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Trezentos anos de dívida histórica



No Brasil, de forma oficial, a escravidão teve fim no dia 13 de maio de 1888. Depois de muita pressão e revolta dos negros escravizados, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea,  que decretava a libertação dos escravos no país. No entanto, com a precariedade de informação e formação das pessoas da época, principalmente quando se tratava de escravos de senhores, a situação desse povo só piorava. Isso ficou claro quando a Lei Áurea foi assinada, já que muitos desses escravos sentiram na pele as dificuldades de não ter uma formação, saber ler ou ter o que comer. 

Sem saber o que fazer ou para onde ir, muitos continuaram a trabalhar para os senhores donos de latifúndios por troca de sobras de comida e por um teto. Eram mão de obra braçal.  Ainda no período colonial, a revolta dos negros, deu origem aos quilombos. O maior e mais conhecido da América Latina é o quilombo dos Palmares, localizado no nordeste, no estado de Alagoas.

O que significa o termo quilombola?

O termo quilombola se refere a um povo que se alocava em lugares altos e de difícil acesso, como perto de rios ou na mata, já que sempre acabavam sendo escorraçados por outros povos dominantes. Descendentes de  ex-escravos, que fugiam  de seus senhores ou que compravam a sua alforria, mas que mesmo assim eram considerados fugitivos. 

A palavra quilombo origina-se do termo kilombo, presente no idioma dos povos Bantu, originários de Angola, e significa ‘local de pouso ou acampamento’. Os povos da África Ocidental eram, antes da chegada dos colonizadores europeus, essencialmente nômades, e os locais de acampamento eram utilizados para repouso em longas viagens. De acordo com o dicionário on-line da língua portuguesa atual, a palavra quilombo significa refúgio.

“Ninguém melhor do que nós para contar a nossa história”  

Luiz Conceição

Descrição: Fotografia antiga, enquadrada do peito para cima, na cor sépia, de uma mulher negra idosa, sorrindo timidamente. Ela é magra, com cabelos crespos e brancos, e veste uma camisa branca. Ao fundo, uma parede de madeira escura e rústica.

 

Senhora Maria Isabel Pinto, que dá origem ao nome da associação da comunidade ‘Vovó Isabel’.

Flávio Moreira, presidente da associação da comunidade Quilombola ‘Vovó Isabel’, localizada em Nova Palma, Região Central do (RS), diz que: “a comunidade existe desde 1840, mas tem um passado um pouco turbulento, por conta das invasões dos campeiros, que invadiam as terras ocupadas pelos povos tradicionais/quilombolas e arrastavam suas casas, acarretando na fuga de muitos moradores para o meio do mato, o que fez com que muitos não voltassem ao lugar de origem por medo”. Assim como na ‘Vovó Isabel’, essa história de invasões se repetia nas demais comunidades, pelo fato de ex-escravos serem considerados inferiores se comparados a pessoas brancas, e da não aceitação dos colonizadores em dividir o espaço de convívio. 

Descrição: Fotografia antiga em retrato, na cor sépia, enquadrada da cintura para cima, de um homem negro vestindo farda policial e um quepe. Com feição séria, o homem olha para a câmera e posiciona suas mãos na altura do estômago. Ao fundo, uma parede de concreto.

 

O senhor Acácio Flores, homem que dá origem ao nome da associação da comunidade ‘Acácio Flores’.

Na Quarta Colônia há, até os dias de hoje, cinco comunidades quilombolas: duas localizadas no município de Restinga Seca, uma em Nova Palma e outra em Dona Francisca. Todas possuem o certificado da Fundação Palmares, que comprova que as comunidades são remanescentes quilombolas. Além dessas, há a comunidade de Silveira Martins, que está em processo de certificação, processo esse que tem o auxílio do projeto de extensão da UFSM, Consórcio Quilombola, coordenado pelo professor de Direito José Luiz de Moura Filho.

De forma notória, os povos quilombolas foram escanteados e acabaram às margens da sociedade, separados e afastados uns dos outros, para que perdessem a voz e a força. Como resultado, as comunidades não sabiam da existência umas das outras, mesmo séculos depois. Um dos líderes da comunidade ‘Acácio Flores’, Luiz Conceição, relata que: “Nós da comunidade Acácio Flores, não sabíamos da existência de comunidades quilombolas nas cidades de Silveira Martins e Nova Palma, apenas conhecíamos a de Restinga Seca”.

