Ir para o conteúdo Revista Arco Ir para o menu Revista Arco Ir para a busca no site Revista Arco Ir para o rodapé Revista Arco
  • International
  • Acessibilidade
  • Sítios da UFSM
  • Área restrita

Aviso de Conectividade Saber Mais

Início do conteúdo

Narciso acha feio o que não é espelho?

Entenda o que o aumento do uso das redes sociais durante a pandemia pode representar para o “Eu” e para a sociedade



“Redes” são interligações. Quando falamos em redes sociais, estamos considerando um espaço de “entrelaçamento” de uma sociedade. Em um período marcado pelo aumento do uso dessas ferramentas, entender essa sociedade e a si enquanto pertencente a ela é essencial. Afinal, hoje, devido à proeminência desses meios, pensar sobre a vida real também implica pensar sobre a vida virtual – e vice-versa.

No total, existem mais de 4,3 bilhões de usuários de mídias sociais em todo o mundo. Esse dado é disponibilizado pelo Relatório Digital 2021, publicado em parceria entre a We Are Social e a Hootsuite, agências globais de marketing digital especializadas nessas plataformas. O material também revela que, do ano de 2020 para 2021, durante a pandemia de Covid-19, as redes ganharam cerca de 490 milhões de novos usuários.

Além da quantidade de pessoas que as utilizam, também cresce o tempo de uso desses meios. O relatório calcula que o usuário típico passa cerca de 2 horas e 25 minutos nas redes sociais todos os dias, o que corresponde a aproximadamente 17 horas de sua vida por semana. Somados, os usuários de mídia social do mundo inteiro passarão um total de 3,7 trilhões de horas nessas plataformas em 2021, o que equivale a mais de 420 milhões de anos de existência humana combinada, estima a pesquisa. Ao que tudo indica, vivencia-se o ápice das redes sociais, que recebem cada vez mais usuários, tempo e atenção.

Não é difícil visualizar esse contexto, afinal, para muitos, as mídias sociais se tornaram preferência na hora de se informar, se comunicar e se entreter. Além da explosão do Tik Tok, redes sociais que já estavam em expansão há mais tempo receberam maior atenção. Segundo dados divulgados pela Kantar, empresa especializada em pesquisa de mercado, o uso do Instagram, Facebook e WhatsApp cresceu mais de 40% durante a pandemia.

O significado do aumento desses números varia, tendo potencial positivo ou negativo. As redes sociais podem representar uma forma de encontrar abertura em meio a um mundo temporariamente fechado, possibilitando manter algumas relações e rotinas apesar do distanciamento social ocasionado por este período. Contudo, essas ferramentas também podem representar o oposto: uma maneira de provocar ainda mais fechamento – em si e em seus próprios ideais.

Na perspectiva da virtualidade, poderíamos pensar tal processo pela existência dos algoritmos. Esses mecanismos automáticos buscam, por meio de critérios e cálculos, serem assertivos quanto ao nosso consumo. Há uma interpretação de nossos comportamentos nos meios virtuais e, a partir disso, a sugestão de publicações alinhadas a eles. Complexo, o processo envolve informações de inúmeras redes, que acabam por se interligar entre si. Desse modo, tentam nos aproximar de conteúdos que se relacionem conosco e com nossa realidade e, consequentemente, nos afasta do que é diferente disso. Porém, na perspectiva da “realidade”, podemos encontrar formas mais profundas de pensarmos o social das redes.

É isso que propõe André Oliveira Costa, ao compreender a importância de debater o que este momento ápice das mídias sociais representa para o “Eu” e para a sociedade. Professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSM, ele sugere o seguinte ponto de vista: pensar a sociedade contemporânea e virtual, através da relação existente com a sociedade antiga e “real”.

A história se repete

No artigo “A construção do Eu nas narrativas de vida”, com participação de Karen Worcman, André faz referência à obra do sociólogo Norbert Elias intitulada “A Sociedade de Corte”. O livro, em síntese, defende que a formação do Eu acontece em conjunto com a formação da sociedade. Para explicar isso, o autor descreve a construção da sociedade de corte, do Absolutismo Monárquico de cerca de cinco séculos atrás. A organização social desse grupo pode ser caracterizada por um aspecto que não parece ser tão obsoleto: na época, as pessoas estavam o tempo todo observando e controlando a si mesmas e às outras.

Essa organização não foge muito da realidade contemporânea. Com a expansão das redes sociais, lidamos com um espaço de entrelaçamento de uma sociedade que se “segue”, como registra a própria nomenclatura comum dos aplicativos. Em contato diário com a maioria dos usuários que optamos por acompanhar, observamos constantemente o nosso próprio perfil e os dos demais. Por vezes, isso se estende ao controle: além de haver regras de uso elencadas pelos serviços, se buscarmos entre os usuários, encontramos regras de “etiqueta” e de visibilidade.

