Nos últimos anos, os jogos digitais têm ganhado cada vez mais destaque. Em sua origem, os “games” eram vistos apenas como uma forma simples de entretenimento, um passatempo. No entanto, com a evolução tecnológica, o avanço da capacidade dos hardwares e o aumento dos investimentos na indústria, tornou-se possível o desenvolvimento de jogos mais complexos, imersivos e com narrativas elaboradas. Assim, passamos de títulos rudimentares como Pong para produções de grande escala, como o aguardado GTA VI. Nesse percurso, diversos gêneros surgiram, abrangendo desde jogos de tiro em primeira pessoa (First Person Shooter – FPS), esportivos como FIFA, simulações e até mesmo jogos com finalidades educacionais.
Entre essa ampla variedade, há também aqueles que, embora não tenham sido criados com foco na educação, possuem um enorme potencial pedagógico. Um exemplo é a série Assassin’s Creed, que em suas versões mais recentes incorporou o modo Discovery Tour, permitindo aos jogadores explorarem cenários e eventos históricos de forma imersiva, fundamentada em bases científicas.
Outro caso notável, que será mais detalhado neste trabalho, é o famoso Minecraft. Lançado em maio de 2009, o jogo pode ser classificado como uma combinação dos gêneros sobrevivência, aventura e sandbox — categoria que oferece ao jogador ampla liberdade criativa, geralmente sem objetivos fixos ou com metas definidas pelo próprio usuário. Essa liberdade proporciona uma vasta gama de possibilidades criativas, potencializadas pelo sistema de Redstone, um recurso do jogo que introduz uma lógica booleana e permite a construção de circuitos binários análogos aos sistemas computacionais reais.
Na abordagem educacional, o uso do jogo pode ser explorado como uma ferramenta de apoio no ensino superior, especialmente em disciplinas como Circuitos Digitais e Organização de Computadores. É importante contextualizar como essa aplicação pode contribuir para a formação acadêmica de nível superior, proporcionando um ambiente interativo e experimental de aprendizado.
O já mencionado sistema de Redstone funciona de modo análogo a circuitos elétricos: o recurso pode ser interpretado como fios condutores de energia, aos quais se somam elementos como botões, que enviam um sinal lógico “1” por um curto intervalo de tempo, alavancas, que mantêm o sinal positivo constante enquanto acionadas, entre outros. Com apenas esses poucos componentes, é possível construir desde portas lógicas básicas até sistemas computacionais complexos, capazes inclusive de executar códigos em Assembly (ASM), aproximando os conceitos teóricos da prática de maneira lúdica e visual.
Primeiramente, seu uso na disciplina de Circuitos Digitais ocorre por meio de dois componentes básicos. O caminho de Redstone transmite o sinal lógico “1” quando a alavanca está ligada, enquanto a tocha de Redstone, quando conectada diretamente a um sinal positivo, é responsável por realizar a negação do sinal, implementando assim o operador NOT (não).
A porta lógica OR (ou) é construída a partir da soma de duas entradas, correspondendo à chamada soma lógica. Já para compreender a implementação da porta AND (e), é necessário relembrar um conceito da Lei de De Morgan: sua construção é feita enviando dois sinais, negando cada um deles com uma tocha, realizando uma operação OR entre os resultados e, por fim, aplicando uma negação ao conjunto com outra tocha.
Matematicamente, essa relação é expressa por: !(!A+!B)=A*B, pois !!A = A, !!B = B, e, conforme a equivalência de De Morgan, a negação de uma soma resulta em uma multiplicação lógica (!+ se transforma em *). Dessa forma, é possível implementar as quatro portas lógicas básicas utilizando apenas componentes de Redstone.
Partindo para demais portas lógicas o NOR (NOT OR) é construído com a junção de dois caminhos de Redstone com uma tocha na saída, negando a operação OR. Para a construção da porta NAND (NOT AND) é feita uma simplificação da porta AND retirando a tocha que nega o conjunto após a soma lógica, sendo expresso também pela lei de De Morgan como !(A*B) = !A + !B, ou seja, a negação do AND (NAND) é igual a soma de duas negações.
