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A linguagem do amor

Em análise linguística sistêmico-funcional, pesquisadora revela como adolescentes enxergam o sentimento



All you need is love, love is all you need”. A letra da música dos Beatles talvez represente a visão de muitos – para alguns, ainda mais exacerbada pela chegada do dia dos namorados. A verdade é que, nesse período pandêmico em que vivemos, o amor se transfigurou, foi ressignificado e, muitas vezes, as formas que tínhamos para demonstrar esse sentimento – como encontrar amigos, beijar e abraçar – não estavam mais disponíveis justamente ao considerarmos o cuidado com o outro. Quando falamos de amor – e nesse sentido não mencionamos apenas o amor romântico, e sim todas as suas formas e representações -, é importante entender que existe uma grande influência do contexto cultural, a qual difere as concepções que cada um de nós possui do tema, em escalas subjetiva e social.

É a partir dessa perspectiva que Graziela Fachim, atualmente doutoranda em Letras na UFSM, desenvolveu o seu projeto de mestrado: “A representação do amor entre adolescentes: uma análise sistêmico-funcional”. Orientada pela professora do Departamento de Letras Vernáculas, Sara Regina Scotta Cabral, a pesquisadora buscava entender como os adolescentes de turmas do 3º ano de uma escola do ensino médio em Santa Maria enxergavam o amor. O projeto, finalizado em 2019, traz uma análise linguística sistêmico-funcional dos textos elaborados pelos estudantes para descrever e articular o tema, e aplica conceitos teóricos para avaliar os seus significados.  

Por mais curiosa que possa parecer, a “linguagem do amor” é um aspecto que já vem sendo analisado no mundo acadêmico Brasil afora. Dois exemplos são os artigos “A representação do amor na transitividade: um estudo sobre os processos e metáforas ideacionais em canções de Funk e MPB”, por Cinara Cortez da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; e o “Transitivity Analysis: representation of love in Wilde’s ‘The Nightgale and the Rose’”, de Asad Mehmood e outros autores da Universidade de Sargodah, no Paquistão, o qual busca identificar os conceitos de amor dos personagens criados por Oscar Wilde no conto “O Rouxinol e a Rosa”. O tema se tornou o eixo de dissertação de Graziela a partir do seu interesse em entender como um sentimento tão abstrato poderia ser materializado – representado linguisticamente – e, na época, o seu contato com adolescentes através do trabalho em escolas de línguas foi o que definiu o corpus da pesquisa. 

Dois aspectos base: a psicologia e a sociologia 

A dissertação de Graziela levanta o conceito de “amor” em três aspectos: o da psicologia cognitiva e histórico-cultural, o da sociologia e o da linguística sistêmico-funcional.

Para a psicologia cognitiva e histórico-cultural, as concepções do romancista e psicólogo Keith Oatley consideram que as emoções são causadas por eventos que nos são importantes – que se relacionam, por exemplo, com as nossas aspirações e preocupações. Com o amor não é diferente, porém, como Graziela cita em seu texto, “Djicik e Oatley (2004) destacam em seu artigo que o amor possibilita identificarmos aspectos de nossa própria individualidade que não poderíamos descobrir sozinhos”. O teórico também acredita que a nossa capacidade de amar é afetada pelas experiências que tivemos na infância. No caso dos adolescentes, essa bagagem de experiências se junta com aspectos culturais – e ambas facetas são internalizadas. Neste campo da psicologia, a adolescência é vista como uma fase cujos sentimentos estão se desenvolvendo. Assim, muitos adolescentes como os da faixa etária da pesquisa de Graziela – entre 17 e 18 anos – estão experienciando o ato de amar pela primeira vez.

Já através dos conceitos da sociologia, a dissertação de Graziela contempla o amor na modernidade – mais especificamente pelas reflexões do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman em sua obra “Amor líquido”. Para Bauman, os efeitos do capitalismo que se conectam com a ideia de agilidade e rapidez de mudanças também têm consequências para as relações: as organizações sociais são inconstantes e se dissolvem de maneira mais rápida quando comparadas à sua construção. Isso significa que as relações são frágeis e, segundo Graziela, se conectam com a ideia de “serventia de necessidades”. Além disso, a desconfiança e o medo da vulnerabilidade e da perda de autonomia também levam a sociedade à “época do desapego”, na qual laços de lealdade e compromisso mútuo se encontram enfraquecidos. Um reflexo disso na vida dos adolescentes é o hábito de “ficar” – o que, para Bauman, se relaciona a uma fase de testes antes de algo ser classificado como amor.

Porém, vale lembrar que ainda existe outra concepção muito forte nas representações culturais: o do amor romântico idealizado. Portanto, o adolescente se veria tendo  que assimilar uma dualidade de ideais: o do amor de filmes e livros – “o da metade da laranja” –, e o do amor líquido.

A linguística sistêmico-funcional e o sistema de avaliatividade 

Por fim, os conceitos utilizados pela dissertação no sentido da linguística sistêmico-funcional levam em consideração o modelo de descrição e análise lexicogramatical desenvolvido na década de 1960 por Michael A. K. Halliday. Segundo Graziela, o modelo é considerado ‘sistêmico’ porque “nós consideramos a linguagem como um sistema de escolhas. A mesma ideia pode ser escolhida para ser falada de diferentes formas e isso depende do contexto que se está inserido. Então, eu posso estar conversando com um aluno ou com um professor sobre o mesmo tema, mas as minhas escolhas linguísticas vão ser feitas de acordo com o contexto em que eu estou, com um propósito específico. E por isso que ela é funcional: porque eu tenho um propósito a ser cumprido através da comunicação”. Nesse sentido, a linguagem se relaciona com as emoções, pois, a partir dessas escolhas, os recursos linguísticos afetam a comunicação. Isso ocorre porque, ao conversarmos com alguém, as emoções que sentimos fazem parte de uma reação ao que o outro fala – e vice-versa.

