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A arte do desestresse e do autoconhecimento no boxe



A prática que vai muito além da pancadaria e envolve um turbilhão de sensações

Letícia Severiano

Frederico Westphalen

  O enrolar da bandagem nas mãos é visivelmente poético, além de ser um momento de paciência e concentração, requer cuidado e ainda por cima, boa coordenação motora. Para se ter um bom desempenho em um treino ou até mesmo em uma luta profissional, poucos sabem, mas é necessário esse tecido que forma uma camada de proteção por baixo das luvas usadas no boxe. Já durante o treino, a epinefrina ou adrenalina, como é mais conhecida, é um dos principais hormônios produzidos pelo corpo, além das mãos inchadas, trêmulas e avermelhadas, que sinalizam, muitas vezes, socos nada firmes e de iniciantes. As dores físicas, que são inevitáveis, geralmente vêm acompanhadas de um senso de motivação, de determinação e estar construindo autoconhecimento. O modo como muitas pessoas praticantes do esporte o descrevem é sempre como sendo algo libertador e viciante, tal comentário que explica o amor de alguns pela modalidade.  

Com o professor de boxe e muay thai, Daniel Matter, 34 anos, não foi diferente. Na verdade, o primeiro contato e curiosidade em relação ao boxe se deu por meio da Filosofia. Menino nascido e criado no interior, quando pequeno queria ser padre, se via diferente das crianças com quem convivia. Nasceu então a vontade de ir para o seminário e seguir os caminhos da fé. Aos 20 anos e cursando Filosofia, se viu apaixonado pelo dualismo do pensador René Descartes (1596-1650). “Ele fala sobre a relação mente e corpo, a dualidade. Descartes diz que você pode conhecer a mente através do corpo e o corpo através da mente”. Daniel se viu interessado pela ideia de conhecer a mente usando o corpo. “Foi quando a ideia da arte marcial surgiu como possibilidade de um conhecimento maior de si mesmo, por isso eu comecei com o esporte”, relembra. 

Raça. Espírito. Humildade. Durante a conversa com Daniel, pergunto o que é essencial para se tornar um lutador. Sem pensar duas vezes, responde com o que é possível notar nos olhos dos alunos: “Ter espírito, paixão, postura, ter garra, isso é importante”. 

  Enquanto Daniel descreve as sensações de estar no ringue, é fácil notar o que realmente o motiva. Euforia, paixão, ansiedade, medo, um misto de sentimentos e sensações é descrito por ele. “Me sinto realmente vivo quando estou iniciando uma luta. Meus sentidos ficam mais aguçados, consigo sentir o sangue correndo pelo meu corpo. A aceitação psicológica é importante também, porque a luta é muito tensa, parece simples, mas não é. O seu ser interno diz ‘o que você está fazendo?’”. Ao dizer isso, é possível ver algo em seu olhar. É amor pelo que faz. 

Daniel começou a competir após quatro meses de treino. Autodidata, o estudante de filosofia treinava diariamente sozinho e passou a exercitar constantemente o autoconhecimento por meio da luta. Terminou a faculdade de Filosofia e inesperadamente, se viu ensinando a outras pessoas o que vinha praticando no boxe. Nascia então um professor de artes marciais em Frederico Westphalen, interior do Rio Grande do Sul. Além de disputar o Campeonato Gaúcho e o Campeonato Brasileiro, Daniel representou o Brasil na Tailândia por meio do muay thai, carregando consigo uma bagagem gigantesca, entretanto, por inúmeras razões Daniel não alcançou seu maior sonho: lutar profissionalmente. “Por diversos motivos ainda não consegui lutar profissionalmente, mas ainda tenho tempo”, ressalta. 

Espírito, garra, coragem e postura 

Diferente de Daniel, está Marcos Sogabe. Exatos 17.513 km do Brasil, mais precisamente na cidade de Nagoya, no Japão, o lutador, que hoje é aposentado por causa de uma lesão no braço, é dedicado a causas sociais e conta por meio de mensagens no WhatsApp como foi sua trajetória no mundo do boxe. Nada habituada com o fuso horário, engatamos uma conversa. Enquanto aqui almoçavamos, lá Sogabe respondia as perguntas e colocava a filha para dormir, pois não só era noite no Japão, mas sim, quase madrugada. 