Para a porta XOR (Exclusive OR) temos uma construção mais elaborada, a primeira etapa é construir a porta AND, após isso pega-se os inputs após a primeira negação com tochas da porta AND e conectam-se na saída do AND cada, que são somados em uma última porta OR, dessa forma é expressa a equação A⊕B = (A*!B) + (!A*B), a partir da construção teremos a equação !(A*B+!A) + !(A*B+!B), que passa pelas seguintes etapas de simplificação:
- !(A*B+!A) + !(A*B+!B) 🡪 [!(A*B)*!!A] + [!(A*B)*!!B]
- [!(A*B)*!!A] + [!(A*B)*!!B] 🡪 [!(A*B)*A] + [!(A*B)*B]
- [!(A*B)*A] + [!(A*B)*B] 🡪 [(!A + !B)*A] + [(!A + !B)*B]
- [(!A + !B)*A] + [(!A + !B)*B] 🡪 (A*!A + A*!B) + (B*!A + B*!B)
- (A*!A + A*!B) + (B*!A + B*!B) 🡪 (0 + A*!B) + (B*!A + 0)
- (0 + A*!B) + (B*!A + 0) 🡪 (A*!B) + (!A*B)
Por sua vez a porta XNOR (Not Exclusive OR) é a mesma construção da porta XOR, porém com uma tocha para negar a saída.
Avançando ainda mais nos conceitos de Circuitos Digitais, é possível construir o mecanismo T Flip-Flop utilizando apenas um botão (que atua como entrada de clock), Redstone e tochas. Essa construção, contudo, será omitida, pois sua explicação demandaria um nível de detalhamento extenso e seria de difícil compreensão apenas por meio de descrição textual. Ainda assim, o processo de implementação desse circuito proporciona ao construtor um profundo entendimento sobre o funcionamento interno dos mecanismos lógicos.
Por fim, é possível construir uma simulação de clock de maneira bem simples, é feito um quadrado com uma tocha em cada ponta, é dado um sinal de partida, então o sinal é repetido alternadamente no ciclo.
Todas as construções mencionadas podem ser encontradas no vídeo de referência Computer Logic Gates in Minecraft (Only Redstone and Torches).
Abordando agora a disciplina de Organização de Computadores, o Minecraft mostra-se igualmente eficiente como ferramenta de reforço de aprendizagem. Tendo em vista o conhecimento da estrutura e do funcionamento da arquitetura MIPS (Microprocessor without Interlocked Pipeline Stages), aliado ao entendimento prévio adquirido com a construção de portas lógicas utilizando Redstone, torna-se possível desenvolver um computador funcional dentro do jogo, com mecanismos de entrada, saída e capacidade de programação em linguagem Assembly (ASM).
A construção detalhada pode ser encontrada no vídeo de referência How to Make a Redstone Computer from Scratch. Neste trabalho, os detalhes dessa implementação serão abstraídos, uma vez que uma explicação completa demandaria dezenas de páginas para apresentar de forma adequada todos os aspectos envolvidos, além de ser necessário um grande conhecimento técnico. Dessa forma, sua aplicação para a disciplina de Organização de Computadores dá-se mais por entender os processos de construção do que ela construção em si.
Seguindo a ordem das referências, o primeiro passo consiste na construção de um banco de registradores contendo oito registradores, capazes de realizar operações de leitura e escrita. Em conjunto, é implementada uma ALU (Arithmetic Logic Unit) com suporte a nove operações fundamentais, sendo elas: add, subtract, bitwise OR, bitwise NOR, bitwise AND, bitwise XOR, increment, decrement e right shift. Além disso deve ser implementada a instrução chamada ldi (load immediate) que carrega um valor imediato em um certo registrador.
Iniciando a construção, um único registrador pode ser implementado como uma pilha de 8 estruturas compostas por dois repetidores — um mecanismo de Redstone que repete o sinal recebido — e uma lâmpada, utilizada para a visualização dos estados lógicos (1 ou 0). Os dois repetidores são dispostos frontalmente um ao outro, de modo que o sinal elétrico se retroalimente, formando um ciclo contínuo que mantém o valor armazenado. Assim, cada unidade dessa estrutura é capaz de armazenar 1 bit de informação.
