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O passado continua vivo nas lembranças

Pesquisa etnográfica com descendentes de imigrantes italianos no Brasil e na Itália mostra a importância das narrativas



Para contadores de história, descobrir objetos, lugares e costumes de antepassados é manter tradições e memórias vivas. A nostalgia de um tempo em que não se viveu permite ao narrador ter o sentimento de pertencimento a um lugar no mundo, mesmo que de forma subjetiva.

A migração italiana no Brasil começou no período da República, no final do século 19. No Rio Grande do Sul, iniciou com mais intensidade em 1875, para as colônias de Conde D’Eu (hoje a cidade de Garibaldi), Dona Isabel (Bento Gonçalves) e Caxias (Caxias do Sul). Já na região central do Estado, o movimento ocorreu a partir de 1877.

A presença italiana no sul do Brasil pode ser percebida em diversos elementos, como o cultivo da uva; a culinária (pratos como nhoque, capeletti e ravióli); e o catolicismo (manifestado na construção de grutas e monumentos erguidos em homenagem a santos).

Diante disso, a professora Maria Catarina Chitolina, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), realizou uma pesquisa etnográfica com descendentes de imigrantes italianos no Brasil, onde pesquisa desde 1997, e na Itália, onde realiza o trabalho desde 2012. O objetivo é analisar a importância do papel desempenhado pelas narrativas, objetos e lugares em relação ao pertencimento do “mundo italiano” por meio desses descendentes.

Ao longo dos anos de estudo, a pesquisadora entrou em contato com fotografias, livretos de orações, bilhete de viagem ilegível, documento apagado e incompreensível, crochê da nonna, cadernos de receitas, imagens que estavam digitalizadas nas telas dos computadores e celulares ou revitalizadas em molduras. Algumas vezes, eram objetos que não podiam ser tocados devido à importância sentimental.

Além dos objetos materiais, locais também evocam sentimentos de pertencimento, como estações de trem, livrarias, restaurantes, avenidas e cafés. Para os descendentes, tanto no Brasil quanto na Itália, a narrativa relacionada aos antepassados por meio de artefatos e lugares é a maneira de imortalizar, em cada palavra, um tempo que não volta mais.

As pesquisas centraram-se na região do Lázio e Vêneto, na Itália; no Brasil, foram focadas na região Central do Rio Grande do Sul, como no distrito de Vale Vêneto. As investigações originaram diversos trabalhos da pesquisadora Maria Catarina, entre eles o artigo do qual extraímos alguns trechos para compor este Diário de Campo: “Eu ficava ali, olhando o céu: Narrativas, imagens, objetos, personagens e lugares em pesquisas etnográficas com descendentes de imigrantes italianos no Brasil e na Itália”. O texto foi publicado em 2020, no livro Entre a Itália e o Brasil Meridional – História oral e narrativa de imigrantes.

“Uma pausa para olhar o céu e a paisagem”

A maior parte das entrevistas na Itália foi efetuada em locais considerados especiais para os entrevistados: em Roma, pude conhecer estações de trem e metrô, locais históricos, ruas e avenidas, cafés, monumentos, livrarias, restaurantes, mercados, lojas, feiras, igrejas, casas, partes da cidade que traziam memórias e algum vínculo de pertencimento para os ítalo-brasileiros que lá estavam habitando.

Fui apresentada a alguns destes cenários da metrópole urbana como lugares repletos de significados. Aquele café, no qual se ficava um pouco, na saída de uma estação de metrô, entre o trabalho da manhã e o trabalho da tarde, quando se tinha um pouco de tempo e uma pausa para olhar o céu e a paisagem.

Depois de algumas entrevistas, era comum me convidarem para passear por determinados lugares, salientando a importância que tiveram em seu processo “migratório” e na nova vida na Itália. Seja de metrô, de ônibus, de carro ou a pé, fiz muitos passeios na Itália com meus entrevistados.

