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Arco entrevista escritor Milton Hatoum

Autor brasileiro foi convidado para encerrar o último dia da festa literária de Santa Maria (FLISM)



Ilustração colorida na horizonal. O fundo da imagem é dividido ao meio entre duas cores - verde e vermelho bordô. À esquerda, a silhueta de um homem com óculos lendo um livro. À direita, a legenda de "Entrevista: Milton Hatoum".

Com o intuito de promover debates e divulgar a literatura para a comunidade santa-mariense, a Festa Literária de Santa-Maria (FLISM) foi realizada pela primeira vez, em 2018, no auditório da Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria (Cesma). Através de conversas sobre (e com) grandes escritores, as discussões são mediadas por professores, agentes culturais, críticos literários e autores locais. 

O evento foi idealizado pelos professores do Curso de Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Raquel Trentin e Enéias Tavares, juntamente com o professor do Curso de Música da UFSM, Gérson Werlang. Durante os quatro anos de realização, vários escritores renomados passaram pelo evento, como Ignácio de Loyola Brandão, Luiz Ruffato e Leticia Wierzchowski.

O professor do Departamento de Letras vernáculas da UFSM, Pedro Brum, comenta que a FLISM permite que os participantes desenvolvam o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza e a percepção da complexidade do mundo, através da experiência literária como atividade que reforça o ato de pensar criticamente sobre o que se lê, sobre as realidades implicadas no ato de produção e de leitura. 

Em 2020, a pandemia de Covid-19 impossibilitou a realização do evento na Cesma, mas os organizadores conseguiram adaptá-lo para o meio online. Por isso, a terceira edição ficou conhecida como ‘FLISM em Casa’. Nesta quarta edição, em 2021, que aconteceu entre os dias 13 a 16 de julho, também de forma remota – transmitida pelo canal do YouTube -, a festa teve, pela primeira vez, a presença de uma escritora internacional, a autora portuguesa Lídia Jorge. Ainda como parte da programação, houve discussões com poetas locais,  uma conversa com André Diniz sobre sua graphic novel, A Revolta da Vacina, publicada pela editora DarkSide Books, e um debate com o escritor Milton Hatoum, mediado pelo professor Brum, que encerrou a FLISM.

Premiado escritor brasileiro, Milton Hatoum nasceu em Manaus, no Amazonas. Seu primeiro livro, o Relato de um Certo Oriente, foi publicado em 1989 e venceu o Prêmio Jabuti – premiação tradicional da literatura brasileira. Em 2006, seu livro Cinzas do Norte, publicado em 2005, também levou o prêmio na categoria de Melhor Romance. Dois Irmãos, publicado em 2000 e Órfãos do Eldorado, publicado em 2008, ganharam adaptações audiovisuais. O autor também foi professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) de 1984 a 1999.

Para Brum, o que mais lhe impressiona na obra de Hatoum “é o sentido de busca de uma identidade que é, ao mesmo tempo, manauara, brasileira, libanesa ou tudo isso ao mesmo tempo, expressa sobretudo no engenho de seus narradores”.  Diante disso, a Revista Arco conversou com Milton Hatoum sobre suas obras,  o contexto da leitura no Brasil e a importância de eventos como a FLISM.

ARCO: Quais livros formaram quem você é hoje?

Bom, como livros formadores, posso citar o Érico Veríssimo, o Graciliano Ramos, que foram importantes. Li um pouco de literatura francesa, na minha primeira juventude em Manaus, e também os contos do Machado de Assis, li também parte dos Sertões, de Euclides da Cunha, foram autores importantes na minha vida. Naquele momento, dos 12 aos 15 anos, antes de viajar para Brasília, foram autores fundamentais, porque não havia televisão em Manaus, então o nosso acesso ao Brasil era através da literatura e de fotografias. Aprendi muito com Vidas Secas, do Graciliano Ramos, por exemplo, conheci o sertão da vida sertaneja, da cultura sertaneja, da brutalidade social e da miséria. Anos depois, reli esses livros e aos poucos me aprofundei em outras obras também, de outras línguas. Tive sorte, na infância, pela presença de um narrador oral que era o meu avô materno, e isso estimulou a minha imaginação, do contador de histórias com a sua sabedoria, de experiência de vida. Retribuí muito tempo depois com um conto do livro A Cidade Ilhada, que homenageia esse narrador oral. Enfim, tive sorte de ter tido bons professores na escola pública, no Colégio Pedro Segundo em Manaus, depois em Brasília e São Paulo, foi importantíssimo. Enquanto não se investir em educação pública de qualidade, nós vamos ser apenas caricaturas de democracia que nunca foi tão caricata quanto é nos dias atuais.

ARCO – Em relação às suas obras, a memória é o tema em comum que perpassa por todas elas. A vida em Manaus, a herança libanesa e agora na trilogia O Lugar Mais Sombrio, a ditadura. Como é o processo de articular o passado com o presente e colocar suas lembranças nos romances, ou seja, como é distinguir no desenvolvimento da escrita o que é ficcional e o que é memória?

