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O despertar da ancestralidade negra: da memória narrada ao FamilySearch

Doutoranda em História da UFSM reconstrói trajetórias sub-representadas e mostra que a genealogia também pode contar histórias de famílias negras



Quem foram os seus antepassados? Qual a trajetória da sua família? Qual a origem do seu sobrenome? Perguntas como essas causam inquietações em grande parte da população negro-brasileira que teve, historicamente, sua ancestralidade negada. O apagamento de registros históricos oficiais e o silenciamento do povo negro oculta intensas trajetórias de sobrevivência, resistência e legados. Hoje, o movimento de resgate das raízes ancestrais demonstra que é possível reconstruir a história que não teve espaço nos livros. 

 

“Quando procuramos essas histórias, um mundo negro se abre. Um mundo muito possível de ser narrado e que, por outro lado, é assustadoramente calado”, conta a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Franciele Rocha de Oliveira, que faz parte do Grupo de Estudos sobre o pós-Abolição (GEPA) e estuda a história negra e trajetórias familiares há mais de 10 anos. Recentemente, a pesquisadora ministrou um curso sobre como utilizar o FamilySearch para encontrar fontes para o estudo de trajetórias individuais, coletivas e familiares. A ferramenta é a maior base de dados de genealogia do mundo e disponibiliza milhões de documentos históricos.

Descrição da imagem: Ilustração horizontal e colorida de um adolescente negro que está de perfil, sentado em frente a um computador. O computador é do tipo desktop, na cor cinza, e está envolto por raízes de uma árvore de tronco marrom e retorcido, que está acima do computador, na parte esquerda da imagem. Em três das raízes da árvore, estão pendurados cartões de identificação presos por uma fita vermelha. Um desses cartões está na frente do jovem, que está com uma das mãos por baixo do cartão. Ele tem pele negra escura, cabelos pretos, crespos e volumosos, do tipo Black Power. Tem olhos castanhos, sobrancelhas arqueadas, lábios e nariz grossos, e orelhas grandes. Sorri levemente. Veste moletom na cor malva. Ao lado da cabeça dele, estão desenhados dois pontos de exclamação na cor azul. Os braços estão apoiados em uma mesa grande de madeira na cor caramelo. Em cima da mesa, além do computador desktop, há um porta retrato com moldura berinjela com foto de quatro pessoas e detalhe de um documento na cor creme. Ao fundo do jovem, janela quadrada pela qual entra claridade. O fundo é uma parede amarelo pastel.

Com foco nos estudos de famílias negras sub-representadas nos estudos genealógicos, o curso teve 45 vagas, das quais 15 foram disponibilizadas gratuitamente para pessoas autodeclaradas pretas ou pardas. Foram três dias de encontros síncronos que abordaram o uso da plataforma e, no último dia, foi proposto um exercício prático no qual as pessoas poderiam tentar construir/representar as genealogias de suas famílias, com base nos métodos aprendidos no minicurso. Mas, antes disso, Franciele deixou um aviso na tela para os participantes:

“Nem todas as famílias possuem trajetórias fáceis de serem narradas e pesquisadas. Lembre-se que é possível reconstruir famílias, ainda que seus registros possuam lacunas, ainda que suas trajetórias tenham desafiado convenções e padrões familiares e afetivos. Memória narrada em porta, os silêncios e as ocultações também têm significados” – Franciele Oliveira

Para utilizar o FamilySearch, primeiro é necessário fazer o registro, que solicita o nome do usuário, dos pais e a data de nascimento.  Quem cadastra seus dados na plataforma vira uma espécie de fonte de informações dentro da rede para pessoas que venham a pesquisar no futuro. Isso faz com que seja possível encontrar registros da família, compartilhar arquivos e fazer com que outras pessoas também possam se conectar com a sua genealogia.

 

A historiadora explica que as pessoas fazem genealogias ou procuram saber sobre a história da família tendo como base o ideal de que conhecer o passado ajuda a compreender o futuro e a transformar o presente. O fato de as gerações de agora poderem olhar para suas famílias de maneira crítica, entender o que os antepassados viveram e quem eram, é uma questão de busca identitária. Para além de ter a genealogia montada, ela reconhece a potência que a reflexão sobre a história da família permite.

