Apresentados como solução limpa para o futuro da mobilidade, os carros elétricos conquistam cada vez mais espaço nos discursos sobre sustentabilidade. Mas, por trás das promessas de um planeta menos poluído, a produção desses veículos é feita de mineração intensiva, consumo energético elevado e problemas ainda distantes de serem superados.
Mais limpos… ou apenas diferentes?
De fato, os veículos elétricos reduzem as emissões diretas de gases poluentes e o ruído nas cidades. No entanto, a pesquisadora Meiry Mayumi Onohara, coautora do estudo “Comparações entre a Eficiência Energética de Carro Elétrico e de Carro à Combustão: uma análise dos impactos socioambientais e financeiros” (2022), alerta que a imagem de sustentabilidade é, em parte, ilusória.
“Existe uma percepção de sustentabilidade dos veículos elétricos que não considera totalmente os impactos ao longo de todo o seu ciclo de vida, incluindo o maior impacto ambiental inicial durante a fabricação e os desafios com o descarte e a reciclagem das baterias”, explica Onohara. “A fase de produção de veículos elétricos pode gerar significativamente mais emissões do que a de carros convencionais, principalmente devido à fabricação de baterias.”
Segundo dados da International Energy Agency (IEA), um carro elétrico pode demandar até cinco vezes mais minerais do que um modelo tradicional. A título de comparação, enquanto são necessários de 2 a 3 gramas de lítio para produzir a bateria de um iPhone 11, o módulo de energia de um Tesla Model S precisa de 12 quilos do metal, mas dependendo do veículo, essa quantidade pode chegar a 30 quilos.
A estimativa impressiona: se os 1,6 bilhões de carros no mundo fossem convertidos para modelos elétricos, seriam necessários mais de 19 milhões de toneladas de lítio, e isso sem considerar a troca desnecessária e constante para um novo modelo, incentivada por práticas de consumo cada vez mais aceleradas.
O estudo de Onohara e Onohara (2022) confirma que, embora os carros elétricos apresentem rendimento energético de até 90% na conversão da energia elétrica em movimento, frente aos 25% dos veículos a combustão, a fase de produção ainda é responsável por um impacto ambiental expressivo. A extração e o transporte das matérias-primas dependem de combustíveis fósseis e provocam degradação ambiental, especialmente em países latino-americanos que concentram as reservas minerais.

A corrida por minérios e os riscos para o Brasil
Boa parte do lítio que alimenta essa transição energética está na América do Sul, no chamado “Triângulo do Lítio”, formado por Chile, Bolívia e Argentina. De acordo com o “Guia Latam de Lítio”, produzido pela Agência EY, esses países detêm, juntos, metade das reservas globais conhecidas do mineral.
O Brasil também desponta como potência, com reservas significativas localizadas em Minas Gerais, na chamada Província Borborema e no Vale do Jequitinhonha, o qual equivale a 85% das reservas conhecidas, segundo reportagem do canal VE.
A gigante chinesa BYD, uma das maiores fabricantes de veículos elétricos do mundo, adquiriu direitos minerários sobre uma área em Coronel Murta, no Vale do Jequitinhonha (MG), De acordo com documentos obtidos pela Reuters, a empresa já detém títulos de exploração emitidos pela Agência Nacional de Mineração (ANM), o que marca a entrada direta da montadora na corrida global por minerais estratégicos.
Além disso, a mineradora Sigma Lithium, uma das líderes do setor, foi acusada por comunidades locais de ter contaminado um rio da região. Em resposta, a empresa passou a enviar caminhões-pipa semanalmente para cerca de 70 famílias. O caso reacende o debate sobre os impactos diretos da mineração em comunidades vulneráveis.
Outro ponto a se destacar é que a Sigma Lithium recebeu cerca de R$ 500 milhões do BNDES via o Fundo Clima, criado justamente para financiar ações de mitigação às mudanças climáticas. O financiamento serviu para dobrar a capacidade de produção da mina, o que gerou críticas sobre a real sustentabilidade desse modelo de desenvolvimento.
“Terras raras” na Amazônia
Além do lítio, os veículos elétricos dependem de um conjunto de 17 elementos químicos, as chamadas terras raras, que são essenciais em imãs, motores elétricos, catalisadores e componentes eletrônicos das baterias e sistemas de tração.
