32 dias, o que envolve usar roupas brancas e usar turbantes. Quando estava na escola, Victor passou por esse processo: “Eu sofri preconceito dos meus colegas. Ficavam zoando e começaram a debochar, não encostaram em mim porque poderiam pegar algo negativo, [diziam] que era pra ter cuidado comigo porque eu poderia rogar uma praga, fazer alguma maldade. Em nenhum momento foi transmitido que a minha religião é algo positivo”, conta Victor. O episódio não teve reconhecimento da diretoria e dos professores. “Em nenhum momento eu tive alguém me acolhendo, e isso é muito sério. É algo que vou lembrar pra sempre, essas ações ficam marcadas na nossa mente”, desabafa.

 

Tanto as microagressões quanto as violências mais explícitas afetam, principalmente, o psicológico dos estudantes. Jonson Borges Porto é evangélico e cursou Ciências da Religião na UFSM. Para ele, o processo da exclusão e do silenciamento que ocorrem na intolerância religiosa é o mesmo do racismo, agressão que ele sofreu também no ambiente escolar. Em atividades em grupo, Jonson era deixado de lado. “Aquela pequena exclusão dos meus colegas me levou a um sentimento ruim. Eu não sabia como falar, não sabia como procurar ajuda”, relembra. Essas microagressões fizeram com que ele não tivesse mais vontade de estudar. “Eu abandonei a escola. Mas essa influência e esse sentimento de desistência com certeza começou quando comecei a ser excluído”, explica Jonson. Para o cientista religioso, esse processo também acontece com a intolerância religiosa. 

 

Durante o estágio final da graduação, Jonson ensinou uma turma de cerca de quinze alunos em que diversidade religiosa se manifestava por meio de cinco religiões. Para o professor, foi desafiador: “Eu tive que deixar a minha formação como pessoa cristã de lado e entrar ali como professor. O Estado é laico e é vetada toda a possibilidade de proselitismo. Na condição de professor, eu tinha que fazer uma mediação entre as religiões e trabalhar a ética, a moral e o respeito entre as religiões”, ilustra Jonson. Além disso, ele ainda pontua que o ensino sobre a tolerância deve ir além da sala de aula e incluir a família do estudante.

O Estado é laico (ou ao menos deveria ser)

O Ensino Religioso é inserido na escola como disciplina por meio da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A oferta é obrigatória nas escolas públicas de Ensino Fundamental, mas a matrícula é optativa, ou seja, os estudantes podem decidir se vão cursar a disciplina. De acordo com documento da BNCC sobre o Ensino Religioso, a intenção deste componente curricular é a promoção do respeito para a diversidade de crenças, a inclusão e a cidadania. O documento afirma que nenhuma crença deve ser privilegiada e, nos conteúdos propostos, estão o ensino sobre diferentes religiões, símbolos, tradições, espaços e territórios, indumentárias, alimentos sagrados, práticas celebrativas e ritos.

 

No entanto, de acordo com o professor Marcelo Pires, a BNCC não estabelece, de maneira explícita, os conteúdos propostos para o ensino de diferentes religiões. Ele destaca que, na maioria das escolas, não há professores com formação superior em Ciências da Religião para lecionar esta matéria, o que faz com que professores de outras disciplinas assumam a função. Além de estes não terem preparo para o ensino das ciências da religião, não há oferta de capacitação para formar esses professores. “O professor fica numa situação muito difícil, porque ele não tem conteúdo, tem que buscar e construir ou então se utilizar de materiais de igreja. E eu não digo que sejam ruins, mas professam uma fé, uma visão de mundo e isso é complicado no espaço plural como deve ser o da escola”, reflete Marcelo. Essa lacuna tem como principal consequência a prática do proselitismo religioso por parte dos docentes, o que lembra as práticas de catequização presentes na história de formação do Brasil. “[Acontece] da mesma forma que os jesuítas faziam essa catequização com os indígenas, faziam eles negarem sua cultura e sua fé. É interessante nós pensarmos como, mesmo tantos séculos depois, ainda estamos voltados para uma padronização, em seguir um caminho considerado ideal”, fundamenta Marcelo.