“Eu visitei seu passado pelas ruas de Roma”

Se no Brasil eu era convidada a conhecer jardins, hortas, galpões, mobílias, pedaços de terra, capitéis e casas, na Itália também fui convidada a fazer passeios por paisagens exteriores e interiores dos descendentes de imigrantes italianos. Nos entrecruzamentos entre exterioridades e interioridades, as narrativas se tornam possíveis ou mais absorvíveis, por vezes.

Em Roma, uma entrevistada (ítalo-brasileira) me levou para o local no qual começou sua estadia na cidade, décadas atrás, em tempos que, para ela, foram muito difíceis e me mostrou os lugares nos quais caminhava nos horários de folga do trabalho, quando saía para estar um pouco “consigo mesma”. Não eram locais de consumo, mas de passeio contemplativo. Andamos bastante pela cidade e pude compreender, por meio da narrativa e da caminhada, como teria sido sua experiência de ítalo-brasileira na Itália.

Anos narrados em palavras, compreensíveis e agora também, reflexivamente, olhados pela interlocutora. Eu visitei seu passado pelas ruas de Roma e ela também. Fizemos juntas. E esta possibilidade do encontro etnográfico é sempre surpreendente.

Assim, pelas ruas de Roma, conheci um pouco dos ciclos de vida de uma ítalo-brasileira, relatados como fatos da juventude (no passado) e fatos da maturidade (no presente da narrativa).

“Evocação ao vivido e experienciado”

Muitos dos objetos, lugares e imagens que conheci durante as pesquisas são por mim compreendidos como portadores de “mana” – valor mágico, valor religioso, até mesmo valor social – de uma energia especial, de uma força e poder simbólico imenso e potencializador de narrativas e pertencimentos […] A vida de gerações sendo ali narradas e décadas de história familiar e individual também.

O bilhete de viagem já ilegível, o documento apagado e incompreensível, o pano de louça encardido pelo tempo, mas com o crochê da nonna, a tigela quebrada, a panela sem tampa, o sapatinho usado pelos filhos quando bebês, enfim, objetos que, para os narradores, eram potencialmente repletos de sentimentos e plenos em si mesmos.

Algumas vezes havia objetos que estavam guardados em caixas simples (mas especiais), muito bem cuidados, aguardando o momento de serem novamente manuseados e narrados. Eram uma evocação ao vivido e experienciado, seja dos próprios descendentes ou das narrativas acerca dos antepassados, das origens, da família, de acontecimentos ou ciclos de vida.

“construções das memórias e das narrativas”

E, nas situações por mim presenciadas, do importante papel das origens familiares, da família como importante valor e das narrativas acerca do pertencimento do “mundo italiano” advindo do processo migratório dos antepassados.

E, entre os ítalo-brasileiros na Itália, pude conhecer o poder das imagens e das novas tecnologias de comunicação nos processos de identificação e nos pertencimentos, especialmente na manutenção de vínculos afetivos, familiares e nas construções das memórias e das narrativas.

Cada fotografia compartilhada virtualmente, cada imagem, áudio ou vídeo era recebido pelos descendentes que lá estavam com muita emoção e narrativas. Conheci muitas famílias extensas ao longo dos anos de pesquisa […].

Os cenários, os personagens, a vida que se expressava por meio destas trocas virtuais era algo muito significativo para os descendentes (ítalo-brasileiros) que estavam habitando na Itália. Da saudade de casa (brasileira), da família, dos amigos, dos lugares e sentidos, das comidas, as imagens e áudios via aplicativos (Facebook, Instagram, WhatsApp e outros), emails e outras novas tecnologias de comunicação, possibilitavam a noção de estar/ser em tempos e espaços diferentes.

“Represálias, prisões ou perseguições”

E muitas foram as narrativas que tive acerca deste período (a Segunda Guerra Mundial) e dos procedimentos que cada família teve para se proteger, esconder ou destruir objetos com receio de represálias, prisões ou perseguições. Estas ofensivas foram mais comuns na zona urbana, contudo, em muitas localidades rurais também estiveram presentes.

