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“Não preciso provar que sou bissexual”

Marina Martinuzzi discute sobre os estereótipos do bissexual e os desafios para a visibilidade da temática



No Brasil, a visibilidade bissexual é muito reduzida. Existem poucas pesquisas científicas sobre suas especificidades e há pouca organização coletiva em torno do debate. Marina Martinuzzi é mulher e bissexual. Essa condição permite que ela perceba os pontos em que esses aspectos se cruzam, e é isso que dá forma à sua fala.

Ela compreende como um problema a dificuldade que a educação tem de abrir espaço para a discussão da sexualidade, de maneira geral, e, especialmente, das expressões de sexualidade desviantes do padrão heteronormativo. Seu discurso tem como questão central o reconhecimento – ou a falta dele: quem não identifica no outro uma semelhança, não consegue se organizar enquanto grupo e, consequentemente, tem pouco poder político. Com a Arco ela falou sobre a descoberta da sua bissexualidade, a dificuldade de se encontrar nas personagens da mídia e os problemas que os bissexuais enfrentam enquanto grupo. Confere:

Como foi o contato com a sua sexualidade ao longo da infância e início da adolescência?

Acho que a primeira vez que tive contato com alguma coisa fora das expressões heteronormativas foi quando vim morar em Santa Maria, entre 2010 e 2011. Por mais que eu já tivesse “ficado” com uma mulher, foi só nesse momento que comecei a sentir alguma coisa diferente de só um beijo em uma festa. Nunca tinha parado pra refletir que não sou hétero. Eu lembro que falava: “Ah, não quero rotular! Fico com pessoas, independente do sexo. Eu gosto de pessoas”.

Existe uma coisa sensível em você se identificar enquanto sujeito sexualmente ativo na sociedade e assumir essa característica: “sou bissexual” ou “sou lésbica” ou “sou gay”. Querendo ou não, é um fato político, porque a população LGBT é marginalizada, sofre preconceito. Eu só me assumi bissexual depois de um tempo, acho que quase um ano depois consegui pensar sobre tudo isso. As primeiras conversas que tive com a minha família recaíam em estereótipos: de uma pessoa promíscua, de alguém que não decidiu o que quer fazer da vida. “Isso acontece em uma festa? Tu vai ficar com homem e com mulher indiscriminadamente?”. A sexualidade ainda é tabu, não tem visibilidade. O movimento LGBT, como um todo, tem problemas neste sentido, de visibilizar só a luta dos homens gays – muito mais representada e pautada. Isso é problemático, porque invisibiliza e deixa de tratar a bissexualidade em outras esferas, como a das políticas públicas, da saúde, da saúde das mulheres.

A proximidade com o termo [bissexualidade] só chegou quando pesquisei sobre isso, procurei textos e relatos. Estar no movimento estudantil, feminista e LGBT facilitou bastante o contato. Para pessoas que não têm nenhum envolvimento com isso se torna muito mais difícil entender.

Qual foi o papel da sua família nesse processo? Vocês falam sobre o assunto?

A gente fala às vezes. Há um tempo, minha mãe falou “bissexual”, eu achei genial porque ela nunca tinha falado de mim enquanto bissexual, foi massa (risos). Depois que contei, namorei uma menina e isso parece que ficou estabilizado: “a Marina está com uma mulher, então ela já se decidiu”. Acontecem muitas interações preconceituosas no dia a dia. Às vezes, quando saio, minha mãe fala coisas como “vê se pega um cara bem bonitão, vê se troca um pouco, acho que vai te fazer bem”. Eu me considero muito privilegiada por também ter tido essa compreensão em casa. Por mais que aconteçam esses comentários, nada me afetou tão bruscamente a ponto de eu repensar ou de me castigarem por assumir essa condição.

Como foi quando você contou para os seus amigos?

Foi mais tranquilo entre os amigos, porque acabávamos compartilhando festas, envolvimento com pessoas. Eu tenho várias amigas lésbicas e amigos gays. Apesar de me identificar bem mais com mulheres, não excluo a possibilidade de me interessar por homens, e acho que neste sentido existe um pouco de resistência. Então, já ouvi alguns comentários, como “só falta pegar homem agora”.

Claro que esses comentários vêm de um ambiente completamente saudável e íntimo, então encarei como uma brincadeira e respeitei a opinião dessa amiga lésbica. Acho que existe muito respeito e que essa compreensão está sendo construída no dia a dia. Nós reafirmamos essa orientação por entender a sua importância política, a importância do ativismo LGBT como um todo para a conquista da igualdade de direitos. Com os círculos de amizade, em que nós prezamos pelas pessoas, as admiramos por elas serem quem são de fato, penso que, quanto menos julgamento acontecer, mais fácil o relacionamento sincero e essas trocas de vivências que englobam tanta subjetividade.

