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Das cotas à assistência estudantil: a luta pela educação



Igualdade, segundo o dicionário, é a ausência de diferença, quando todas as partes estão nas mesmas condições, possuem igual valor ou são interpretadas a partir de um único ponto de vista. Ao utilizar esse conceito para analisar a realidade socioeconômica da população brasileira, percebe-se que a tal ‘igualdade’ é algo ainda distante. Ao se falar de educação, vê-se que nem todos frequentam escolas semelhantes, arcam com os custos de um cursinho, dedicam-se exclusivamente a estudar ou possuem materiais para isso, logo, utilizar uma única prova com critérios idênticos para avaliar a todos está longe de ser justo. 

A implementação da política de cotas na Universidade Federal de Santa Maria aconteceu cercada de debates em torno da temática, que evidenciou, ao longo dos anos, ser promissora e necessária. Com a pandemia de Covid-19, observa-se como as cotas impediram uma desigualdade ainda maior no acesso à Universidade e como o apoio e a assistência estudantil se tornaram ainda mais relevantes nesse período. 

Uma política pública pela igualdade

Depois de um extenso percurso de lutas, a UFSM adotou um sistema de ações afirmativas em 2007, com expressiva participação do Movimento Negro. Em 2003, o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) realizou o “I Seminário Internacional Negritude na Escola”, evento onde debateu-se a importância de ações afirmativas na Universidade. A UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) já havia adotado um sistema de cotas em 2001 e a UnB (Universidade de Brasília) em 2004, tornando-se pioneira entre as universidades federais.

Após debates dentro e fora da academia, com intensa participação da comunidade acadêmica e de públicos externos, em agosto foi aprovado um plano institucional denominado ‘Programa de Ações Afirmativas de Inclusão Racial e Social’, por meio da resolução 11/2007. O tema foi pauta da 704ª Sessão Plenária do CEPE (Comissão de Ensino, Pesquisa e Extensão), onde foi aprovada por apenas um voto de diferença, 19 a favor e 18 contrários.

Essa proposta estabelecia a oferta, por um período de dez anos, de 15% das vagas para afro-brasileiros em cada um dos cursos de graduação, 20% para estudantes oriundos de escolas públicas, 5% para estudantes com deficiência e 5 para serem disputadas exclusivamente por acadêmicos indígenas residentes no território nacional. No vestibular de 2008 não houve uma diferenciação nas notas de corte para as cotas,  o que só ocorreu a partir de 2009. 

Como consequência da aprovação da resolução, o Observatório de Ações Afirmativas para Acesso e Permanência nas Universidades Públicas da América do Sul (Afirme), criado em 2006,  passa a ter como objetivos avaliar a implementação da política, elencar pontos negativos e positivos, sugerir melhorias e promover apoio aos acadêmicos cotistas da instituição. Em abril de 2012, depois de muito debate na sociedade civil e em entidades ligadas à educação, uma lei nacional sobre a política de cotas foi considerada constitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal).  Em agosto do mesmo ano, o Senado aprova a Lei nº 12.711, que define a obrigatoriedade de 50% das vagas em universidades federais para cotas raciais e sociais. 

Foi em maio de 2014 que a UFSM aumentou para 50% a reserva das vagas para as cotas, ao aderir como forma de ingresso ao Sisu (Sistema de Seleção Unificado), do Ministério da Educação, e extinguir o vestibular próprio. No entanto, até 2016, a universidade ainda realizou o Processo Seletivo Seriado – PS2 e PS3.

A pesquisadora e doutora em Educação pela UFSM, Maria Rita Py Dutra,  juntamente ao Movimento Negro, participou ativamente dos debates sobre a implementação das cotas na Universidade, relata: “Para os estudantes, no início era até meio assustador ser cotista, alguns pediam sigilo. Depois, no entanto, iam entendendo a importância desse movimento, passavam a lutar com orgulho e defender as cotas”. Sobre a reação da população acerca da aprovação no Senado, ela comenta: “No país todo, em 2012, tivemos o ‘exército anti-cotas’, em geral eram alunos de escolas particulares e cursinhos pré-vestibular, que questionavam a legitimidade da lei. Então, o DCE, o SEDUFSM e a ASSUFSM organizaram uma aula pública a favor das cotas, chamada ‘Vamos falar sobre cotas?’”. Maria Rita conta que, nessa aula, percebeu que muitos estudantes não conheciam e entendiam a política de cotas, por isso os convidaram para debater sobre o assunto.