Pesquisas geológicas recentes conduzidas pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB) indicam que províncias minerais do Norte do país, especialmente a Província Mineral de Carajás, no Pará, concentram depósitos significativos de minerais estratégicos, incluindo elementos de terras raras. De acordo com levantamentos apresentados pelo SGB, já foram documentadas assinaturas desses elementos em amostras coletadas na região, o que reforça o potencial da Amazônia como polo de exploração de insumos críticos para a transição energética.
O Brasil, aliás, está entre os países com maiores reservas estimadas de terras raras no mundo, de acordo com o SGB, corresponde a cerca de 23%, fato que atrai atenção de investidores e de governos interessados em diversificar cadeias de abastecimento fora da China, hoje dominante no refino e na produção global. Ao mesmo tempo, a expansão da mineração na Amazônia levanta alertas por impactos ambientais e sociais conhecidos: a extração de minerais na região tem histórico de danos a ecossistemas e de conflitos com populações tradicionais.
Ao mesmo tempo, a expansão da mineração na Amazônia levanta alertas ambientais e sociais. Especialistas apontam que a extração de minérios na região tem um histórico de impactos severos sobre ecossistemas e populações tradicionais. No Pará, os riscos são intensificados por casos de contaminação industrial, como o da refinaria Hydro Alunorte, em Barcarena, que foi alvo de investigações e relatórios parlamentares após o vazamento de rejeitos que afetaram igarapés e comunidades locais.
Belém será a sede da COP30, que ocorrerá entre os dias 10 e 21 de novembro de 2025. Há expectativa de que a Conferência coloque a Amazônia no centro das negociações globais sobre clima e conservação. Mas especialistas e lideranças locais temem que a atenção internacional possa, em vez de resultar em proteção efetiva, abrir avenida para um modelo de “extrativismo climático”, isto é, favorecer a exploração acelerada de minerais estratégicos sem garantias ambientais e de direitos para as comunidades afetadas
O dilema da eficiência energética
Quando se trata de eficiência energética, a vantagem elétrica é clara. Um carro a combustão converte apenas 10% a 30% da energia do combustível em movimento, enquanto o elétrico aproveita até 90% da energia armazenada na bateria.
Mas, segundo Onohara, “a sustentabilidade dos carros elétricos é relativa e depende fortemente de fatores como a matriz energética utilizada para geração da eletricidade e os desafios associados ao descarte e à reciclagem das baterias”.
Além disso, os custos ainda são altos: o valor da bateria pode representar até 50% do preço total de um carro elétrico. Como apontam os autores do estudo da UFU, a produção desses veículos demanda investimentos pesados em infraestrutura elétrica e redes de recarga, o que reforça o caráter elitizado da “mobilidade verde”.
Transporte público e bicicletas
O investimento em ônibus elétricos, corredores exclusivos, metrôs e bicicletas compartilhadas têm impacto mais direto, democrático e ambientalmente responsável do que a substituição dos veículos individuais.
Por isso, em vez de apenas trocar motores a combustão por baterias, propostas mais sustentáveis priorizam transporte coletivo eficiente, infraestrutura para pedestres e ciclovias integradas. De acordo com o Caderno Técnico de Rotas Tecnológicas de Descarbonização do Transporte Coletivo no Brasil (ANTP) e estimativas do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), a expansão do transporte público e o incentivo à mobilidade ativa, como o uso de bicicletas e deslocamentos a pé, podem reduzir entre 20% e 30% das emissões de CO₂ do setor de transportes urbanos nas grandes cidades brasileiras, especialmente quando combinadas com políticas de planejamento urbano sustentável.
Além disso, cidades mais compactas, com serviços acessíveis a pé, o chamado urbanismo de proximidade, têm se mostrado mais resilientes às crises climáticas, econômicas e sociais.
O futuro sustentável com carro elétrico
Para Meiry Onohara, tornar o carro elétrico realmente sustentável no Brasil exigirá uma série de mudanças estruturais. “É necessário fortalecer a matriz energética com fontes renováveis, desenvolver a logística reversa para as baterias e expandir a infraestrutura de recarga e superar barreiras financeiras e de aceitação social.”, defende.
É essencial investir em políticas públicas e conscientização sobre o descarte correto, para que a transição energética não repita os mesmos erros do extrativismo tradicional. Enquanto as tecnologias de reciclagem e reaproveitamento avançam lentamente, a corrida por minérios se acelera e o dilema permanece: Estamos realmente caminhando para um futuro sustentável, ou apenas repetindo velhos padrões de exploração sob um novo discurso?
Gabriela de Menezes | Integrante PET Educom Clima