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Diário de um cotista

Tese evidencia as adversidades enfrentadas por estudantes negros a partir de relatos pessoais



Na tese Cotistas negros da UFSM e o mundo do trabalho, apresentada por Maria Rita Py Dutra no Programa de Pós-Graduação em Educação, são levantadas também as percepções sobre o mundo de trabalho, acesso e permanência na Universidade – desde o ingresso até a formatura. A narrativa é construída a partir de relatos pessoais de 11 estudantes que se graduaram na UFSM, sendo 4 homens e 7 mulheres. Na pesquisa, todos os entrevistados são identificados com nomes fictícios de origem africana ou de personagens dos livros infantis da Coleção Histórias da Vó Preta, de autoria de Maria Rita.

Primeiras percepções da Universidade

A entrada na universidade é uma experiência particular à cada pessoa. Alcançar o êxito no vestibular é motivo de felicidade para qualquer candidato, mas para os estudantes negros, geralmente, vem acompanhado de significados e de desafios ainda maiores. Maria Rita destaca em sua tese que “tais estudantes terão seus atributos categorizados”, a partir do estereótipo do grupo hegemônico. Segundo ela, “são colocadas sobre o estudante cotista uma série de expectativas”. O cotista passa a ser considerado, frente aos demais, como “menos desejável”, alguém que carrega consigo um forte estigma.

Ao iniciar a vida acadêmica – com idade mais avançada – Idia, estudante de Sociologia, se preocupava em como se apresentar frente aos colegas, como se vestir, consciente de que participava de outro campo social. O processo de desconstrução desse estereótipo foi se dando aos poucos e teve forte influência da ação dos professores em sala de aula:

“Como uma mulher muito pobre, eu sempre pensava: como eu vou chegar na Universidade? Eu não tenho roupa, eu não tenho calçado, eu não tenho dinheiro para as passagens. Eu trabalho. Eu saio do município (escola), pego faxina, saio das faxinas, vou pra Universidade. Chegando lá, eu me deparava com as minhas colegas alemãs, descendentes de alemães, descendentes de italianos, de chinelo, de crocs, mas por que eu não posso? Uma negra de chinelo é empregada doméstica, uma italiana, uma alemã, descendente de alemãs, de italiana, é uma filha de colono? É filha de empresário (…). E daí eu vi de que nós não precisamos… Não é a roupa que nos faz, não são os calçados, mas sim o nosso conhecimento e a maneira como nos tratamos.” (Idia, Sociologia)

Para se referir ao posicionamento dos professores no âmbito acadêmico, Maria Rita cria duas categorias: o “professor empático” e o “professor inconformado”. No relato mais aprofundado de Idia, a pesquisadora Maria Rita identifica a presença de ambos. Uma que tomou postura empática e estimulou a estudante a não desistir e a enfrentar as dificuldades inerentes aos estudos e, ao mesmo tempo, um “professor inconformado”, que após o fracasso da estudante na primeira prova, classificou-a como “não detentora de pensamento lógico, sem qualquer análise mais aprofundada”. Frente ao segundo caso, Maria Rita reflete: “O que leva um professor afirmar à aluna negra, de idade superior a 40 anos, que o lugar dela não é na Federal, por ela não ter raciocínio lógico? Sou forçada a afirmar que é o racismo que faz isso; é o fato de o negro ocupar espaços que até então eram interditos para ele.”

Em outra entrevista – com a estudante Jamila, que ingressou na UFSM em 2010 no curso de Serviço Social-, Maria Rita também descreve certa atitude de um professor, enquadrando-o como “professor inconformado”, umas vez que demonstra inabilidade de trabalhar com estudantes com outro nível étnico. O episódio descrito em um relato se referia ao discurso proferido contrário às cotas, logo na primeira aula por um professor que se deparava com cinco estudantes cotistas negros na turma.