Você acha que a ausência de pessoas públicas assumidamente bissexuais reflete na compreensão da sociedade sobre esse tema?

Essa representação midiática é fundamental porque, se ela existir, o indivíduo vê que é possível não ser hétero. Mas não tem como condenar as pessoas que não se assumem, porque ainda existe muita discriminação.

Se a pessoa sai do armário e fala “eu sou bissexual”, ela dá margem para outra pessoa ao lado falar “eu também sou bissexual, vamos falar sobre isso, como foi com a tua família? Como foi com os teus amigos?”. A representação de figuras públicas é importantíssima nesse sentido também, de ter com quem se reconhecer. Lembro de uma matéria com a [cantora] Ana Carolina, que foi capa da Veja, quando se identificou como bi. Foi um dos momentos em que existiu essa discussão, porque todo mundo chamava ela de “machorra” e “sapatão”.

Na sua opinião, existe alguma cobrança sobre se “provar” como bissexual?

Uma amiga lésbica estava comentando, em conversa com outra amiga bissexual, os últimos relacionamentos dela, que foram só com homens. Então essa minha amiga lésbica falou: “ah, mas então cadê tu beijando menina?”, e ela se posicionou: “eu não preciso ficar beijando menina na sua frente pra comprovar que eu sou bi”. Então, muitas vezes, existe essa necessidade de comprovação, mesmo por parte de pessoas LGBTs. Se você não pode nem contar com o reconhecimento de pessoas que minimamente conhecem o que você está sentindo, como é que você espera que seja recebido por quem está fora dessa comunidade? Não preciso ficar anotando as mulheres e os homens com quem fiquei pra provar que sou bissexual.

Há uma certa contradição no que se refere à “promiscuidade”, não? Isso porque, ao mesmo tempo em que se pede para que bissexuais provem a sua sexualidade ficando com homens e mulheres, isso é visto como negativo.

É bem uma contradição mesmo, e ela existe hoje ainda muito latente, muito visível. As pessoas cobram que nós beijemos homens e mulheres e, se chegamos a expressar isso na frente de alguém, recai num outro estereótipo de “ah, tá pegando todo mundo”.

Isso só existe por não haver uma articulação maior. Vemos opiniões, textos que denunciam esse discurso pronto da promiscuidade, só que isso acontece de uma forma bem esparsa: sai um texto aqui, tem outro blog ali, mas você vê que não existe uma unidade que possibilite dizer “eu não preciso dar explicação”. Isso incide muito mais sobre as mulheres, porque é a mulher que é a “puta”, a que está “ficando com todo mundo, que está enlouquecida, bêbada”. Ao contrário dos homens, porque “se ele deu um beijo triplo, ele só estava curtindo”.

Em relação às mulheres, existe também o problema da fetichização.

Sim, se tem duas mulheres se beijando, sempre vai ter um cara que vai querer se meter. Isso se vê em festa, em grupo no Whatsapp, em conversa. A bissexualidade também recai nessa desculpa de “ah, mas tu não é bissexual?”, sendo que isso desrespeita a subjetividade, o que a pessoa está afim de fazer no momento.

As mulheres bissexuais são fetichizadas porque [se pensa]: “se elas podem satisfazer os homens, porque elas vão querer satisfazer as mulheres?”. Dentro desse sistema machista que a gente está inserido, um homem pensa que “se ela pode satisfazer os dois, por que eu não posso estar aí também?”. E isso acontece por não haver um grupo fortificado que consiga se identificar, se expressar e que consiga afirmar: “sou bissexual e a minha sexualidade não está para satisfazer o que tu pensa e deseja pra ela”.

Parece um ciclo vicioso. Falta essa identificação dos indivíduos enquanto bissexuais, o que faz com que eles não se articulem entre si, o que faz com que o tema não tenha visibilidade… E começa de novo. Como resolver isso?

Primeiro, a importância de não ter medo de assumir isso enquanto posicionamento político. Acho que isso, além de fortalecer o diálogo e a organização, consegue mudar a sua própria experiência individual. Porque você não vai ter mais medo quando vierem jogar uma piadinha. Você, enquanto indivíduo, sabendo dessa importância de se colocar e falar: “não fala desse jeito” ou “respeita porque existe um grupo aqui, existem essas pessoas, existe minha forma de expressar a minha sexualidade”. A visibilidade só é construída quando, de fato, as pessoas conseguem enxergar outras que passam por situações semelhantes, e a partir disso construir essa rede de sentimento e discursos.

Repórteres: Kauane Muller e Paola Dias
Fotos: Rafael Happke

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