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Vidas que continuam

A complexa relação entre a realidade do luto e a possibilidade da doação de órgãos



Podemos compreender a morte como parte do curso da vida, mas a aceitação diante dela não costuma ser tão simples. Quando se trata de uma mãe ou pai dizendo adeus ao filho, a situação é ainda mais difícil. Como explicar essa inversão do que esperamos ser o ciclo natural de nossa existência? Não parece haver uma resposta que dê sentido às coisas. Há casos, porém, em que a morte não é necessariamente o fim e nos quais ela passa a ser vista como o recomeço para outra pessoa. É aqui que entra em cena a doação de órgãos.

A relação entre a doação e a morte de um filho foi abordada na UFSM pela pesquisa intitulada A perda de um filho: luto e doação de órgãos. Ela foi realizada pela psicóloga Ana Luiza Portela Bittencourt, pelo professor de Psicologia Alberto Manuel Quintana e pela professora de Medicina Maria Teresa Aquino de Campos Velho. O objetivo foi pensar sobre o sofrimento advindo da perda do filho e como isso se apresenta nas situações em que há a possibilidade de doação de órgãos.

 

A REALIDADE DO LUTO

A morte não é um evento individual, pois traz repercussões no desenvolvimento de pais, irmãos e amigos. Cada uma dessas pessoas é afetada de diferentes formas – afinal, o luto não segue sempre um padrão. No entanto, encará-lo quando se trata de alguém jovem torna-se mais difícil, pela prematuridade que é posta. É menos doloroso enfrentar a morte quando temos a noção de que o ente querido viveu o suficiente para realizar seus sonhos e alcançar a felicidade.

O luto constitui um processo de reorganização, é o momento em que são expressos os sentimentos decorrentes da perda. O professor Alberto Quintana ressalta que ele não deve ser ignorado pelos profissionais da saúde; pelo contrário, é uma fase que precisa ser valorizada e acompanhada. A vivência do luto permite o entendimento de que a morte é real e possibilita a retomada da rotina.

O que é morte encefálica?

É a definição legal de morte. Ela representa a completa e irreversível parada de todas as funções do cérebro. Isto significa que, como resultado de uma forte agressão ou ferimento grave no cérebro, o sangue que vem do corpo e supre o cérebro é bloqueado, e ele morre. 

 

A DOAÇÃO E A EQUIPE DE SAÚDE 

A doação de órgãos, com exceção daquelas feitas em vida, pode ser realizada quando é detectada a morte encefálica, ou morte cerebral, como é mais conhecida. Porém, ainda que o paciente tenha declarado o desejo de ser um doador, cabe à família autorizar ou não que isso aconteça. A grande dificuldade é que o processo precisa ocorrer de forma rápida e coincide com um momento em que a família ainda não foi capaz de assimilar a perda. Além disso, ainda há muitos mitos e dúvidas envolvendo o assunto. O professor Alberto cita ainda outro fator que pode influenciar na decisão:

— Observamos que quanto mais a pessoa se sente confiante e satisfeita com o atendimento que foi prestado à pessoa que faleceu, mais ela está inclinada a doar. Isso porque a doação depende muita da confiança na equipe que vai solicitá-la.

Também segundo a pesquisa, outra dificuldade é a de que, quando é dado o diagnóstico de morte encefálica, o possível doador ainda apresenta batimentos cardíacos e respira com a manutenção de equipamentos. Assim, muitos pais costumam ter receio de que a pessoa ainda esteja viva e sentem medo de causar algum dano a ela. Nesse sentido, a atuação da equipe de saúde é fundamental. É preciso que fique claro para a família o conceito de morte encefálica e que seja dado um tempo até a informação ser processada. Para isso, é importante que a equipe de saúde esteja pronta para responder a todas as dúvidas sobre o assunto e deixar os pais mais seguros sobre a decisão a ser tomada.

A forma como são conduzidas as campanhas em prol da doação de órgãos também é, na visão de Quintana, um dos empecilhos para que ações como essa sejam realizadas em mais ocasiões:

— Todas as campanhas têm uma proposta de nos fazer entender que é bom doar, que você pode salvar vidas. Na pesquisa que nós fizemos, quase a totalidade das pessoas era a favor da doação. Mas quando se perguntava se elas doariam os órgãos de alguém próximo que teve morte encefálica, a grande maioria respondia que não.

As pessoas sabem o quanto doar é positivo, mas ainda assim têm receio de fazê-lo. Essa é uma mentalidade que está ligada a uma série de questões, tais como: crenças, medo de violar o corpo, abordagem inadequada, falta de informação e tantas outras. Entre essas outras questões está também o desconhecimento, por parte da família, de que o ente gostaria de ter seus órgãos doados. Deixar isso claro é uma forma de fazer com que essa vontade seja respeitada.

Se por um lado a doação de órgãos é muito importante, é também fundamental a manutenção da ética por parte dos profissionais envolvidos no processo. A escolha por doar os órgãos do familiar não pode ser feita mediante pressão. O que precisa ocorrer é um consentimento informado, que se caracteriza quando há o entendimento da situação e, livre de qualquer controle por parte de outro, autoriza-se que o profissional realize o procedimento. Quando o contrário acontece, a decisão é baseada em pressões externas e a experiência pode ser traumática.

 

“Na pesquisa que nós fizemos, quase a totalidade das pessoas era a favor da doação. Mas quando se perguntava se elas doariam os órgãos de alguém próximo que teve morte encefálica, a grande maioria respondia que não”

 

O MOMENTO DE DECIDIR

Enquanto o momento da morte é de luto para alguns, pode adquirir um significado de uma vida que ressurge para outros. Foi o que motivou Ecilda Nunes e Claudiomiro Rodrigues a doar os órgãos do filho, Felipe da Silva Rodrigues, de 19 anos, quando foi diagnosticada a morte encefálica.

Felipe foi atropelado por uma motocicleta enquanto trabalhava e já chegou ao hospital em estado crítico. Foram dez dias até que viesse a confirmação da morte cerebral. Quando isso ocorreu, a família logo conversou e decidiu pela doação, como explica Ecilda:

— A gente veio para casa, junto com nossos outros dois filhos, e conversamos sobre o que fazer. Decidimos doar os órgãos dele, porque sabemos que tem muita gente que precisa. Naquele momento estávamos arrasados, mas sabíamos que aquele gesto ia ser a alegria de algumas pessoas que há tempos estavam na fila de espera.

Na própria família, Ecilda e Claudiomiro já haviam acompanhado o caso das sobrinhas, que possuíam problemas renais e precisavam de um transplante. Ambos conhecem o sofrimento causado pela espera. A doação é um ato de colocar-se no lugar do outro. Talvez esse seja um bom (e necessário) exercício a se fazer.

 

Repórter: Daniela Pin Menegazzo

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