Essa estrutura, composta por oito unidades de armazenamento binário, é conectada a uma pequena saída de controle, formada por um comparador e um repetidor. Essa configuração permite bloquear ou liberar o sinal de saída, habilitando ou desabilitando o registrador para leitura, conforme o comando recebido. Por fim, a integração dos oito registradores de 8 bits, bem como o mecanismo de seleção entre eles e a construção da ALU, serão omitidas neste trabalho devido à complexidade envolvida em sua explicação detalhada.
O próximo passo consiste na construção de um banco de memória, essencial para armazenar as instruções do programa. Associado a ele, é implementado o PC (Program Counter), responsável por indicar o endereço da instrução atual a ser executada no banco de memória. Além disso, são introduzidas duas novas instruções: a instrução halt, utilizada para encerrar a execução do programa e interromper o incremento do PC, e a instrução BIZ (Branch If Zero), que possibilita a implementação de estruturas de repetição condicionais, como loops dependentes de resultados anteriores.
A construção do banco de memória segue uma lógica semelhante à do banco de registradores, porém de forma mais manual e extensiva. Nessa configuração, um dos repetidores é substituído por um comparador, o qual, quando obstruído por um barril, passa a enviar o sinal lógico 1 para a estrutura. Por meio da associação de diversas dessas unidades, é possível formar um banco de memória capaz de armazenar até 64 instruções de 16 bits.
Nesse ponto, já é possível integrar todos os componentes construídos, conectando-os a um sistema de exibição que permite visualizar a execução do programa em tempo real. Entretanto, ainda é necessária a implementação de um banco de memória de dados. Esse componente pode ser desenvolvido de duas formas: seguindo a arquitetura de Von Neumann, na qual o banco de memória é unificado, armazenando tanto instruções quanto dados — sendo a memória de dados iniciada a partir de um endereço específico —, ou adotando a arquitetura de Harvard, que separa fisicamente as memórias de dados e instruções.
No contexto dos circuitos construídos em Redstone, optou-se pela arquitetura de Harvard, pois ela permite acesso simultâneo a dados e instruções, oferece uma distinção mais clara e visual entre ambos e reduz o risco de alterações acidentais em instruções durante a manipulação da memória. Desse modo, está completo.
Por fim, é possível realizar um “upgrade” do computador desenvolvido. O primeiro aprimoramento implementado consistiu na expansão da memória, que passou de 64 para 256 bytes, juntamente com a memória de instruções, ampliada de 128 bytes para 2048 bytes. Além disso, o banco de registradores foi aprimorado, passando a comportar 16 registradores em vez de 8.
Outro avanço significativo ocorreu na forma de programação, que agora é realizada em Python. O código fonte passa por um script conversor, responsável por traduzir as instruções Python para o conjunto de instruções customizado desenvolvido no projeto. Esse script gera um esquema compatível com o mod Schematic — ferramenta capaz de criar plantas de blocos no Minecraft — funcionando, assim, como um montador (assembler) para o computador em Redstone.
Autor: Mateus Cardoso Oliveira
Referências:
MINECRAFT WIKI. Redstone circuits. Fandom, s.d. Disponível em: https://minecraft.fandom.com/wiki/Redstone_circuits. Acesso em: 10 nov.
2025.MRFLACKO. Computer Logic Gates in Minecraft (Only Redstone and Torches) [Vídeo]. YouTube, 2018. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=VEcmaXwjwuY. Acesso em: 11 nov. 25
MATTBATWINGS. I Made a Working Computer with just Redstone! [Vídeo]. YouTube, 2023. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=CW9N6kGbu2I. Acesso em: 12 nov. 25
MATTBATWINGS. I Made a Powerful Redstone Computer! [Vídeo]. YouTube, 2024. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3gBZHXqnleU. Acesso em: 12 nov. 25
MATTBATWINGS. How to Make a Redstone Computer from Scratch [Vídeo]. YouTube, 2025. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=hAZEXqWLTmY. Acesso em: 13 nov. 25