Descendente de japoneses, italianos e portugueses, o paulistano de 36 anos, conta que se apaixonou pela luta por volta dos 15 anos, quando assistiu o clássico Rocky (1977): “Achei muito legal a história de superação, determinação e resiliência. Me identifiquei e comecei a treinar no parque da Mooca (SP). Não lembro o nome do treinador, mas tinha alguns atletas conhecidos por lá, como o Peter Venâncio”, relembra. 

Depois de um mês de treino, a mãe o proibiu de seguir, pois não queria ver seu menino apanhar. Mal sabia ela o que o destino reservava a ele. Passaram-se anos até Sogabe voltar a treinar e após o falecimento da mãe, já com 18 anos, o menino voltou a se dedicar ao boxe. Algum tempo depois, aos 20 anos, Marcos foi morar no Japão retornando ao Brasil logo depois de ter juntado dinheiro para se casar. Nesse meio tempo, Marcos treinava em uma academia no Centro de São Paulo, onde conheceu Jairo Kusunoki, um lutador brasileiro que vivia no Japão, assim como ele anos atrás. Três anos depois, divorciado, resolveu retornar ao Japão. Lá, em uma estação de trem, acabou reencontrando o lutador brasileiro, Jairo Kusunoki que perguntou se Marcos queria realmente lutar. “Eu disse que sim. Mudei de cidade e vim para Nagoya treinar. Esse foi meu começo. No Brasil treinei poucos meses e no Japão entrei na academia profissional com 23 anos”, conta. 

A cada mensagem do lutador brasileiro e suas vivências, é possível ficar eufórico e animado com os rumos de sua história e é possível notar semelhanças entre ele e Daniel. Ambos, por um bom tempo, treinaram sozinhos. Daniel desde o início foi autodidata, agendando as próprias lutas, já Marcos de 18 lutas, enfrentou 9 sem o apoio de um técnico. 

O boxeador conta ainda que logo no primeiro treino na nova academia precisou fazer um sparring. Sparring é basicamente a luta corpo a corpo, de acordo com o dicionário, o termo tem origem inglesa e se enquadra em um tipo de treinamento mais livre, com poucas regras. “Me colocaram pra fazer sparring com um profissional. Eu fazia no máximo sombra de leve e sem proteção no Brasil, mas aceitei, levei uma surra, pelo menos gostaram da minha raça”, reflete.

O lutador explica que no Japão o boxe é muito respeitado, porém um tanto estranho e preconceituoso, chegando a parecer uma mistura de religião com exército, cheio de regras e tradicionalismo.

Lutando profissionalmente de 2009 a 2015, quando lesionou o braço, correu risco de perder os movimentos, entretanto, ainda arriscou uma ou outra luta, mas decidiu renunciar a vida de boxeador. “Depois disso continuei fazendo fisioterapia com pretensões de lutar novamente, mas fiquei dois meses sem nenhum bom resultado na recuperação. Já o médico dizia que ia ser impossível voltar a lutar. Fiquei mal em desistir desse sonho que carregava desde os 15 anos”, lamenta. 

No final do ano de 2020 Marcos renunciou ao boxe por questões de saúde e decidiu se dedicar a ajudar pessoas em vulnerabilidade social, prestando assistência e suporte a moradores de rua no Japão, mas não nega, ainda sonha em um dia conseguir voltar ao ringue.

Repórter: Letícia Severiano

Imagens: XXXXX (se for o caso)

Edição digital e publicação: Emily Calderaro (monitora)

Professor responsável: Reges Schwaab

* Trabalho experimental desenvolvido na disciplina de Reportagem em Jornalismo Impresso em 2021/1, período em que trabalhamos de modo remoto em razão da pandemia do novo coronavírus.

Contato: meiomundo@ufsm.br

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