Em um artigo publicado em 2021, intitulado “O feminismo não é entregue de bandeja: saberes e práticas de um coletivo feminista estudantil”, a mestra em Psicologia Vanessa Soares de Castro, junto às pesquisadoras Adriane Roso e Camila dos Santos Gonçalves, escreveu sobre sua experiência com o Coletivo Ovelhas Negras, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), campus Ibirubá. O artigo deriva da dissertação de mestrado de Vanessa, defendida em 2019 na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), sob orientação da professora Adriane Roso e denominada “Movimentos Feministas, Minorias Ativas: percurso de um coletivo de estudantes brasileiras do Ensino Médio Integrado”.
O Coletivo Ovelhas Negras foi fundado, em 2016, por alunas do terceiro ano do Ensino Médio Integrado do IFRS e foi acompanhado pela pesquisadora ao longo de 2017 e 2018, quando participaram da pesquisa 17 estudantes, todas mulheres, entre 15 e 20 anos. No artigo, enfatiza-se a atuação das integrantes do movimento no Instituto, mostra-se o modo como elas se organizaram durante o período observado, as atividades que promoveram e os resultados dessas ações.
Feminismo: O feminismo não é um movimento homogêneo, pois é constituído por diferentes mulheres, com diferentes vivências, reivindicações e práticas. Ao ser estudado, costuma ser dividido em “ondas”, que seriam momentos sócio-históricos em que diferentes pautas ganham destaque, como foi, por exemplo, a reivindicação do direito ao voto para as mulheres. No entanto, a periodização do feminismo em ondas é bastante controversa, já que transmite a ideia de que o movimento se desenvolveu em uma única direção e modo, em todos os lugares e ao mesmo tempo - o que não é correto. Isso acontece pois, por muito tempo, a história do movimento feminista foi pautada por uma literatura europeia e norte-americana, que deixou de lado a pluralidade do movimento das mulheres ao redor do mundo. |
Sororidade: As integrantes do Coletivo interpretaram o termo “sororidade” como algo que se opõe à “rivalidade feminina”. Elas se apropriaram do termo e o renovaram ao utilizá-lo para caracterizar solidariedade e coletividade. As estudantes do Coletivo Ovelhas Negras abordam esses temas por meio da confecção de cartazes e ações coletivas. Um exemplo de ação realizada foi a disponibilização, por parte da escola, de caixinhas para a doação de absorventes. Para manter em anonimato a identidade das alunas participantes, são utilizadas letras (A, na citação abaixo) para referir-se às falas das estudantes no diário de campo. |
Controle dos corpos e das sexualidades
Já no tópico do “controle dos corpos e das sexualidades'', as autoras abordam o modo como o Coletivo atuou com mobilizações sobre o direito das estudantes vestirem as roupas que quiserem, sem que isso influencie no julgamento que terceiros fazem delas. Tal mobilização surgiu ainda em 2016, quando as alunas promoveram o “Ato Contra a Cultura do Estupro”, em solidariedade a um caso de estupro coletivo sofrido por uma jovem no Rio de Janeiro.
O entendimento e o uso de diferentes termos pelas integrantes do Coletivo se modificou com o tempo. O termo “assédio” passou a ser adotado pelas jovens com maior frequência no lugar de “cultura do estupro”, por se tratar de um termo de mais fácil entendimento e também por caracterizar vivências mais próximas às estudantes. Outra questão que apareceu com a pesquisa foi o necessário cuidado com máximas como “meu corpo, minhas regras”, por se tratar de uma retórica que não leva em conta o modo como os corpos estão socialmente relacionados, ou seja, não se trata apenas de um corpo individual - de uma pessoa - mas de todas as questões sociais e históricas relacionados à ele, devido ao gênero, sexualidade, raça, classe, dentre outros fatores.
O que se percebe, de acordo com os relatos trazidos pelas pesquisadoras, é que o Coletivo está em constante processo de “desacomodação”, em que as estudantes começam a entender suas relações com o cotidiano e com teorias próprias dos estudos feministas. A partir de conversas, ações e inserção em outros contextos, novas discussões emergem.
Ser mulher e ser feminista
O terceiro tópico é o “ser mulher/ser feminista”, em que é caracterizado como as estudantes entendem a construção social das diferentes formas de agir em sociedade, que são diferentes para homens e para mulheres. Neste tópico, ganha destaque o debate das jovens em torno das diferentes exigências sociais que são postas para meninos e meninas, desde a infância, quando meninos costumam ser ensinados a seguir um determinado ideal de masculinidade e as meninas são ensinadas a seguir um ideal de feminilidade. O próprio nome do Coletivo ser “Ovelhas Negras” remonta à ideia das estudantes não serem bem vistas pelas famílias por terem um posicionamento questionador.
Há uma separação do que é esperado de homens e mulheres com base no gênero, e as alunas debatem sobre isso. Um exemplo é a divisão sexual do trabalho, em que a mulher é designada para trabalhos domésticos e reprodutivos e os homens estão na esfera produtiva. Outro modo de perceber essa separação é a partir da classificação de trabalhos mais valorizados por meio do salário - com os homens recebendo valores mais altos. As jovens entendem o “ser” feminista como o momento em que se percebe tais desigualdades e se busca mudar essa realidade.
