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“A Universidade se pinta de povo”

Maria Rita Py Dutra, uma das primeiras mulheres negras a se tornar doutora no Centro de Educação da UFSM, fala sobre cotas, racismo e igualdade



*Esta matéria foi atualizada em 21/11/2018, às 14:37.

Dos 205,5 milhões de habitantes do Brasil, 46,7% se autodeclaram pardos e 8,2%, pretos. Apesar de, juntas, formarem a parcela majoritária da população nacional, essas pessoas raramente são vistas em comerciais de TV ou revistas, no atendimento de bancos, ocupando cargos de chefia em empresas e, até pouco tempo atrás, nas salas de aula das universidades.

A luta contra a invisibilidade e as desigualdades faz parte da trajetória de Maria Rita Py Dutra, terceira mulher negra a se tornar doutora no Programa de Pós-Graduação do Centro de Educação da UFSM. A tese Cotistas negros da UFSM e o mundo do trabalho, defendida pela professora em agosto de 2018, discute as situações e condições que influenciam os cotistas negros desde a formação na UFSM até a inserção, ou não, no mercado de trabalho.

Para isso, Maria Rita ouviu relatos de experiências e analisou o universo que está por detrás da problemática, como a desigualdade nos âmbitos econômico e de acesso, o apanhado histórico, a construção de identidades e o conflito de interesses. Foram entrevistados formandos dos cursos de Ciências Sociais, Enfermagem, Fisioterapia, Relações Públicas, Medicina Veterinária, Serviço Social, Educação Especial e História Licenciatura.

Como resultado, Maria Rita aponta que, para os estudantes entrevistados, a  política de cotas representou um divisor de águas, mudando totalmente suas vidas. “Foram as cotas que abriram um mundo de possibilidades para esses estudantes, em que o ingresso e a superação do discurso racista foi necessária para a conclusão do curso. Na maioria dos casos, o primeiro diploma de ensino superior na família”, comenta Maria Rita, que celebra: “A universidade se pinta de povo”.

A pesquisadora entende que uma sociedade igualitária e justa é construída e orientada nos bancos escolares. “Faz parte disso possibilitar que excluídos ingressem no espaço acadêmico, mas que, para além, a estrutura acadêmica seja repensada para que ocorram mudanças radicais em busca da igualdade”, afirma Maria Rita no decorrer da pesquisa. Ela compreende, ainda, que olhar para a conclusão do curso e a entrada no mundo do trabalho “fornece informações importantes para pensarmos em resultados na educação e reavaliarmos, por exemplo, as barreiras que cotistas enfrentam”.

Na tese, Maria Rita compartilha que estudar as ações afirmativas e o racismo fez com que ela refletisse sobre questões que a marcaram de forma indelével nos quase 30 anos de carreira no magistério público estadual, sobre as quais ainda carrega marcas e dores não removidas.  

Política de cotas no Brasil e na UFSM

O debate sobre as ações afirmativas reverberou no Brasil após a participação do país, em 2001, na III Conferência contra o Racismo e a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Em 2003, foi pautado na UFSM pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), e definiu-se como Programa de Ações Afirmativas de Inclusão Racial e Social. O sistema inclui o ingresso de afro-brasileiros, pessoas com deficiências, alunos de escolas públicas e indígenas no ensino superior.

Em 2012, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei das Cotas (nº 12.711/2012), que estabeleceu o sistema de cotas sociais e raciais para ingresso em universidades e institutos federais de todo o país. A legislação prevê a reserva de, no mínimo, 50% de vagas, por curso e turno, para estudantes oriundos de escolas públicas, além de destinar vagas para estudantes negros, pardos e indígenas, de acordo com o percentual populacional local dessas etnias.

Perante a aprovação, surgiram várias perguntas quanto à legitimidade constitucional da política de cotas, às quais o Supremo Tribunal Federal (STF) respondeu, entendendo que a política fazia parte de um processo de correção das desigualdades sociais, inclusive daquelas baseadas na cor da pele.

Atualmente, a UFSM não dispõe de uma política de acompanhamento e avaliação do processo de permanência dos cotistas negros. Segundo Maria Rita, essa questão ainda não despertou interesse nos pesquisadores por haver poucas referências de estudos sobre.

Em sua tese, a professora salienta que a presença de alunos afro-brasileiros, indígenas, portadores de deficiência e provenientes de escolas públicas é asseguradora da diversidade e da democracia nas universidades públicas brasileiras. “A política afirmativa é necessária para reparar os aspectos discriminatórios que impedem o acesso de pessoas pertencentes a diversos grupos sociais às mais diferentes oportunidades”, pontua.

Trajetória de Maria Rita

Professora desde 1967, quando concluiu o Curso Normal, passou 30 anos ensinando e se especializando em diferentes áreas, como química, pedagogia, história, ciências sociais. Desde 1988, seu trabalho envolve a temática étnico-racial e o racismo. Na intenção de romper barreiras, Maria Rita fez parte do projeto Combatendo o Racismo através da Literatura Infantil entre 2003 e 2008, criado por um grupo de estudantes do curso de Museologia da Universidade Franciscana. Ali, contava histórias de questões raciais, além de ministrar oficinas e cursos a estudantes e professores no Museu Treze de Maio.  

A experiência gerou frutos literários, como O Aniversário de Aziza e Dia dos Negros. Na UFSM, Maria Rita participa do grupo Negros e o Movimento Social Negro (MN), que trata sobre direitos e igualdades, buscando contribuir para o aperfeiçoamento das políticas de cotas na Universidade.

Pelo que ela representa, organizadores e coletivos que construíram a programação das atividades do mês da Consciência Negra em 2018 na UFSM homenageiam Maria Rita como a primeira patronesse da data. O momento marca, ainda, uma década de política de ações afirmativas na Universidade.

Reportagem: Bibiana Pinheiro, acadêmica de Jornalismo

Edição: Andressa Motter, acadêmica de Jornalismo

Fotografia: Dartanhan Baldez Figueiredo

Ilustração da capa: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial – A inspiração são as obras de Jean-Michel Basquiat, artista norte-americano que se dedicou às artes das ruas, como grafite, piche e colagens. As questões raciais e a população negra dos Estados Unidos perpassam grande parte da produção do artista, que é negro.

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