“Tive pudor e algo de estranhamento”

Mas o que muito me marcou foi, certa vez, quando fui apresentada a roupas íntimas femininas das antepassadas que eram guardadas e muito bem cuidadas por uma senhora e tudo o que isto provocou em mim. Ao olhar uma roupa íntima usada no passado, muito limpa e bem zelada e apresentada a mim com naturalidade, senti que eu estava entrando no domínio da intimidade.

Tive pudor e algo de estranhamento, o que me fez pensar o quanto não estamos, às vezes, preparados para algumas situações. Era um dom da entrevistada para comigo. E me senti responsável por tudo o que aprendi sobre o mundo das “antigas”.

Por antigas se entende a geração considerada pela senhora como distante temporalmente da sua, no tempo presente. Aqui falava de sua mãe e de sua avó, mais especificamente. Como estas produziam suas roupas, como se cuidavam, como cuidavam do corpo. Enfim, por meio de uma roupa íntima ingressei no mundo narrativo das mulheres do passado.

“O ritual, a sociabilidade”

Na região do Vêneto italiano e seus interiores, fui apresentada a casas, espaços de trabalho, paisagens encantadoras e a cenários diversos, em diálogos nos quais muitas vezes eu era alertada acerca da semelhança entre o Rio Grande do Sul e aquele pedaço da Itália, especialmente.

Na casa dos ítalo-brasileiros, um dos objetos mostrados eram a cuia e a bomba para chimarrão, hábito que tinham no Brasil, especialmente os descendentes provindos do sul. E me mostravam porque, como também sou originária do sul do Brasil, talvez esperassem que eu compreendesse o ritual, a sociabilidade e demais elementos que estão presentes na prática de “beber o chimarrão” e da falta que sentiam deste hábito cotidianamente.

Em minhas viagens do Brasil para a Itália, quase sempre levei com muito gosto erva-mate para chimarrão e outros produtos que me eram solicitados. Compreendia que era um gesto de retribuição e carinho pelo tempo que minhas perguntas de pesquisa tomavam das pessoas, sempre sobrecarregadas com muito trabalho e afazeres.

Também era interessante observar as redes de comunicação que se estabeleciam virtualmente para saber onde encontrar, na Itália, a erva mate, o feijão preto, a farofa e outros elementos considerados típicos da “comida brasileira”.

“Para que as Pessoas que ali passassem pudessem fazer alguma prece”

Visitei casas nas quais havia imagens de santos católicos convivendo em harmonia no espaço com objetos do budismo ou de religiões afro-brasileiras. Durante as pesquisas, pude também conhecer lugares considerados sagrados por alguns descendentes, como a gruta da Nossa Senhora de Lourdes em Vale Vêneto (Rio Grande do Sul).

Depois de saber de sua importância para muitos descendentes e também da beleza do lugar, eu a tornei um passeio obrigatório quando apresentava a região para pessoas vindas de outros lugares. Também eu hoje tenho muitas memórias sobre a gruta e os passeios e preces que pude lá fazer.

Conheci, igualmente, alguns capitéis, que eram pequenas capelas que os imigrantes e seus descendentes construíam nas estradas ou nos caminhos entre propriedades para que eles mesmos ou as pessoas que ali passassem pudessem fazer alguma prece.

“Ser e estar no mundo”

Por entre fotografias, objetos variados e narrativas, pude entrar e conhecer muitas casas em seus interiores, muita mobília antiga, muita vida presente nestes espaços. O espaço é habitado também pelo tempo e por personagens, por meio do que ali está, sejam objetos materiais ou imaterialidades também. Alguns destes objetos também se relacionam com as pessoas (algumas vivas, outras já falecidas), com suas temporalidades, processos de identificação e com noções de ser/estar no mundo.

Reportagem: Eduarda Paz
Ilustração e diagramação: Luiz Figueiró

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