A. falou sobre a questão do machismo no curso técnico em Mecânica, de como não há nenhuma professora na área técnica, e de como os professores homens do curso são machistas. [...] Ela também contou da dificuldade ao procurar estágio, de como uma mulher, mãe do dono da empresa, disse que só estavam contratando homens [...] porque as mulheres não ficavam na área, já que Engenharia Mecânica não é curso para mulher. Além disso, segundo a estudante, quando a empresa contrata mulheres, é apenas em setor sem tantos homens, pois do contrário elas são assediadas - o que faz com que a empresa apenas resolva contratar menos mulheres (Diário de campo, registro do dia 01/10/2018, p. 68).
A visão do Coletivo sobre o “ser” mulher se baseava, no ínicio, em uma noção homogeneizante, o que é pontuado no artigo. A intersecção do gênero com outros marcadores como raça e classe não era considerado inicialmente, muito também por se tratar do primeiro contato das jovens com o movimento. A complexidade do debate foi alcançada com o tempo, quando foram incorporadas outras problemáticas.
Para além do superficial: discursos que devem incomodar
Tópicos como raça, classe social e sexualidades são pontos que perpassam o feminismo e o ato de ser feminista. No artigo, é pontuado como a questão da negritude ganhou destaque nos debates do Coletivo depois de uma estudante negra integrar o grupo e a participação de alunas em uma palestra sobre a história da filósofa e ativista Angela Davis, além da notícia do assassinato da socióloga e vereadora Marielle Franco.
Ontem, nós assistimos à palestra sobre a Angela Davis, negra, feminista, mulher de luta. E naquela mesma hora Marielle Franco, mulher, vereadora do Rio de Janeiro, negra, feminista, e fiscal da intervenção militar que vinha relatando abuso de poder por parte dos policiais foi assassinada com 5 tiros na cabeça e no rosto (Diário de campo, registro do dia 19/03/2018, p. 43-44).
Vanessa pontua a importância de compreender o quanto os discursos produzidos pelas estudantes fugiam da superficialidade. A pesquisadora conta que muitos estudantes chegavam ao Instituto com noções acerca do que é caracterizado como assédio, o que é consentimento e outros tópicos importantes, mas a noção de uma luta coletiva ainda era algo complexo e longe da realidade desses jovens. Com o passar do tempo e a participação dos e das estudantes em ações promovidas pelo Coletivo, além do ingresso de novas integrantes no meio, os debates se aprofundavam, com a inserção de novas temáticas.
No período analisado, a maioria das estudantes eram meninas brancas, de classe média e da região urbana. Ampliar o debate para tópicos que envolvem e fomentam outras discussões sociais era uma preocupação presente no Coletivo. “É importante fazer essa ligação, entender que questões de gênero se relacionam com raça, com classe e debater sobre isso”, enfatiza Vanessa.
As jovens buscavam constantemente avaliar e refletir sobre as próprias ideias, na busca por um feminismo amplo, capaz de melhorar a vida das pessoas. A frase que dá nome ao artigo, “o feminismo não é entregue de bandeja”, deriva da fala de uma das integrantes, o que mostra o entendimento delas acerca do ser feminista, caracterizado como difícil por ir na contramão do pensamento vigente na sociedade.
A. disse que o feminismo não é algo ‘entregue de bandeja’ para elas, é preciso ir atrás, buscar, pesquisar, e vai ser algo incômodo. B. complementou, afirmando que dizem que o feminismo é chato (no sentido de que causa muito incômodo, atrapalha certas coisas), e as pessoas têm razão nesse ponto, pois ele é mesmo, precisa ser (Diário de campo, registro do dia 20/03/2018, p. 49).O uso das redes sociais
O meio digital tem se tornado um ambiente em que diversos debates surgem e temáticas diversas são colocadas em pauta diariamente, em diferentes plataformas de redes sociais digitais. Para o Coletivo Ovelhas Negras, as redes sociais se constituíram como importantes locais para entender e observar o que acontecia, quais assuntos eram abordados e como as estudantes poderiam incorporar esses debates ao cotidiano escolar.
Vanessa enfatiza que, mesmo com as redes sociais como espaços importantes de debate, as discussões devem ultrapassar o ambiente virtual. “Era uma preocupação minha tentar trazer pra elas algumas discussões de forma simples, mas que também consiga dar a complexidade daquele assunto. Trazer de uma forma que seja acessível, mas que também consiga mostrar o quanto aquilo tem nuances”, destaca a pesquisadora.
Pandemia e o retorno à ações presenciais
Com a pandemia de Covid-19, as ações do Coletivo - que aconteciam principalmente por meio de rodas de conversa e ações práticas, como a confecção de cartazes, tiveram de ser interrompidas e os modos de atuação do grupo foram prejudicados. Vanessa conta que o processo de retomada dessas atividades ocorre, ainda que lentamente: “O que eu sinto é que eu preciso estar ali tentando ajudar, tentando criar um ambiente em que elas possam atuar e dar algumas orientações”, ressalta.
A pesquisadora também reitera que algumas atividades que já eram produzidas nos anos anteriores foram retomadas, além da renovação do Coletivo com o ingresso de novas participantes. “Eu sinto que é um espaço que precisa ser reconquistado, elas têm reivindicações e precisam ser ouvidas”, ressalta.
Expediente: Reportagem: Milene Eichelberger, acadêmica de Jornalismo e voluntária; Design gráfico: Julia Coutinho, acadêmica de Desenho Industrial e bolsista; Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Gabriel Escobar, acadêmico de Jornalismo e bolsista; e Nathália Brum, acadêmica de Jornalismo e estagiária; Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Edição geral: Mariana Henriques e Luciane Treulieb, jornalistas.