Projeto de extensão da universidade

Pensando nessa problemática da falta de comunicação, de voz e vez das comunidades negras e, principalmente, quilombolas, foi desenvolvido um projeto de aproximação dessas comunidades, o projeto Consórcio Quilombola. Desde 2020, os encontros acontecem de maneira presencial apenas com os líderes das comunidades, que respeitam as regras de prevenção à Covid-19.

“Este projeto é uma sequência, um desdobramento de um projeto anterior que nós tínhamos em 2020 que é o geopa quilombo”. Dentro do plano estratégico e institucional da Universidade Federal de Santa Maria, que visa credenciar e certificar o território de Caçapava do Sul e da Quarta Colônia como geoparques. “O intuito do projeto, além de aproximar as comunidades quilombolas, é deixar as comunidades cientes e informadas sobre as políticas públicas, especialmente as voltadas à sociedade, à população negra, mais precisamente a quilombola, na área de habitação, saúde, educação, geração de renda, entre outras”, explica Moura Filho.

A Universidade Federal de Santa Maria também atua em conjunto com a cidade de Caçapava do Sul, com o projeto de extensão “O Patrimônio Cultural Sobre a Morte nas Áreas Quilombolas em Picadas das Vassouras”, coordenado pela professora de Arquivologia, Fernanda Kieling Pedrazzi.  A professora explica que o objetivo é valorizar as comunidades quilombolas e divulgar os documentos e espaços sobre a morte dessas comunidades. Ela informa ainda que pretende criar “um evento online sobre os achados em campo voltado a discutir este tema, levantando questões funerárias de tradição, cultura, identidade, memória e patrimônio em consonância com as novas tecnologias e ainda organizar e publicizar os documentos referentes à morte e enterro de membros de comunidades remanescentes de quilombos”. 

“Considero esses projetos excelentes, pois precisamos nos unir, estávamos distantes e sem comunicação. Chegou a hora do negro aparecer, pois nós não somos reconhecidos”, relata Conceição, membro da comunidade ‘Acácio Flores’. Além da união entre as comunidades, Moreira destaca que: “é preciso fortalecer a região, fazendo eventos culturais, com a contribuição de todas as comunidades, porque aqui na quarta colônia, se fala do alemão e italiano, e nós somos deixados de lado, além de ser pouco falado e valorizado. Assim, quanto mais unidos, mais fácil se torna o acesso, pois vamos acabar tendo mais força”.

Resgate: cultura, tradição e história

Descrição: Fotografia horizontal, em preto e branco, de nove meninas negras de seis a onze anos. As seis meninas maiores estão atrás, e três menores na linha da frente. Todas elas estão vestidas de baianas, com blusa branca e saia florida até os pés. Todas estão sorrindo, e usam acessórios, como laço de cabelo na cor branca e colares de miçanga.

 

Alunas da escola e da comunidade Vovó Isabel, no resgate da cultura afro, por meio da vestimenta tradicional antes da apresentação de música.

Um dos principais objetivos do Projeto de aproximação das comunidades é mostrar a cultura, a religião, os costumes e outras tradições desses povos. “A ideia é estabelecer algum tipo de equipamento, como por exemplo um museu, estamos discutindo com as lideranças comunitárias e possivelmente agora, ainda nesse ano, se a pandemia der uma trégua, reunir em um coletivo mais amplo, conversando com todos os moradores da comunidade e não só as lideranças”, explica o professor Moura Filho. 

As comunidades quilombolas já têm trabalhos de resgate à cultura e tradições nas próprias instalações. A comunidade ‘Acácio Flores’ trabalha com grupo de dança afro, que carrega consigo questões de dança, raça e crenças, além da turma de percussão, que recebe todos do município. Na comunidade ‘Vovó Isabel’, é ensinado a história, as origens na escola local, além do grupo de capoeira, percussão e dança afro. Na localidade de Martimianos é trabalhado o artesanato.

A religião nessas comunidades ainda é um ponto a ser discutido e levado ao debate, pois em nenhuma das comunidades há a presença de uma religião de matriz africana, apenas cristãs. Moreira relata que: “a questão da religião ainda não foi retomada, para não haver um conflito, seria importante conhecermos um pouco mais, mas nem todos entendem da mesma forma”. A fala do líder comunitário referenda o preconceito que as pessoas ainda têm não só com as comunidades, mas também com as religiões de matriz africana.