Enquanto isso, Anaya, formada em Medicina Veterinária, relata não ter vivenciado situações de racismo no período da graduação, mas sim, depois, já no mestrado. Ao presenciar o posicionamento de um professor que discorria sobre procedimentos veterinários, o mesmo alertava aos estudantes para agirem corretamente: “pessoal, a gente tem que fazer a coisa certa, tem que fazer coisa de gente branca.”

“(…) não adianta ser fluente em várias línguas, ser pós-doutor e tratar as pessoas dessa forma, e ter esse tipo de pensamento que não cabe numa academia. Me passava pela cabeça que eu tenho irmãos que vão passar por isso, que os meus pais se orgulham de eu estar aqui, que minha mãe como uma mulher negra se orgulha de eu estar aqui e espera que eu seja tratada com respeito. Então isso foi o que mais me chocou.” (Anaya,  Medicina Veterinária)

Além disso, um desafio a ser adquirido por estudantes negros é o capital cultural, isto é, o acúmulo de riqueza cultural erudita de cultura escolar – que pode influenciar diretamente no desempenho acadêmico do estudante. Isso diz respeito também ao ambiente familiar ao qual o estudante está acostumado. Entre as mães dos entrevistados, por exemplo, apenas uma cursou ensino superior incompleto e duas, o ensino superior completo; enquanto que entre os pais, somente um cursou o ensino superior completo. Ao destacar as pesquisas de importantes estudiosos na área, Maria Rita aponta que existem uma relação entre o nível cultural das famílias e o sucesso dos filhos na vida escolar. No entanto, é um erro afirmar que a renda familiar e o diploma dos pais são fatores cruciais para condenar filhos de famílias pobres ao fracasso. A pesquisadora ressalta que “há como reverter essa situação, sendo a atuação do professor empático decisiva, pois o estudante necessitará de orientação.”

Estudante-trabalhador

De acordo com a pesquisadora, a condição de estudante- trabalhador desafia o estudante cotista a estabelecer novas metas, pois além de ter que dar conta dos estudos, precisará atender às exigências do trabalho. Na pesquisa, todos os entrevistados, em algum momento, trabalharam, e apenas Kadija e Mulalo não foram bolsistas durante a graduação.

“Um turno eu estava trabalhando, o outro turno eu estava com ele completo de aula. Quando ficava alguma cadeira pra trás, eu tinha que deixar a cadeira, porque eu tinha um turno inteiro pelo trabalho e um turno só pra estudar, e na Medicina Veterinária tu tens um turno de manhã, com disciplinas e outro turno de tarde. Então quando virava o semestre, que viravam os horários, eu ficava com choque de horários, e eu fui segurando algumas cadeiras, né. Então teve um semestre que eu fiz só as DCG’s, e segurei um pouco as cadeiras, por isso eu demorei um pouco mais, também pra me formar, não é, pra conseguir continuar trabalhando.”(Anaya, Medicina Veterinária)

Entre os entrevistados, apenas cinco homens e uma mulher relataram terem ingressado no mercado de trabalho somente depois do ingresso na faculdade. As demais mulheres afirmaram ter começado a trabalhar ainda no período escolar – sendo duas delas, no trabalho doméstico. Após a formatura, dois permaneceram apenas trabalhando (o enfermeiro e o comerciário do setor moveleiro), os demais investiram na formação acadêmica, continuando a cursar uma nova graduação, especialização ou pós-graduação. Três fazem doutorado: em Medicina Veterinária, Sociologia e História; Ayo (relações públicas) faz mestrado em Patrimônio Cultural; Alíca cursa Pedagogia – mantendo-se com uma bolsa e fazendo tranças – e Kadija cursa Sociologia.