Em sua dissertação, Marcelo propõe planos de ensino e temáticas para serem abordados a partir da história das religiões e que contemple o combate à intolerância religiosa. “Eu acredito que a história tem uma potencialidade muito grande de mostrar como as diferentes sociedades se organizaram. E nisso a religião também tem a sua importância social. É para mostrar que existem diferentes religiões, com opiniões, doutrinas e explicações diferentes sobre questões fundamentais”, destaca Marcelo. O docente acredita que a escola deve ser, sobretudo, um espaço democrático, de pluralidade e de convívio, em que as pessoas podem expor opiniões e fés sem sofrer nenhum tipo de preconceito. A proposta de Marcelo é que a educação, no ensino religioso, seja para a tolerância. “A escola deveria ser um grande laboratório de democracia”, afirma o pesquisador.

A intolerância religiosa

Um dia, durante o mês de novembro, em que acontecia a Semana da Umbanda, Victor estava no centro de Santa Maria, de branco, com outros integrantes do terreiro, quando foram confrontados por um senhor que cantava e pregava seu louvor junto a um violão. “Fomos pegar algo para comer e ele foi até nós e disse que éramos ‘do demônio’, que iríamos nos arrepender”, conta Victor. Explicar que a religião da umbanda não é o que as pessoas falam não foi suficiente: ele não queria ouvir. Ao contrário da estigmatização social que diz que a religião da umbanda, assim como outras de matriz africana, são demoníacas, perversas e ‘do mal’, Victor salienta que não há tentativa de compreensão de quais são as crenças presentes nas mesmas. Nos rituais sagrados, em que animais são sacrificados, o alimento que é preparado durante as festividades é doado para pessoas e famílias carentes. Além disso, o terreiro em que Victor atua ajuda com doações de roupas e de alimentos de maneira periódica. “Doamos com bom coração pedindo que a espiritualidade encaminhe essa pessoa, que em uma próxima oportunidade [ela] possa se encontrar melhor e ajudar quem precisa. Exu não é o demônio. Exu não vem pra embebedar pessoas. Exu não vem pra fazer as pessoas se prostituírem. Exu vem para abrir caminho, para nos ensinar como lidar com o ser humano”, desabafa Victor.

 

De acordo com dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), o primeiro semestre de 2022 registrou 454 denúncias de intolerância religiosa (que também inclui o desrespeito àqueles que não tem uma crença). Os números de 2021 somam 679 denúncias. No entanto, os números são subnotificados, já que, em muitos casos, as microagressões não são levadas a sério e passam despercebidas dos dados. As religiões mais afetadas pela intolerância religiosa são as de matriz africana. “As pessoas julgam sem saber o que é praticado dentro de um terreiro”, afirma Victor. Casos de intolerância religiosa que tiveram repercussão nacional foram o da menina de 11 anos que foi apedrejada na saída de um culto de candomblé, em 2015, e, recentemente, o de um paciente que morreu após não poder receber visita de mãe de santo no hospital. Para Victor, casos como esses e os que ele próprio vivenciou têm origem no racismo: “A minha religião é julgada porque é uma religião de negros. Não existe orixá branco. Esse preconceito já vem lá de trás, em que os meus antepassados tinham que maquiar o culto deles”, destaca. 

 

Foi com base no combate à intolerância e no entendimento de que as pessoas não entendiam sua religião que Victor criou a Caminhada Contra a Intolerância Religiosa de Santa Maria, cuja segunda edição foi em 2019.  O umbandista foi inspirado por seu padrinho religioso, Nei D’Ogum, santa-mariense que foi um importante ativista da causa racial, LGBTQIA+ e da comunidade de favela, e que faleceu em agosto de 2017. Outra das inspirações foi seu babalorixá, Sidney de Xangô, que é seu pilar de trabalho, educação religiosa e movimentos. “Eu resolvi criar a marcha quando criei o Batuque, porque queria trazer uma movimentação que nunca existiu para dentro de Santa Maria”, relembra Victor. A caminhada complementou ações que já estavam em andamento, como palestras que abordaram a intolerância religiosa. “Fui de casa em casa. Em várias casas religiosas. Fui na igreja, na catedral, em templos budistas, de reiki, largar o convite. Quem queria falar, poderia explicar sua fé”, relata.