A atuação do jovem

Uma das lideranças da  comunidade de Martimianos, em Restinga Seca, Teresinha Paim, relata que “Os jovens da nossa comunidade tem uma participação muito boa, eles querem colaborar  e trabalhar, e eu considero isso muito bom, pois daqui a alguns anos eles irão puxar a frente”. 

Ao ser questionado sobre seu papel na comunidade, o acadêmico de Educação Física, e remanescente Quilombola, Hueliton da Silva, relata “pretendo manter contato e criar algum programa de estímulo ao estudo e profissionalização, tendo em vista a baixa média de ingresso em universidades pelos membros da comunidade”. O universitário tem ciência da importância do estudo e da formação acadêmica, e vê na graduação “uma oportunidade de romper o ciclo de dependência como mão de obra de agricultores que cercam o entorno da comunidade”. Para ele, é uma maneira  de se  profissionalizar, aumentar o conhecimento e ser exemplo para os demais integrantes da mesma”.

Atualmente, há 21 jovens matriculados na UFSM e que pertencem a três comunidades quilombolas da Quarta Colônia, mas esse número pode e deve ser maior. A acadêmica de Zootecnia, Thaís da Silva Moreira, diz que se vê como “privilegiada, tenho orgulho das minhas raízes, mas na minha percepção acredito que a condição financeira é umas das dificuldades que mais implica para se manter na Universidade nos dias atuais, mas não que seja um bloqueio ao conhecimento”.

A condição financeira de algumas pessoas dessas comunidades negras, muitas vezes, é precária, muitas estão em estado de vulnerabilidade social, em consequência de  governos omissos e de um sistema opressor. Dados de analistas, com base no Mapa da Fome da ONU, mostram que o Brasil sofreu um grande retrocesso ao voltar a constar no mapa da fome, por conta da queda do PIB de 2015 e, mais recentemente, devido à extinção do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, pelo atual presidente do país, ainda no seu primeiro ano de mandato, afirma Luciano Alencar Barros, professor de economia da UFRJ. 

Esses dados vêm ao encontro da fala de Silva: “na comunidade, geralmente é estimulado o trabalho de auto-sustento, pois muitos precisam trabalhar, o que acarreta em um sujeito sem um horizonte, ganhando o de cada dia e continuando o ciclo de peonagem braçal da comunidade”. O acadêmico relata a realidade de muitos jovens brasileiros, que abandonam os estudos por necessidades financeiras, acarretando em um baixo nível de escolaridade, principalmente de pessoas negras e periféricas.

No entanto, um ponto positivo e que deve ser comemorado é a inserção dessas pessoas na Universidade, por intermédio de programas governamentais, como por exemplo, do Sisu, Prouni. O sistema de cotas abrange as mais diversas pessoas da sociedade e torna o ensino superior um lugar de inclusão e de todos. 

Apesar de muito criticado, o sistema de cotas foi uma forma de amenizar uma dívida histórica da sociedade com a população negra e indígena, pois não pode ser esquecido que o Brasil escravizou e eliminou esses povos por mais de 300 anos, e isso ainda se reflete em nossa sociedade atual. Portanto, não se trata de favor, caridade ou doação, mas sim de direito à participação, a ouvir e ser ouvido, é uma questão de respeito. E é o que o povo preto luta e busca.

Vovó Isabel – É o nome da associação da comunidade, remete à ex-escrava e uma das primeiras a se estabilizar no local em 1907, onde viveu com seus 13 filhos até a partida, assim, ela viu toda a evolução da comunidade, além de ter sido a moradora mais antiga que tem registro. Vale ressaltar que a comunidade também é reconhecida pelo seu nome Cristão, Rincão do Santo Inácio.

Instagram:  @vozes_do_quilombo

Facebook: Quilombo Vovó Isabel

Acácio Flores – O nome que dá origem ao da comunidade é também o da rua em Dona Francisca, onde se encontra a sede da comunidade. Acácio Flores veio da Bahia, ajudou a construir a escola, hospital, igreja, etc. Além disso, criou seus quatro filhos sozinho, após o falecimento de sua esposa. Ainda se tornou policial e foi protagonista em um cenário onde o negro era tido como figurante.

Facebook: Acácio Flores 

Vovô Geraldo de Rincão dos Martimianos – Era o nome do antigo dono das terras, onde se localiza a comunidade hoje, e marido de uma ex-escrava, que têm seus descendentes residindo e resgatando a cultura e os direitos da comunidade.

Créditos:

Reportagem: Willian da Silva 

Fotografia: arquivo da comunidade Vovó Isabel e Associação Acácio Flore

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