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Revoada de memórias

Quantas histórias uma pessoa idosa tem para contar? Este trabalho buscou contar as memórias de dois idosos homossexuais cuja juventude se passou em um tempo de intensa intolerância



“Kalu vivenciou com intensidade todos os momentos. Queria ser livre, queria ser feliz, queria festejar a diferença. Mas o regime era cruel e autoritário. Todavia, Kalu e seus amigos jamais baixaram a cabeça. A palavra era união. A homossexualidade não era bem vista pelos conservadores, mas um monte de coisa também não era. Os negros, os índios, os socialistas, as feministas: todos à margem.” trecho de “Pássaro da Manhã”, de Marlon Dias.

Em 2009, o diretor Marcelo Caetano lançou o curta-metragem “Bailão”, um documentário filmado em uma casa noturna de São Paulo, cujos clientes são homens homossexuais com idade acima de 60 anos. Em entrevista ao programa Zoom, da TV Cultura, Caetano afirmou que aquele era um grupo muito invisível, que não gostava de falar sobre sua sexualidade, o que tornava aquela pesquisa um desafio muito grande. Dois anos depois, um aluno da UFSM do curso de Comunicação Social – Jornalismo assistiu ao curta e decidiu abraçar um desafio que focava no mesmo grupo: homossexuais com mais de 60 anos.

O trabalho de Marlon Santa Maria Dias, atualmente mestrando em Comunicação Midiática, procurou uma maneira diferenciada para contar as histórias de dois idosos, Kalu e Silvio. Marlon optou por um Projeto Experimental em seu Trabalho de Conclusão de Curso e o intitulou Pássaros da mesma gaiola: memórias de homossexuais idosos em biografias de curta duração no estilo Jornalismo Literário. O trabalho conta com a produção de dois textos nomeados “Pássaro da Manhã”, sobre Kalu, e “Pássaro Proibido”, protagonizado por Silvio.

A escolha pelo estilo Jornalismo Literário veio de um interesse anterior pela área. Marlon entrou em contato com o gênero em uma Disciplina Complementar de Graduação oferecida no curso de Jornalismo. O professor Paulo Roberto Araujo, que ministra a disciplina, tornou-se seu orientador.  Este contato, somado ao aspecto de humanização deste tipo de relato, fez com que o pesquisador optasse pelo estilo. Segundo Marlon, haveria outras maneiras de tratar o assunto, mas não uma maneira melhor: “Estamos trabalhando com pessoas que estão contando sua história de vida. Acho que o estilo Jornalismo Literário possibilita algo que não é só escrever um texto bonito. É poder modificar a tua postura como jornalista e encarar a pauta e as fontes com um olhar diferenciado, mais humano. É um tema muito delicado, mas acho que o estilome ajudou a trabalhá-lo de uma forma mais humana.”

Como é exposto na pesquisa, o Jornalismo Literário não ignora o jornalismo convencional, apenas busca a história que pode estar por trás de acontecimentos que, por vezes, merecem apenas uma nota no jornal. Os textos convencionais apresentam vidas rasas, se comparadas à sua magnitude. A intenção do jornalista literário é, então, humanizar o relato sobre o outro, na tentativa de compreender a maneira como ele construiu sua história e o lugar que ocupa nela. Como escreve Felipe Pena, cujas teorias foram utilizadas no TCC de Marlon, “No dia seguinte, o texto deve servir para algo mais do que simplesmente embrulhar o peixe na feira.”

“Aos 65 anos, Silvio acha desnecessário esconder a idade. Cada ruga de seu rosto é uma marca esculpida pelo tempo que sinaliza o quanto viveu, como se cada uma contasse uma de suas histórias. […] Os olhos também são grandes, atentos faróis que por vezes parecem perder-se na imensidão de escuro à sua frente. E não raro percebi seu olhar vago, como se procurasse algo que a escuridão recobrisse.” Trecho de “Pássaro Proibido”, de Marlon Dias.

A busca pelos biografados não foi fácil. Poucos idosos estavam dispostos a falar sobre si e principalmente sobre sua sexualidade. Inclusive, algumas pessoas afirmaram não se encaixar no perfil procurado.Através de alguns contatos, Marlon encontrou Silvio em Quaraí, cidade natal do pesquisador, e Kalu em Santa Maria. Foram de cinco a sete encontros com cada um, em suas respectivas casas. Os ambientes em que conversavam também foram descritos nos textos.

Kalu (à esq.), biografado por Marlon, ao lado do companheiro João

 

“Entrei pelo caminho de pedras que cruzava a grama do jardim e me levava do portão de entrada à porta da casa. O primeiro cômodo era uma sala, adaptada para ser o seu salão de beleza. […] As paredes do salão são decoradas com alguns souvenires (presentes das clientes) e quadros de famosas marcas de cosméticos, com modelos femininas e seus cabelos esvoaçantes. O seu salão foi a única peça da casa que Silvio permitiu que eu conhecesse, com a desculpa de que a bagunça era grande e que eu deveria parar de ser ‘mexeriqueiro’.” Trecho de “Pássaro Proibido”, de Marlon Dias.