 

Leticia Prates, estudante de Pedagogia na UFSM, participou do curso para se conectar com as suas raízes ancestrais. Ela relata que, a partir da experiência, durante três dias teve a oportunidade de procurar informações com familiares, revisitar documentos da família e fazer caminhos possíveis no FamilySearch que a levaram a encontrar registros que poderiam ajudar na construção da árvore genealógica. O exercício era de Letícia, mas toda a família foi envolvida no processo de descobertas que a levaram até os registros da tataravó — que sua avó de 89 anos não conhecia. 

Para Letícia, a importância do resgate da ancestralidade está na reafirmação e no rompimento de ciclos: “Eu já estava na quarta geração de empregadas domésticas da família, então me dar conta desse contexto psicológico, econômico, territorial, de classe, de cor e de gênero também foi muito importante, para saber de onde eu vim e para onde eu vou”, afirma a estudante.

A maior árvore familiar compartilhada do mundo

A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, religião popularmente conhecida como “Igreja Mórmon”, é fundamentada na crença de famílias eternas e ordenanças póstumas (batismo e confirmação e dom do Espírito Santo). Para eles, as ordenanças realizadas nos templos possibilitam que as famílias se unam para a eternidade e retornem a Deus no plano celestial, ou seja, que, ao batizarem os seus ancestrais, será possível encontrá-los após a morte. Nesse sentido, com o objetivo de coletar registros genealógicos e preservar a história da família, em 1894, a Igreja fundou a 1ª Sociedade Genealógica de Utah – SGU, que continha em sua biblioteca uma coleção de 300 livros. 

 

Ao longo do tempo, a Sociedade construiu fichas, microfilmes e catálogos de registros civis e paroquiais de toda a sociedade civil, em busca de expandir o projeto a nível global. Em 1998, a SGU passou a gerar imagens digitais para construir o site FamilySearch e, hoje, tem aproximadamente dois bilhões de registros e cinco bilhões de imagens indexadas, que consistem em registros de nascimento, de casamento e de morte, censos, inventários e testamentos, cartas de alforrias e registros de terras. Todos os microfilmes que estão na sede de Salt Lake City, no estado de Utah, oeste dos Estados Unidos, também estão nessa plataforma e podem ser acessados de qualquer lugar. 

 

Franciele Oliveira afirma que sempre utilizou a plataforma e que, para os historiadores, esse recurso é fundamental: “O tempo que eu demoraria indo a Porto Alegre, para olhar os casamentos, agora eu consigo fazer da minha casa. É possível abrir muitos dos registros e olhar um por um.” Dessa forma, a plataforma se tornou essencial para as pesquisas dela. Apesar disso, ela comenta que não estava entre os princípios do FamilySearch a preocupação com as famílias negras. “Estamos falando de um contexto do pós-Abolição norte americano. De uma organização que também vai passar pelo racismo estrutural, e que vai ser recortada por essas questões raciais”, explica a pesquisadora.

A preocupação do resgate às raízes ancestrais negras não têm origem na fundação da SGU, mas, com o tempo, e com a presença de 4,6 mil centros de história da família em 126 países, isso muda. O FamilySearch Brasil, por exemplo, tem como um de seus projetos mais recentes digitalizar os registros relativos à diáspora africana no país. A base mobiliza as pessoas a irem em busca de suas histórias familiares. Para Franciele, o principal aspecto do FamilySearch é que, atrelado aos estudos das famílias negras, permite pensar as relações de gênero e de diversidade, as práticas nominativas, as políticas públicas, as migrações e imigrações, a demografia social, a história da saúde, as relações afetivas e de parentesco, a história econômica, a mobilidade social, o compadrio, a maternidade e a paternidade, a genealogia forense, a hereditariedade, entre inúmeras outras questões.