“A comunicação faz parte da construção do nosso sentimento e, no momento que o aluno está inserido em um contexto específico, ele também vai aprendendo esses recursos no meio em que ele está imerso. Então ele é culturalmente afetado por isso. Nós temos essa ideia de amor aqui no Brasil, em Santa Maria, mas se formos para a China ou para o Oriente Médio, o conceito de amor vai ser completamente diferente, então as nossas emoções também são feitas culturalmente”, explica.

Para a professora e orientadora da tese, Sara Cabral, “estudar a linguagem é, acima de tudo, buscar compreender como é e como funciona uma sociedade, e quais valores, ideias, opiniões e crenças ali circulam. No âmbito acadêmico, isso nos interessa muito de perto, porque, nos cursos de Letras, somos preparados para lidar com pessoas de diversas etapas de formação, principalmente adolescência e juventude. Entender o jovem e o que ele diz pode nos propiciar condições de realizar trabalhos mais adequados e efetivos, de modo a não só promover a aproximação humana, mas também buscar condições de compreender seu mundo, seus sentimentos e suas ações”.

Ainda, o sistema de avaliatividade utilizado pela autora da dissertação e criado por Martin White considera que, ao nos comunicarmos, estamos fazendo constantemente avaliações. “Essas marcas avaliativas podem ser de três categorias diferentes: de afeto, em que momento que eles avaliam aquilo afetivamente; de julgamento, que entram questões mais éticas; e de apreciação, que seria de descrição, as qualidades daquilo”, explica a doutoranda. Essa ferramenta proporcionou as categorizações finais do que é o amor para os participantes da pesquisa. 

Conclusões: um amor não tão líquido assim

Fundamentada em todos esses aspectos teóricos, a pesquisa de Graziela foi colocada em prática. A participação dos adolescentes era totalmente voluntária, contou com um termo de consentimento e, para os menores de idade, de autorização dos pais – ao total, foram 25 participantes. O trabalho foi dividido em dois momentos e o primeiro deles foi o encontro inicial e de apresentação do projeto. Nele, os participantes responderam um questionário de seis questões, de forma anônima. Esse questionário continha perguntas abertas e fechadas e visava identificar o contexto pessoal de cada um dos participantes a fim de situar a discussão sobre o amor. Foram perguntas sobre quem eram as pessoas que os faziam se sentir amados, a quem eles direcionavam o seu amor, e em que situações eles se sentiam e faziam com que outras pessoas se sentissem amadas. O segundo encontro foi marcado pela escrita de um relato pessoal pelos adolescentes, respondendo à pergunta “O que é o amor?”.

Após a coleta e análise dessas respostas, a conclusão do trabalho foi que, na maioria das situações apresentadas pelos adolescentes, eles ainda se percebiam como “Recebedores” desse amor (56%) – o que vai ao encontro da ideia da psicologia cognitiva histórico-social, na medida em que se considera que o papel de “Amante” ainda é visto como algo relativamente novo para esses jovens indivíduos, ainda em construção emocional. Entre o amor sentido e o amor recebido, pessoas que obtiveram destaque foram a mãe e o pai, seguido pelos amigos.

Para Graziela, uma das maiores surpresas foi a consideração do amor como presente em momentos de dificuldade pelos adolescentes – 48% em frases que eles estariam descrevendo experienciar o sentimento e 32% em frases que eles comentaram demonstrar o amor através do apoio. Além disso, a partir das análises de Avaliatividade, a pesquisa mencionou a categorização do amor em três domínios: o amor feliz, o amor zeloso e o amor altruísta. O amor feliz estaria relacionado ao sentimento de felicidade ao amar e ser amado; o amor zeloso é referente a carinho e proteção, o cuidado com o outro; e o amor altruísta está mais ligado com uma característica ética do que carinho em si.

Isso também foi uma surpresa: “Nós tínhamos a expectativa de que talvez o amor para eles fosse líquido, porque eles vivem nesse meio que tudo acontece muito rápido. E, na verdade, quando fomos chegando na conclusão, percebemos que ele não é tão líquido assim – porque ele tem três pilares muito fortes. Na verdade, mostra que o bem próprio não é tão importante para eles – porque existem outros pilares ali. A felicidade não é só a minha, também é a tua. Eu tenho que ter cuidado contigo, eu sei que eu te amo porque eu me preocupo contigo, com o teu bem-estar. E se preciso, coloco as tuas necessidades frente às minhas. De certa forma, eu não estou pensando só em mim, penso no outro”, comenta a autora.

Em 2021, Graziela Fachim trabalha em sua tese de doutorado também sobre a linguagem do amor – porém dessa vez aplicada na literatura. Para ela, os aprendizados do mestrado podem ser considerados ao vivermos uma pandemia, “Eu acredito que pós-pandemia, a nossa concepção de amor pode até sofrer alterações. Porque agora estamos, de certa forma, afastados, mas, ao mesmo tempo, tentando criar laços de solidariedade com as pessoas. Então, uma dessas categorias de amor que nós encontramos no mestrado – que é o amor zeloso, de se preocupar com o outro -, eu acredito estar muito mais aparente nesse momento. Porque é nesse momento que a gente mostra a preocupação por quem se ama”. E você? Como anda aplicando o seu amor zeloso ultimamente?

Expediente

Repórter: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista

Ilustrador: Renata Costa, acadêmica de Produção Editorial e bolsista

Mídia Social: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Eloíze Moraes e Martina Pozzebon, estagiárias de Jornalismo

Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas

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