No interior da região central do Rio Grande do Sul, açudes sempre foram parte da paisagem rural. Mas, por muito tempo, eles serviram principalmente como reserva de água ou para pescarias ocasionais. Agora, com o apoio do projeto ProgeAqua – Programa de Geração de Renda e Qualidade do Pescado, liderado pelo Programa de Pós-Graduação em Zootecnia da UFSM, produtores rurais começam a descobrir um novo potencial nesses espaços: a criação de peixes como alternativa de renda e alimento saudável para as famílias. O ProgeAqua é um dos projetos selecionados pelo PROEXT-PG da Universidade e tem trabalhado na capacitação de produtores rurais que desejam transformar os açudes de suas propriedades em espaços produtivos.
Dois fatores decisivos: nutrição e qualidade da água
O professor Rafael Lazzari, coordenador da iniciativa, explica que a proposta é atuar diretamente na qualificação de uma atividade que ainda é muito incipiente na região.
“Até agora, o modelo que tem se praticado aqui é antigo, das décadas de 1980 e 1990, baseado na criação de carpas. Hoje, porém, o grande foco do mercado é a tilápia, voltada à produção de filé.” A mudança, segundo ele, tem razões práticas e mercadológicas, já que a tilápia é muito bem aceita por não ter espinhos, o que torna seu consumo mais seguro e acessível para todos, inclusive para crianças e idosos.
A qualidade do filé e o sabor do peixe, explica Lazzari, são consequência direta das boas práticas de criação. Segundo ele, entre os principais fatores que influenciam o sabor estão a nutrição e a qualidade da água, aspectos que estão diretamente relacionados.
No caso da alimentação, os peixes podem receber ração específica ou se alimentar dos microrganismos presentes na água, como algas e fitoplâncton. O professor observa que a tilápia se destaca por conseguir aproveitar as duas fontes de alimento, tanto a ração quanto os microrganismos da água.
Essa característica, no entanto, exige atenção: o equilíbrio da dieta é fundamental. “Se a ração tiver nutrientes desequilibrados ou excesso de gordura, isso vai ser depositado no peixe. É como na nutrição humana: se o organismo gasta menos do que consome, acumula gordura. E essa gordura vai interferir na textura e, principalmente, no sabor e na aceitabilidade do filé.” Além do sabor, o excesso de gordura compromete a conservação. Alimentos com muita gordura, se conservados indevidamente, podem passar por processos de rancificação e deterioração.
Nos cursos, a equipe do ProgeAqua ensina manejo alimentar, orientando os produtores sobre número de refeições diárias, quantidade, cálculo de ração e melhores horários. O professor explica que o objetivo não é ensinar a formular ração — tarefa feita no grupo de pesquisa —, mas mostrar como manejar a alimentação para que o peixe cresça bem e tenha um filé de qualidade.
Outro fator determinante para o sabor do peixe é a qualidade da água. Ela está relacionada tanto ao que o peixe excreta quanto ao tipo de açude onde é criado. Lazzari explica que, quando o ambiente é muito barrento e com acúmulo de lodo, torna-se inadequado, pois há acúmulo de gases e risco de contaminação. Nessas condições, podem surgir bactérias que produzem substâncias absorvidas pela pele do peixe, deixando o sabor desagradável.
Nos cursos, os produtores aprendem a manejar a qualidade da água desde a construção do açude até o monitoramento dos parâmetros químicos. De acordo com o professor, todo o processo começa no cuidado com o solo, na adubação e no enchimento do açude. A cor da água é um indicador importante: águas muito verdes ou barrentas exigem ajustes. O produtor que domina esse manejo tende a ter melhores resultados.
Uma das formas de controle é por meio de equipamentos eletrônicos, que são mais caros. Outra possibilidade são kits simples de análise, parecidos com os usados em piscinas, que medem parâmetros como oxigênio, transparência, pH, alcalinidade e amônia. A partir dessas medições, é possível avaliar se o açude está adequado para a criação. Segundo Lazzari, se os produtores seguirem as recomendações técnicas, eles ganham em produtividade, renda e qualidade dos peixes produzidos.
Do açude à mesa do cidadão
Os cursos do ProgeAqua usam fotos e exemplos práticos para mostrar os efeitos da má gestão. “A gente mostra, por exemplo, uma água muito verde, com excesso de algas, e explica que isso muda o sabor do filé, ou, quando o produtor coloca muita ração, o oxigênio cai e os peixes morrem. Mostramos as fotos e explicamos o porquê”.
O projeto busca fortalecer a piscicultura regional e ampliar a oferta de pescado saudável à comunidade. A proposta pretende ainda que haja envolvimento do poder público, com a expectativa de que as prefeituras incorporem o peixe local a programas como o Programa Nacional de Aquisição de Alimentos (PAA).
Lazzari ressalta a importância de políticas de incentivo, como leis municipais de apoio e ações de acompanhamento técnico. Alguns municípios já monitoram a qualidade da água e incluem o pescado regional na merenda escolar. Ele observa que o fortalecimento da piscicultura familiar depende desse tipo de apoio.
Mais do que um alimento com valor econômico e nutricional, o pesquisador também aponta novas possibilidades de uso do pescado: a tilápia desponta como fonte de inovação, com pesquisas que utilizam sua pele no tratamento de queimaduras e com perspectiva de uso no Sistema Único de Saúde (SUS).
Expediente:
Reportagem: Luciane Treulieb, jornalista
Design: Evandro Bertol, designer