As cotas e a permanência na Universidade

A política de cotas foi implementada na UFSM em 2012, com o objetivo de erradicar desigualdades sociais e étnico-raciais e democratizar o acesso ao ensino superior. Maria Rita ressalta que, apesar de ser um instrumento legítimo de validação do ingresso na Universidade, a vitimização é uma acusação frequentemente atribuída aos negros, em especial nas redes sociais. Esse discurso é evidenciado em algumas das entrevistas:

“Tinha colegas (…) que o discurso deles era: – Tu não precisou de cota para entrar aqui no Colégio Militar, tu não precisas de cotas agora. Quando eu falava que ia prestar vestibular e que eu achava importante prestar com cotas, (ouvia:) tá, mas tu não precisas, tu podes passar sem cotas (…). Foi nesse período, no final do Ensino Médio, que veio toda a discussão da inclusão das cotas na UFSM, e no Brasil.. Eu passei por situações assim, né. Dos próprios colegas falarem: – Não, a Anaya é negra, mas é como se ela fosse… (…) aquilo foi me marcando, e eu digo: nossa! eu vou prestar vestibular com cota, eu acho, sim, que a gente precisa, porque a gente passa mesmo por isso. Tá na nossa luta diária. Então esse enfrentamento diário, assim (…).  Me inscrevi então em Medicina Veterinária e consegui entrar, com o programa de cotas.” (Anaya, Mecidina Veterinária)

Da mesma forma como Anaya observa a necessidade e importância da política de cotas, segue o discurso de outra entrevistada que afirma ter orgulho de ser cotista:

“(…) eu sempre, aonde vou, levo a questão de ser cotista, porque pra mim é um orgulho, é uma bandeira, é uma luta que representa tudo isso. Cada cotista da universidade acho que tem que difundir isso, para que as pessoas introjetem isso, para que na sociedade não seja diferente ser cotista, pra legitimar! (…) Tem que ter orgulho de ser cotista e tem que ter toda uma luta, saber que isso foi uma luta, uma bandeira.” (Jamila, Serviço Social)

A tese de Maria Rita também evidencia a necessidade de melhorias da política de permanência dos alunos na Universidade. Segundo ela, não basta criar mecanismos de acesso, se não são levadas em conta as dificuldades enfrentadas pelos alunos cotistas durante a graduação, até alcançar o Benefício Socioeconômico. A entrevista com Atinuké revelou a burocracia do processo que acabou por adiar o direito ao seu benefício por um semestre.

Eu consegui naquele momento, era uma burocracia, o Benefício Socioeconômico, eu não sei como é que está agora. No ano que eu entrei, no primeiro semestre foi negado, porque eu não tinha como comprovar a escritura de onde eu morava. Eu moro numa ocupação, a gente não tem escritura. (…) Só no segundo semestre eu consegui comprovar, e eles aceitaram (…) Precisam conhecer a realidade dos alunos que estão chegando na Universidade! (…) Tem limites para todos, imagina para nós, que viemos de uma realidade difícil, todo o contexto de acessar. (…) Pra mim foi muito positivo, do ponto de vista da inclusão. Aqui na Vila agora tu vês inúmeros alunos cotistas. A minha irmã é uma aluna cotista. O meu irmão é um aluno cotista. Meu irmão está quase se formando, está no 7º semestre da Administração e a minha irmã está indo para o terceiro semestre da Enfermagem. Então uma geração de cotistas, só aqui nessa casa. Vários alunos cotistas aqui na volta. Coisa que não se tinha acesso há um tempo atrás (Atinuké, Sociologia).

Falta de referências negras nos espaços acadêmicos

Dentre os relatos de vida dos entrevistados, destacam-se outros  pontos considerados como dificuldades para os cotistas negros: o tema a ser abordado no trabalho de conclusão de curso, a falta de referências e bibliografias negras e a ausência ou invisibilidade de professores negros na Universidade.

“Eu não vou dizer que sofri um preconceito direto, por parte de professores, mas eu me senti extremamente negligenciado. Diretamente do curso, uma das minhas maiores dificuldades antes de eu encontrar meu orientador foi que eu sempre quis entender a minha religiosidade, só que de fato, ninguém trabalhava com religião de matriz africana. Eu não tinha uma fonte, eu não tinha alguém que me orientasse. (…) Durante todos os meus anos de  formação de Ensino Fundamental e Médio, eu não tive nenhum professor negro”. (Odé, História)

Maria Rita destaca que, como o acesso dos estudantes negros se deu em ampla maioria após a aprovação da política de cotas na universidade, “brevemente estaremos assistindo a defesas de teses dos nossos primeiros intelectuais negros da recente leva que, após prestarem concursos públicos, poderão ingressar em programas de Pós-Graduação.” A formação de novos pesquisadores, conhecedores da causa negra, desta forma, deve ampliar o conhecimento sobre a temática afro – questões relativas à religiosidade de matriz africana; do genocídio da juventude negra; sobre a mulher negra e sexualidade; e questões que envolvam o racismo, a justiça e a violência e criminalidade.