Seria um movimento. Porque a memória de um passado distante – e isso sempre trabalhei nos meus livros, por isso levo tanto tempo para escrevê-los, às vezes dez anos como aconteceu com Dois Irmãos ou com a trilogia O Lugar Mais Sombrio -; a memória, eu penso como um movimento do passado que chega ao presente. Não é algo cristalizado no passado, ela repercute no presente. Portanto, todo esse movimento é construído pela linguagem, pela forma mais importante na literatura. Como que você constrói a sua narrativa?, de qual ponto de vista?, questões técnicas de estrutura de personagem, de conflitos de tempo e de espaço. E tudo isso, relacionado com a minha experiência de vida e de leitura, tem a ver com uma reflexão sobre a minha cidade ou sobre as cidades onde vivi. De alguma forma, todos os meus romances possuem a vontade de dialogar com o presente. Quando escrevo sobre a Amazônia no Dois Irmãos ou no Cinzas do Norte, estou relatando um tempo desses conflitos humanos, de um quadro histórico. A memória assume um papel importantíssimo, daquelas passagens da vida um pouco ofuscadas ou nebulosas, que constrói, através da imaginação, o pilar mais importante de uma obra de arte. A questão é transformar a imaginação em linguagem.

ARCO – Qual a importância de eventos que promovem debates literários, como a FLISM?

É auspicioso, é importantíssimo e fico grato pelo convite de participar desse festival, patrocinado por uma universidade pública. Também fui professor de uma instituição pública, a Universidade Federal do Amazonas (UFAM), durante 15 anos, inclusive no período do governo Collor (1990-1992) – outro mandato presidencial insidioso que trabalhou contra as universidades, contra o ensino público; que não estava interessado na pesquisa, na educação, enfim, no financiamento dessas universidades. Então, o evento é de grande importância, porque assim podem surgir questões literárias e, de modo oblíquo ou indireto, questões políticas também. A presença de professores, de pesquisadores, de estudantes e do público de um modo geral em um evento patrocinado e promovido por uma universidade pública é algo importantíssimo nesse momento trágico da vida política, social e cultural brasileira.

ARCO – Nos últimos anos, no Brasil, estamos percebendo um aumento da desinformação, de ataques à liberdade de imprensa e de expressão. Enfim, uma intensificação de discursos de ódio. Você considera que a literatura e outras formas de expressões culturais e artísticas podem ser uma maneira de lutar contra esses atos de repressão?

Sim. Mas, a literatura e as artes, de um modo geral, não são discursos ideológicos. Quando você lê um romance, geralmente, o leitor ou a leitora faz perguntas e são elas que conduzem a reflexão de uma questão, de um problema ou de um conflito humano. Então, eu acho que em qualquer circunstância a literatura é uma espécie de salvação. Permite uma viagem da imaginação através da linguagem e também apresenta uma forma de reflexão sobre o presente que vivemos. O que acontece, hoje, no Brasil, é uma forma de opressão que inibe muitas pessoas. Mas não nos cala, nós não somos obrigados a silenciar. Então, por isso, escrevemos, precisamos ler e continuar a fazer o ofício que mais nos satisfaz. No meu caso, o que me move para escrever é o desejo. Porém, a situação é muito adversa para quem admira ou para quem convive ou não pode viver sem a arte, sem a imaginação. A dificuldade de financiamentos para filmes, para peças de teatro, para festivais de músicas, prejudica a produção artística no Brasil, o que é muito preocupante.

ARCO – Poderia comentar um pouco sobre a problemática levantada pela Receita Federal e por outros membros do governo sobre a taxação de livros e sobre a declaração que “pobres não leem livros”?

A elite do governo acredita que o livro é artigo de luxo para poucos, consumido por poucos e assim exclui a massa de brasileiros, a grande maioria dos brasileiros que gostariam de ler. Agora, dizer que só os ricos gostam de ler é de fato uma afirmação das mais preconceituosas e uma grande mentira. Uma afirmação sem nenhuma evidência na realidade. Como comentei, fui professor por quase 15 anos em universidade pública. Meus alunos e minhas alunas eram pessoas humildes, de famílias humildes, e todos queriam ler. Havia um desejo enorme de ler e, às vezes, eles não podiam comprar – muitas vezes eu fotocopiava livros ou doava para a própria biblioteca que não possuía certas obras. Então, há uma carência enorme, sobretudo no Amazonas. Por isso, a elite brasileira é preconceituosa e cruel. E o Ministro da Economia responde aos anseios dessa elite, na verdade, ele pertence a essa elite e não está preocupado com a qualidade de vida do povo brasileiro, nem com acesso à educação pública de qualidade e à cultura. Mas nós devemos criticar isso, não silenciar, e apostar na força da literatura cujo alcance aparentemente é pequeno, no entanto tem o poder de formar leitores. Como dizia Antônio Candido, nosso maior crítico literário, “o direito à literatura também faz parte dos direitos humanos”. Então, o festival de literatura promovido por uma universidade pública dá sentido e dá densidade a esse direito.

 ARCO – Para finalizar, gostaria de saber: o que significa a literatura para você? 

A literatura é uma das formas de se ver o mundo, não é um espelho do real, contudo é uma tentativa de reproduzir a realidade. Na verdade, o escritor ou a escritora, de algum modo, criam um universo ficcional e trabalham com isso para expressar suas inquietações, seus fantasmas e os conflitos humanos. No centro de tudo isso está a linguagem. Muitas vezes, o que se lê expressa o mundo interior, subjetivo, em vez de o mundo no qual vivemos. São mergulhos da intimidade, a obra da Clarice Lispector é um exemplo.

Expediente

Reportagem: Eduarda Paz, acadêmica de Jornalismo e voluntária da revista Arco

Ilustração: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista

Mídia Social: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Eloíze Moraes e Martina Pozzebon, estagiárias de Jornalismo

Editora de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista

Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas

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