Descrição da imagem: Fotografia horizontal e colorida em tons frios. No centro esquerdo da imagem, de perfil e em primeiro plano, homem negro com vestes brancas. A parte superior tem detalhes em renda e em pintura e, na cabeça, usa um turbante branco. Ele olha para cima, com o rosto concentrado, e segura um microfone preto próximo à boca. No fundo, no lado direito da imagem, pessoas estão de pé, sendo que três estão em destaque na primeira fileira. São fois homens e uma mulher. Um dos homens e a mulher também usam vestes brancas. No fundo do lado esquerdo, prédio de um andar branco e alongado. Ao fundo da imagem, o céu em azul pastel com a lua no centro.
Victor O’xalá durante a 2ª Caminhada contra a Intolerância Religiosa de Santa Maria, em 2019.

Fé na política

A fé, que é do ambiente privado, entrou na política, que é do espaço público. No contexto brasileiro atual, a religião é, muitas vezes, utilizada em propagandas políticas e como ferramenta política de convencimento, a exemplo de campanhas eleitorais que exaltam Deus acima de todos. “Eu penso a religião como algo do âmbito privado. Quando falamos em política, em eleições, em escolhas de governantes, vai pro âmbito público. Um governante pode até ter a sua religiosidade, mas ele não vai governar só para o seu grupo”, afirma Marcelo. O pesquisador afirma que a religião no ambiente público desencadeia nas formas como o Estado é gerido, quais pautas e preocupações serão priorizadas. “Na história, todas as vezes que nós misturamos religião e política, fomos para um caminho péssimo, que fortaleceu regimes autoritários, regimes de diferentes formas de opressão. E no Brasil, isso [a mistura de fé e política] está cada vez mais forte”, destaca Marcelo.

Segundo Marcelo, o Brasil é um país formado a partir da intolerância religiosa. “Ela sempre existiu, mas agora está mais explícita, inclusive tomando conta dos debates eleitorais, usada na busca por votos”, fundamenta Marcelo. Conforme o professor, o uso eleitoreiro da fé aumenta a intolerância religiosa, já que fortalece a padronização de discursos, de corpos, de crenças. “Aqueles que não estão inseridos nesse padrão têm problemas, são perseguidos, gera uma situação em que as pessoas sofrem formas de opressão ou se silenciam”, reflete Marcelo.

Educação para a tolerância

Na tentativa de combater a intolerância religiosa, Victor oferece palestras para escolas. Nas falas, ele conta sobre a história das religiões de matriz africana, conteúdo que está previsto na lei nº 10.639. De várias escolas de Santa Maria, ele nem recebeu resposta do convite de oferta da palestra. Mas quando o diálogo é possível na sala de aula, os alunos ficam atentos: “Procuram entender, porque a nossa conversa é séria, mas ao mesmo tempo se torna um bate-papo. Eles fazem perguntas de todo tipo, desde as mais supérfluas até as mais sérias”, relata Victor. Nas ocasiões em que fala sobre sua religião em escolas, o umbandista conta nunca ter sido maltratado. “Eu só peço que as pessoas procurem entender mais sobre a minha fé. Não precisa entrar, só precisa respeitar. A minha tradição alimenta, não violenta”, solicita Victor.

Expediente:

Reportagem: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;

Design gráfico: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;

Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Gabriel Escobar, acadêmico de Jornalismo e bolsista; e Nathália Brum, acadêmica de Jornalismo e estagiária;

Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;

Edição geral: Luciane Treulieb, jornalista.

Divulgue este conteúdo:
https://ufsm.br/r-601-9537

Publicações Relacionadas

Publicações Recentes