O desafio seguinte surgiu com as entrevistas, pois perguntar sobre diversos aspectos da vida de uma pessoa exige sensibilidade. As abordagens eram medidas e as perguntas balanceadas. A sexualidade não foi pauta das primeiras conversas, porém, conforme a confiança entre repórter e biografados crescia, os assuntos mais delicados surgiram. Nenhum deles comentou muito sobre o preconceito que em alguns momentos devem ter sofrido. Kalu dizia que nunca tinha enfrentado problemas deste tipo. Silvio carregava um passado religioso, e via a homossexualidade como um pecado. Ele ainda trabalhava em Quaraí como cabeleireiro e morava sozinho, enquanto Kalu estava de licença médica durante a época da pesquisa, e vivia com seu companheiro João.

“Há uma sintonia entre os dois, algo de quem se conhece pelo olhar. Desde quando resolveram morar juntos, em 1978, não se separaram mais. São companheiros e amigos. João está com sessenta e dois anos, dois a mais que Kalu. Estão entrando na velhice, mas encaram-na apenas como mais uma etapa da vida. O relacionamento é harmonioso e o diálogo aberto entre os dois sempre facilitou o convívio.”(Trecho de “Pássaro da Manhã”, de Marlon Dias)

Silvio e Kalu compartilhavam algo mais em comum: durante a juventude, saíram de suas cidades no interior do Rio Grande do Sul e puderam ver um pouco das grandes metrópoles brasileiras. Além disso, ambos vivenciaram a ditadura militar no Brasil. “Deu para perceber, depois do trabalho pronto, como essas histórias de alguma maneira se encontravam e como eles enfrentaram alguns períodos da história brasileira. Os dois saem de cidades no interior do Rio Grande do Sul e acabam viajando para algum lugar maior. Na questão da ditadura, o Kalu, por exemplo, tinha um posicionamento porque tinha uma formação política, acadêmica (é formado em Filosofia pela UFSM). Para o Sílvio, por outro lado, só sair da cidade já era algo muito distante. Ele não tinha a informação do que era realmente uma ditadura (ao contrário do Kalu), do que estava acontecendo. Mudou o presidente como sempre mudava. Era uma realidade muito distante. E ao mesmo tempo essa saída do interior para a metrópole, era de se libertar.”, conta Marlon.

A repercussão da pesquisa de Marlon foi grande. Em 2012, o trabalho foi premiado no XIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul (Intercom Sul), na categoria Jornalismo Literário ou Opinativo. Posteriormente, um texto seu sobre homossexualidade na terceira idade foi publicado nos portais O Viés e Sul 21. Com os comentários que surgiram nas publicações, foi possível refletir sobre como as pessoas encaravam o tema e o receio de alguns jovens em chegar à terceira idade. Além disso, Rafael Saar, criador do curta-metragem “Depois de Tudo”, que tem o cantor Ney Matogrosso no elenco e tem como protagonista esse mesmo grupo de pessoas, chegou a entrar em contato com Marlon, para elogiar sua iniciativa. O curta também havia servido como inspiração e pesquisa para o trabalho, assim como “Bailão”.

“Kalu despediu-se de mim, afirmando que eu poderia aparecer novamente. O aperto de mão veio acompanhado de uma resposta positiva. Naquela semana, ao ver uma de suas atualizações numa rede social – sim, ele se rendeu à Internet e já tem até uma comunidade virtual em sua homenagem –, me deparo com uma postagem sua que reflete muito o seu espírito e, quem sabe, possa resumir sua posição perante o mundo. Era a frase de uma escritora que muito lhe agrada, Cora Coralina: ‘Mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus ombros..’.” trecho de “Pássaro da Manhã”, de Marlon Dias

Na conclusão da pesquisa, Marlon afirma que a imprensa não realiza um trabalho “suficiente” sobre a homossexualidade na terceira idade. O exemplo disso é a pouca quantidade de material produzido sobre este assunto. Nas entrevistas, o repórter desafiou os entrevistados a contarem suas vivências, e é claro que eles as relataram da maneira como gostariam que elas fossem lembradas. Algumas questões seguem como dúvidas, pois os relatos são inconstantes e mutáveis.

Kalu e Silvio não leram as biografias logo após serem finalizadas. Segundo o pesquisador, Kalu estava doente, por isso não conversaram mais depois das entrevistas. Com a produção desta matéria para a Arco, eles se falaram novamente e o biografado leu o texto que contava um pouco de sua vida. Kalu disse a Marlon que havia gostado do produto final e que se emocionou com a maneira como sua história foi retratada. No final de “Pássaro Proibido”, Silvio havia ido embora, sem informar para onde. O jornalista soube que ele faleceu logo depois. Felizmente, uma parte dele ficou eternizada nas palavras de Marlon.

 

Repórter: Myrella Allgayer

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