Sobre o Eu nas redes sociais, André afirma: “É como fazer parte da sociedade de corte”. Segundo ele, no antigo grupo, os olhares representavam uma forma de as pessoas se reconhecerem como idênticas e pertencentes a uma certa camada social – de modo que uma funcionava como reguladora da outra, possibilitando, como um espelho, identificação. Isso se relaciona com as redes, na medida em que a vida virtual também traz a necessidade de buscar o olhar do outro para garantir certo reconhecimento. “É vida de corte, em que as pessoas se confirmam e se reconhecem. Se uma delas não gosta de algo, por exemplo, tem toda uma classe que vai fazer com que a pessoa seja excluída, afastada, pois há uma regulação”, descreve André.

Esse tipo de identificação é percebido por André como uma forma de gerar um fechamento em um certo grupo social. Há uma diferenciação entre os que fazem parte e os que não fazem. “Quem consegue construir para si certos comportamentos que fazem parte de um grupo, acaba se diferenciando daqueles que não conseguiram se submeter a essas regras do olhar, essas exigências sociais. Tudo isso é para poder encontrar um certo lugar de diferença, de destaque, de privilégio”, explica. Nas redes sociais, aqueles que reconhecem e acompanham as regras de “etiqueta” e visibilidade, conseguem construir comportamentos que agradam as exigências sociais e, assim, encontram um lugar de diferença – recebendo um retorno que não é toda a sociedade que recebe, simbolizado por um maior número de seguidores, comentários e curtidas.

Para compreender melhor a relação entre a sociedade das redes e a sociedade de corte, podemos relacioná-las a uma expressão contemporânea: bolha social. O termo sugere divisões, que ocorrem através da formação de grupos que se distanciam uns dos outros por enrijecerem determinados posicionamentos. Segundo matéria publicada na Folha de S. Paulo, um estudo conduzido pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) mostra que as redes sociais reforçam a propensão humana a buscar informações que se alinhem a ideias preconcebidas. Isso significa, portanto, o distanciamento de ideias diferentes.

Assim, as bolhas representam segregações de pessoas e de ideais. A fim de aprofundar a questão, André explica: “As pessoas se unem em um traço único e comum e, assim, se forma uma massa. Ou, na etimologia atual, uma bolha. A ideia é que todos são uniformes, indiferenciados, constituídos pelo mesmo traço e se identificam com o mesmo ideal. A massa representa quase que como um único indivíduo, porque essas pessoas acabam reproduzindo certos comportamentos. E qualquer diferença que tente se introduzir é eliminada”. Um exemplo do caso nas redes é que, muitas vezes, para não lidar com opiniões divergentes, a alternativa frequente é a opção de bloquear os usuários que as trazem para o espaço virtual.

Contudo, a ‘diferença’ que André menciona é eliminada não só no sentido de, muitas vezes, não haver aceitação de perspectivas diferentes, mas também ao tentarmos suprimir aspectos que fogem do tal “padrão” em nós mesmos. Isso porque estar preso em uma bolha significa internalizar e reproduzir que se deve ser igual às pessoas que fazem parte dela. Nas palavras de André, “o indivíduo se fecha em uma bolha e a reproduz mesmo sem saber. Isso ocorre muito facilmente, e vemos, inclusive, em discursos hegemônicos, que dizem de algo ‘estrutural’, em que as pessoas não se dão conta de que estão participando. Está na estrutura da formação da sociedade e do sujeito, que é constituído por isso, mesmo sem saber. ‘Você tem que gostar disso’, ‘Você tem que ser assim’.  Os grupos se constroem nessa lógica de identificações e diferenciações”. 

Logo, para o pesquisador, é como se as redes sociais explicitassem uma repetição dessa vida longínqua, de cerca de 500 anos atrás, em que carregamos secularmente a necessidade do olhar do outro para poder nos reconhecermos como alguém, para poder dizer “eu sou” ou “eu faço parte”. O que nos atrai, é a sensação de pertencimento, que faz com que, por vezes, nos adaptemos às exigências sociais desses meios. André acrescenta: “Esse sentimento nos satisfaz narcisicamente, em que se pode pensar ‘como eu pertenço a essa classe, eu sou privilegiado de estar ali, eu tenho capacidade, qualidade e virtude para fazer parte de um determinado grupo’. É como pertencer à sociedade de corte”.

Para além do espelho

O psicanalista e doutor em Filosofia pela PUCRS, Luciano Mattuella, traz uma perspectiva semelhante. Segundo ele, a supervalorização do Eu faz parte da cultura contemporânea. Mas, embora isso seja explicitado através das redes sociais, é algo que sempre existiu. “Sempre precisamos, em toda a história da humanidade, do olhar de um outro que nos constituísse e dissesse de alguma forma quem nós somos. Os outros são os nossos espelhos, nos quais a gente vê a nossa imagem refletida”, explica. 