Formado em Enfermagem, Agotime – um dos entrevistados – falou sobre a falta de referências negras durante a graduação e sua passagem pelo Hospital Universitário de Santa Maria, nas práticas acadêmicas. Agotime revelou que que foi gratificante, por fim, encontrar no trabalho uma enfermeira negra, em Pelotas. Ele afirma que se sentiu “protegido” por ela.

“Porque tu acaba te enxergando ali. Tu acaba só te enxergando e tu sabes que quando fores trabalhar, aquela inspiração pode servir para uma outra pessoa. Eu não sei. Não tem um sentimento que explique, mas a gente acaba assim. Por exemplo, eu e essa enfermeira, nossa relação acaba assim, mesmo sem falar, ela sabe que é uma referência pra mim. Sei que ela sabe. É uma troca mútua assim, que só no conversar, a gente vai conversando, eu acabo me apegando nela e ela acaba te protegendo de certa forma.” (Agotime, Enfermagem).

O cotista no mundo do trabalho  

Findada a experiência acadêmica, a entrada no mercado é relatada de diversas maneiras pelos entrevistados. No caso de Kadja, formada em Ciências Sociais, as cotas não contribuíram para que acessasse o mundo do trabalho. A cientista social já trabalhava em um escritório de contabilidade, mas confessa que ter estudado em uma instituição pública fez um grande diferencial em seu ambiente de trabalho. Após ter ingressado no ensino superior, percebeu que alguns clientes passaram a tratá-la com mais consideração e passaram a cumprimentá-la, coisa que não acontecia antes. Por sua vez, Agotime, formado em Enfermagem, pontua que as ações afirmativas ajudaram tanto para ingresso no ensino, como no mundo do trabalho:

“Foi a porta que me abriu para o mundo. Não só ali na entrada, na Universidade, como a entrada no mercado de trabalho, agora. As cotas foram um divisor de águas na minha vida. Não tem como definir como outra coisa assim, porque realmente foi minha entrada na Universidade através das cotas e depois, a entrada no mercado de trabalho, pelas cotas.” (Agotime, Enfermagem)

Para Jamila, formada em Serviço Social, as cotas abriram novos caminhos, e acha que as pessoas precisam divulgar que foram cotistas. Jamila procura sempre declarar que foi estudante cotista da UFSM e acredita que isso é necessário para que haja uma cultura de reconhecimento e pertencimento da luta pela igualdade racial.

“Porque muitas pessoas se utilizam das cotas, até tem negros que não se afirmam, não tem uma identidade negra, mas na hora das cotas: Vou nas cotas”! Tanto é que pro meu filho, agora no ENEM, quando ele foi colocar, ele disse: – “Mãe, por onde eu me inscrevo? Eu disse: – o que é que a tua identidade, que tanto a gente fala, te diz? Ele me disse, assim: – Eu acho que sou legitimo pra cotista! Eu disse: – Então te inscreva! Ele ficou em primeiro lugar, enquanto cotista, e eu fiquei muito feliz. Eu acho que a gente está perpetuando, tá passando de geração a geração.” (Jamila, Serviço Social)

Reportagem: Tainara Liesenfeld, acadêmica de Jornalismo

Edição: Andressa Motter, acadêmica de Jornalismo

Ilustração da capa: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial – A inspiração são as obras de Jean-Michel Basquiat, artista norte-americano que se dedicou às artes das ruas, como grafite, piche e colagens. As questões raciais e a população negra dos Estados Unidos perpassam grande parte da produção do artista, que é negro.

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