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Uma vitória que nunca aconteceu

No 20 de setembro, o pesquisador Flavi Lisboa discute os desafios culturais da gauchidade



 Todo ano, no 20 de setembro, enquanto o Brasil segue seu cotidiano de trabalho, Rio Grande do Sul para pra comemorar uma memória histórica: o dia da Revolução Farroupilha. O feriado estadual marca a lembrança de uma batalha de 10 anos, em que os rebeldes “gaúchos” tentaram a independência do governo Imperial do Brasil.

No centro desta comemoração está a figura que simboliza o rebelde Farroupilha, o “gaúcho”. A identidade do gaúcho corajoso e bélico tem origem histórica. O território do sul do país foi marcado por diversas batalhas, guerras, revoltas e tratados que tentaram delimitar as fronteiras brasileiras. A configuração territorial contemporânea, o estado do Rio Grande Sul, existe apenas a partir do século XVIII. As disputas nas fronteiras, nesse período, tinham uma configuração internacional bastante impactada pela geografia platina – o Rio Grande do Sul faz divisa com o Uruguai e a Argentina, e está muito próximo também do Paraguai. Essas batalhas também são significativas para a criação de uma dicotomia entre portugueses e espanhóis, presente nos livros de história e culturalmente postergada ao longo dos anos. Sob a ótica portuguesa, o espanhol e o castelhano eram concorrentes diretos da exploração do “novo mundo”.

Quase dois séculos depois do fim da revolução, quem são os gaúchos? O professor Flavi Lisboa, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFSM e especializado em Comunicação e Estudos Culturais, afirma que não é fácil responder essa pergunta.

 

Professor Flavi Ferreira Lisboa Filho

De um lado, porque nossa sociedade vivenciou transformações importantes – se urbanizou e acompanhou um processo acelerado de modernização. De outro, a figura hegemônica do gaúcho é reforçada por diversos setores conservadores da sociedade: a história que encontramos nos livros é a história dos heróis revolucionários e a preservação da cultura farroupilha é geralmente restrita ao MTG (Movimento Tradiconalista Gaúcho). Esse conjunto de fatores favorece um processo cultural de delimitação da “figura símbolo” do Rio Grande do Sul, que acaba por omitir partes importantes de suas origens.

 

Lisboa lembra que o “ser gaúcho” é plural e significativo para diversos povos. A identidade gaúcha se forma a partir da apropriação de hábitos e costumes de várias culturas. Inclusive da cultura negra e da cultura indígena – de onde vem o chimarrão, o churrasco e as reuniões em volta do fogo. Os chamados “lanceiros negros” faziam as frentes de batalha na Guerra dos Farrapos, mas raramente são lembrados nas comemorações do dia 20 de setembro. Para o pesquisador, a representação gaúcha ideal deveria ser capaz de “enxergar essa pluralidade cultural que há no estado. E não definir uma, para que todas as outras se enquadrem”.

Para Flavi, ao contrário do que muitas vezes é ensinado nas aulas de história, nas escolas, o tratado de Poncho Verde não contemplou todos os envolvidos na guerra. “As condições postas só serviram para os grande estancieiros, que tinham os postos militares mais altos. Mas e os outros que ali lutaram? Quantos foram os negros que tiveram de fugir para o outro lado para não voltar a ser cativos? De 1845 a 1888, nós temos um largo período temporal em que a escravidão se manteve no nosso estado”.

O fenômeno da Gauchidade

Por não encontrar uma explicação suficiente ao significado de “ser gaúcho”, Lisboa sugere a necessidade de se repensar essa relação cultural, e passou a usar o termo “gauchidade”: um fenômeno social capaz de agregar diferentes manifestações culturais sobre o gaúcho, tanto no meio rural, quanto no urbano. “Se formos para o lado do MTG, ser gaúcho está ligado a uma tradição campeira, ao meio rural. Nós somos um estado em sua maioria urbana, essa urbanidade não se envolve no ser gaúcho?”

 

O pesquisador lembra que o dinamismo é fundamental para a manutenção de uma cultura e de uma identidade. A cultura não permanece intacta ao longo dos tempos, pelo contrário, é importante que esteja em constante atualização. Para Lisboa, apesar da beleza da Carta de Princípios, e da essência do MTG, algumas pessoas que assumem postos importantes dentro do movimento não tem essa consciência, e assumem uma posição retrógrada e conservadora.

 

O professor chama atenção, principalmente, para a posição do MTG em relação às discussões de sexualidade e gênero: “O movimento é muito exclusivista na hora de dizer quais são as tradições cultuadas. Ele ajuda a manter essa tradição hegemônica de culto a um gaúcho branco, elitista, heteronormativo, machista e patriarcal. Fomentando uma sociedade com bastante misoginia”, explica.

 

Outro exemplo dos desafios da gauchidade está na apropriação cultural feita pelos meios de comunicação. No Rio Grande do Sul, a RBS (Rede Brasil Sul de Comunicações) tem como estratégia de relacionamento com o seu público-alvo o estereótipo do “gaúcho”. A cultura gaúcha é apropriada por essas emissoras como meio de diferenciação das outras. Em termos mercadológicos, “esse bairrismo institucionalizado é uma forte estratégia de segmentação. No entanto, essa identidade gaúcha é seletiva e incapaz de representar a ‘gauchidade’, como um todo”, explica Lisboa.

O problema não está na valorização da história Farroupilha. Pelo contrário, a maneira como a história é contada cria um sentimento de pertencimento que é muito importante para a preservação dos laços sociais em qualquer cultura. “O problema é quando esses enaltecimentos tentam colocar o gaúcho como um povo superior a qualquer outro. Isso implica em práticas bairristas e xenófobas”, aponta Lisboa.

 

A supervalorização da guerra, da bravura e da periculosidade, principalmente no 20 de setembro, é bastante perversa. Afinal de contas, em uma guerra sempre há muitas perdas e muito sofrimento para os povos envolvidos. Para Lisboa, comemorar a Revolução Farroupilha é comemorar “uma vitória que nunca aconteceu”.

Reportagen: Ramiro Brittes
Infográficos: Nicolle Sartor

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