Luciano aponta que, devido a essa supervalorização agora conectada às redes sociais, por vezes cremos que, através dessas ferramentas, somos protagonistas o tempo todo, como se estivéssemos em uma condição de privilégio. “Mas, na verdade, somos todos figurantes. E essa promessa de protagonismo que a rede social produz pode gerar sofrimento, pois faz com que muitas pessoas se sintam como se não estivessem sendo reconhecidas como deveriam ser”, observa. Nesse sentido, ele relata que uma das sensações que surgem para o sujeito é a de estar sempre endividado – não com a própria história ou com a ética, mas com o outro, como se devesse a ele algo que possa ver e reconhecer. 

O psicanalista descreve que, apesar da perspectiva de fechamento em si, o fundo histórico e constitutivo da necessidade do olhar do outro prova que, sem ele, não vivemos. Fundamental, ele faz parte do Eu. O almejado é conseguir atravessar essa ideia para se colocar disponível a algumas aberturas: “Com o tempo, o que se espera é que a gente possa lançar esse narcisismo investido na gente para o mundo. Se interessar pelo mundo, mesmo que do nosso ponto de vista, mas pelas outras coisas do mundo”.

Reconhecer a diferença é uma maneira de se distanciar da ideia de que somente o que é igual ao Eu – apenas o que é espelho – é digno de escuta. Isso não implica necessariamente concordar com perspectivas diferentes, mas estar disponível para ouvi-las e conhecê-las. Além desse movimento de escuta do novo e do diverso expandir as percepções para ajudar a “sair da bolha”, também pode trazer menos sofrimento.

Fabio Silva, professor de Jornalismo da UFSM, expressa que o sujeito que se dispõe à interlocução é um sujeito talvez mais preparado e menos sofredor do que o que se indispõe: “Aquele que se dispõe a falar e a ouvir de uma maneira realmente disponível, potencialmente sofre menos do que o sujeito que não se dispõe. Porque o sujeito que não se dispõe não consegue evitar totalmente esbarrar em uma opinião divergente. E se isso traz sofrimento, ele será vítima desse sofrimento”.

Quando a interlocução se dá por meio das redes sociais, é importante estar ainda mais atento. Afinal, segundo Fabio, as interações sociais que se estabelecem por meio da linguagem praticada nessas mídias tendem a ser mais fluidas, menos comprometidas e menos interessadas na existência e até no bem-estar do outro. Como cientista da linguagem e analista do discurso, ele acrescenta: “é uma forma de linguagem mais fragmentada – uma vez que, na maioria das vezes, costuma desprezar o contexto e, consequentemente, perde uma parte significativa e importante da possibilidade de compreensão do que o outro está dizendo”.

Refletir, questionar e dialogar aparecem como importantes caminhos para desviar o possível “fechamento” propiciado pelo maior contato com as redes sociais em um período em que tais meios tanto se expandem. Assim, fica mais fácil encontrar a abertura desejada e desejável através de um bom uso. Afinal, essas três ações permitem a entrada de novas perspectivas e da aceitação da diversidade, de modo que contribuem para que consigamos olhar para o que é diferente do Eu, ao invés de buscarmos apenas o que é igual. Considerar a diferença consiste, inclusive, em reconhecer épocas distintas, movimento importante que fica claro através das contribuições do professor André. Como exprime a significativa frase de Heródoto, historiador grego da Antiguidade, “Pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro”. 

As mídias sociais possuem um número de usuários que equivale a mais do que a metade da população total do mundo. Daí a importância de ter novas compreensões sobre elas e sobre o que, consequentemente, elas podem representar para os indivíduos e a coletividade a curto e longo prazo. Ao fim e ao cabo, é consenso entre os entrevistados: diante de um período tão produtor de sofrimento como o de isolamento social, as redes sociais são importantes ferramentas para a manutenção de rotinas de estudo, trabalho e entretenimento, e para a construção e o fortalecimento de laços sociais. Isto é, em seus fins de abertura. Por meio deles, fica mais fácil reconhecer como se caracteriza o bom uso das redes para cada sujeito e compreendê-las em seu verdadeiro significado: de interligar.

***

*Narciso acha feio o que não é espelho” é um verso da música “Sampa”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Expediente

Repórter: Anna Júlia da Silva, acadêmica de Jornalismo (UFSM campus Frederico Westphalen) e estagiária

Ilustrador: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista

Mídia Social: Samara Wobeto e Eloíze Moraes, acadêmicas de Jornalismo e bolsistas

Edição de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista

Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas

Divulgue este conteúdo:
https://ufsm.br/r-601-8628

Publicações Relacionadas

Publicações Recentes