Foto de 11 pessoas na rua, em pé, nove mulheres e dois homens, a grande maioria jovens. Mais ao centro da foto, uma mulher negra mais velha, de cabelos grisalhos amarrados atrás da cabeça, gesticula, mostrando que está conversando com os demais. Ao fundo, prédios da cidade, árvores e postes de luz.
Maria Rita e integrantes do Movimento Negro conversam com manifestantes anti-cotas. Foto: arquivo pessoal Maria Rita Py Dutra.

A UFSM, que adotou um sistema de cotas antes da aprovação da lei nacional, realizou adaptações ao longo dos anos, como em 2014, além da que ocorreu em função da Lei 13.409, de 2016, responsável por regulamentar o ingresso de alunos com deficiência. Atualmente, a resolução 002/2018 é a mais recente sobre o tema.

 

Simulação da distribuição de vagas com cotas

Pandemia e ingresso no ensino superior: desafios para além das aulas online

 Escolas fechadas, adaptação para o ensino remoto e inseguranças em relação ao futuro, estudar para o Enem em condições comuns já não é tarefa fácil, mas foi dificultada com a pandemia de Covid-19. Os estudantes tiveram de lidar com uma rotina totalmente diferente dentro de suas casas, que esbarra em inúmeras outras questões, como moradias sem acesso à internet, falta de aparelhos eletrônicos adequados para acompanhar as aulas e, muitas vezes, a necessidade de trabalhar para ajudar no sustento da família. 

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Educação, realizada pelo IBGE em 2019 e publicada em 2020, 10,1 milhões de jovens entre 14 e 29 anos abandonaram a escola – o principal motivo foi a necessidade de trabalhar. De acordo com um relatório da Unicef publicado em janeiro deste ano, 5,5 milhões de crianças e adolescentes com idades entre 6 e 17 anos não estudavam em 2020. Desse número, 4,12 milhões de alunos estavam matriculados, mas não receberam nenhuma atividade escolar, por conta das dificuldades de adaptação para as aulas online.

Dados coletados do IBGE e do Inep e compilados pela Revista Piauí,  mostram que, em 2020, apenas 6,6% das escolas públicas forneceram internet para que os alunos pudessem continuar acompanhando as aulas. Em 2019, aproximadamente 4,3 milhões de estudantes brasileiros, com 10 anos ou mais, não possuíam acesso à internet, desses, 4,1 milhões estavam matriculados na rede pública. Além disso, um terço das escolas públicas não oferece aulas à distância durante a pandemia, o que equivale a 36%, já entre as particulares, o índice corresponde a 12%.

Natan Daniel da Silva, 23 anos, ingressou no curso de Psicologia na UFSM em 2021, depois de ter estudado em casa durante o ano de 2020 para se preparar para o Enem. Filho de agricultores, é morador de Arroio do Tigre, cidade de aproximadamente 13 mil habitantes na região central do estado. Silva cresceu inserido numa realidade de trabalho do campo, ajudando os pais na plantação de tabaco, mas sempre teve por objetivo estudar em uma universidade federal. Ao ser questionado sobre como foi estudar em casa para as provas, apontou a dificuldade de se preparar, uma vez que elas estavam sujeitas a alterações de última hora, por conta da pandemia: “a prova do Enem foi adiada, não tínhamos um cronograma certo, o que atrapalhava os estudos e a programação para ir fazer a prova, já que no meu caso tenho de me deslocar para outra cidade, além de gerar inseguranças, medo.”.

O acadêmico também relata as dificuldades na sua rotina ao conciliar estudos e trabalho: “Eu trabalhava de dia e estudava à noite, foi bem cansativo. Havia noites que eu não conseguia estudar, aí tentava recuperar no fim de semana, estudando mais. Eu sabia que seria assim, me preparei para estudar dessa forma e sabia que seria difícil”. Além disso, também comenta sobre o acesso à internet em sua casa: “Havia dias que a conexão estava muito ruim, não era possível utilizar a rede, esse foi um fator que gerava muita agonia, pois não tinha o que fazer, apenas esperar a conexão ser restabelecida.”. 

O aluno do sexto semestre de Direito e coordenador do Diretório Central dos Estudantes da UFSM (DCE), Luiz Eduardo Boneti Barbosa, analisa as dificuldades para ingresso na universidade agora na pandemia: “Para você continuar estudando em casa durante a pandemia, é necessário ter acesso à internet, você precisa ter ao menos um aparelho para se conectar, seja celular, tablet, notebook, isso é mínimo, mas falamos de um país onde um em cada quatro brasileiros não têm acesso a internet.”.