A escuta como estratégia de resistência

Foi numa roda de memória no Museu Treze de Maio, em meados de 2010, que Franciele teve o primeiro contato com as histórias da população negra santa-mariense. Inicialmente não imaginava a dimensão dessa história e nem que circulava por um território historicamente negro. Mas os encontros no Museu, localizado no centro de Santa Maria, abriram seus olhos. Lá aconteciam as rodas de lembranças, que recordavam a época em que o museu era um Clube Social Negro: a Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio. Por meio dos relatos de antigos associados, a então estudante do curso de História passou a conhecer a trajetória e as reivindicações da comunidade negra de Santa Maria e região e, em contato com as pessoas desse meio, encontrou a sua linha de pesquisa, que seguiria até o doutorado. 

 

Para o trabalho de conclusão de curso, estudou as memórias do clube social negro União Familiar, fundado em Santa Maria no pós-Abolição. Na dissertação, pesquisou as trajetórias de uma família negra entre a escravidão e a liberdade no Rio Grande do Sul. Atualmente, na tese, acompanha as histórias das famílias nascidas de Ventre Livre no pós-Abolição. Somando estes e outros projetos, já entrevistou, ao todo, 47 pessoas.

“Os estudos das famílias negras têm demonstrado como a família por si só é uma forma de resistência, porque é possível construir apoio, afeto, solidariedade, casa e relações que são fundamentais para o grupo sobreviver e passar esse legado adiante” – Franciele Oliveira.

As famílias entrevistadas guardam acervos particulares, fotografias, documentos e memórias impactantes, que demonstram que é possível reconstruir as trajetórias, apesar de este ser um trabalho árduo. Franciele conta que, por uma série de razões, é diferente pesquisar  famílias negras do que trabalhar com famílias brancas: “A principal das razões é que envolve a escravidão, a violência, a separação, a venda dessas pessoas, o tráfico, a mudança de nome, e envolve uma memória traumática também que é difícil de ser narrada”, reflete. No entanto, ela salienta que esse trabalho não é impossível. 

 

Uma das histórias que a pesquisadora acompanha em Santa Maria é da família que foi escravizada pelos Niederauer — o grupo familiar de imigrantes alemães muito conhecido e tradicionalmente homenageado na cidade. Matilde era uma mulher escravizada; mãe de Nemésio e Honorina Niederauer, ambos batizados com o nome do pai da família senhorial. Matilde era, portanto, bisavó de Vilceu Niederauer, que hoje relata o seu conhecimento dos fatos, conforme as memórias distantes da infância vêm à tona: “O meu avô, o Nemésio, tinha um comportamento meio arredio. Quando crianças, nós visitávamos a chácara onde ele morava, nós não participávamos das conversas dos adultos, mas a gente captava [as conversas]”, recorda. Vilceu destaca que esse resgate é importante porque grande parte da população santa-mariense desconhece a história negra não só da família Niederauer, mas também de outras da região que têm origem africana. 

 

Mesmo com os avanços nos estudos, na perspectiva de Franciele as histórias negras ainda são ignoradas pelos genealogistas tradicionais. No Rio Grande do Sul, há uma grande procura pelo estudo de famílias ítalo-germânicas, nos quais não cabe uma linha sequer sobre a história escravista destes grupos: “Existe uma romantização com relação a essas trajetórias que são tratadas de forma desigual, as pessoas querem ter uma conexão com um passado europeu, a um “sangue azul”… As pessoas vão dizer que não são racistas; [vão dizer] que o racismo existe, mas que ninguém é racista. Mas é evidente que as sociedades genealógicas ainda são extremamente restritas às famílias brancas”, argumenta a historiadora. 

A cada descoberta proporcionada pelas pesquisas, o objetivo de Franciele como historiadora só fica mais claro: ouvir as histórias negras e contribuir para manter suas memórias vivas. “Os estudos das famílias negras têm demonstrado como a família por si só é uma forma de resistência, porque é possível construir apoio, afeto, solidariedade, casa e relações que são fundamentais para o grupo sobreviver e passar esse legado adiante”.

Expediente:

Reportagem: Jéssica Medeiros, acadêmica de Jornalismo e estagiária;

Design gráfico: Rafael Freitas, acadêmico de Desenho Industrial e voluntário;

Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Gabriel Escobar, acadêmico de Jornalismo e voluntário; e Nathália Brum, acadêmica de Jornalismo e estagiária;

Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;

Edição Geral: Luciane Treulieb, jornalista.

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