Sobre a importância da política de cotas na diminuição das desigualdades de acesso neste período de pandemia, Barbosa ressalta: “As cotas sem dúvidas ajudaram para que não tivéssemos uma desigualdade ainda maior. Infelizmente, sabemos que muitos estudantes negros, principalmente jovens, não conseguirão ingressar na universidade, porque não tem dinheiro para pagar a taxa de inscrição, porque não tem acesso a meios para estudar de casa, porque é a população negra e pobre a que mais está morrendo na pandemia.”. A luta e mobilização do movimento estudantil, adaptada neste período de pandemia, continua intensa, coletiva e, acima de tudo, necessária.

A assistência estudantil e a permanência na graduação 

Fotografia horizontal de um prédio de três pavimentos na cor branca. Ele tem detalhes na cor azul no terceiro e primeiro pavimento. Na frente, uma rua, pavimentada em paralelepípedos, encontra o prédio e segue para a esquerda. Algumas das janelas estão abertas, outras fechadas. Há árvores em ambos os lados da rua e uma placa de ‘PARE’ na calçada à direita.
A Casa do Estudante Universitário (CEU) contribui fortemente para a permanência dos alunos na Universidade. Foto: Pedro Souza

Depois de ingressar no ensino superior, o graduando passa a enfrentar outra dificuldade, a permanência. Sobre as perspectivas de retorno presencial, Silva expôs como o Benefício Socioeconômico (BSE), concedido aos estudantes com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita, é importante: “Sem o BSE e a possibilidade de entrar na Casa do Estudante eu não conseguiria cursar a graduação, não teria condições econômicas de permanecer no curso.”. 

O diretor de assistência estudantil da União Nacional dos Estudantes (UNE), jornalista e aluno de Relações Públicas na UFSM – campus FW, Lucas Reinehr, pontua como a pandemia mexeu com a rotina da Universidade e trouxe novos desafios para a assistência estudantil, uma vez que atividades essenciais, como o restaurante universitário, tiveram de ser paralisadas e substituídas por outros auxílios. Sobre os benefícios para a inclusão digital, disponibilizados pela Universidade no formato de valor em dinheiro para pagamento à empresa provedora de internet ou para compra de equipamentos eletrônicos, ressalta que, para além de se possuir um equipamento para estudar, todo um conjunto é necessário para que os alunos possam desempenhar suas atividades da melhor forma possível. Trata-se de  um olhar mais amplo: para a infraestrutura, para a qualidade desse acesso à internet e a capacidade desse equipamento suprir o que é solicitado pelas disciplinas. 

Ainda, sobre as perspectivas para o futuro, Reinehr aponta que diálogos são realizados pelos movimentos estudantis junto a órgãos responsáveis, como a Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino), na busca por oferecer melhores condições para os graduandos nesse período de aulas remotas e já com possibilidade para o retorno presencial. Para o ‘pós-pandemia’, espera-se uma busca ainda maior pela assistência estudantil, uma vez que esse período afetou a renda das famílias e deixou muitas em situação de vulnerabilidade. A demanda deve abranger diferentes setores: moradia, alimentação e atendimento psicossocial. 

A subdivisão de Ações Afirmativas Sociais, Étnico-Raciais e Indígenas, da Coordenadoria de Ações Educacionais (CAED), atua no desenvolvimento de ações para acompanhar e apoiar alunos cotistas da instituição. Dentre as atividades desenvolvidas, como informa a coordenadora, a professora Rosane Brum Mello, há monitorias indígena, de apoio à leitura de textos acadêmicos, de português como língua de acolhimento e de apoio para o uso de tecnologias digitais. 

Na pandemia surgiram novos impasses, como a impossibilidade de divulgar o vestibular indígena nas aldeias, o que levou o Núcleo a se adaptar. As palestras e rodas de conversa agora são realizadas em uma plataforma online e, mesmo sem o calor do encontro presencial, o diálogo com os estudantes para saber suas dificuldades e buscar supri-las, continua. 

A política de cotas, que, como previsto na legislação, passará por uma reavaliação no próximo ano, foi e ainda é extremamente importante para a UFSM, uma instituição pública que colabora fortemente para o desenvolvimento de Santa Maria, da região, do estado e do país e que deve ser acessível. Falar em políticas de cotas também é abordar a democratização da educação, é permitir que mais alunos sonhem e possam alcançar o ensino superior.

 

Reportagem: Milene Aparecida Eichelberger

Contato: milene.eichelberger@acad.ufsm.br; @milene.eichelberger

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