1. A crise climática e o racismo ambiental estão interligados? Como essa relação se manifesta no Brasil e quais são os desafios na comunicação desses impactos para a sociedade?
Sim. Para um melhor entendimento sobre essa relação é preciso falar um pouco sobre o termo racismo ambiental. Em meio aos movimentos por justiça ambiental que ocorriam na década de 1970 nos EUA ele foi definido pelo químico, ativista por direitos civis e líder religioso Benjamin Chavis como expressão da discriminação racial na construção das políticas ambientais na forma de ataque deliberado às “comunidades de cor”. Esse conceito consolidou-se na literatura científica pelo sociólogo Robert Bullard, como políticas, práticas ou diretrizes capazes de afetar ou prejudicar, voluntária ou involuntariamente, pessoas, grupos ou comunidades por motivos de raça ou de cor. Quase 25 anos depois, racismo ambiental seria definido no Brasil como “injustiças ambientais que recaem sobre grupos étnicos vulnerabilizados e sobre outras comunidades, discriminadas por sua ‘raça’, origem ou cor”. Essas definições atribuem à noção de racismo ambiental um sentido de intencionalidade discriminatória baseado em critérios relacionados, principalmente, à aparência ou à origem. Por outro lado, a sua produção é atribuída a entidades governamentais e/ou privadas.
A relação entre crise climática e racismo ambiental pode ser mais bem observada nos eventos climáticos extremos, nas tempestades severas, estiagens ou nas ondas de calor. Nessas situações as pessoas que vivem em condições mais precárias são as que mais sofrem. Pretos e pardos são a maioria entre as pessoas em situação de extrema pobreza, assim como entre aquelas que vivem em favelas no país, de acordo com o IBGE. Resultado de um desenvolvimento histórico marcado pela exploração colonial, que provocou o genocídio de diversos povos originários e a escravização, tortura e morte de milhões de africanos de diferentes etnias, além da criminalização e da exclusão sistemática de seus descendentes do acesso a serviços e direitos elementares. Num cenário de mudanças climáticas, o racismo ambiental pode ser percebido pela ausência de políticas públicas capazes de assegurar às pessoas mais vulneráveis as condições necessárias para evitarem-se as perdas materiais, físicas e afetivas. Medidas como o disparo de alertas via dispositivos móveis e de sirenes em comunidades em que há famílias em situação de risco são importantes, mas têm se demonstrado insuficientes. A produção de dados baseados em evidências que permitam definir situações de risco como forma de prevenção às crises climáticas é fundamental para a consolidação de políticas públicas. Nesse sentido, a comunicação dos impactos – que variam de acordo com as características territoriais, étnico-raciais e econômicas da população atingida – das mudanças climáticas, tem como principais desafios; a obtenção de dados qualificados e contextualizados sobre esses impactos, o que requer condições adequadas para a realização de pesquisa crítica; a conquista de públicos mais amplos, para além daqueles existentes nos meios acadêmicos e políticos, com capilaridade e alcance entre as pessoas potencialmente mais afetadas pela crise climática, o que pode ser potencializado pela criação de redes de informação sobre a temática; tornar a comunicação inteligível para segmentos da população não familiarizados com as temáticas que estamos a tratar.
2. Muitas vezes, o racismo ambiental é tratado apenas como uma questão socioeconômica. Como diferenciar essa problemática de uma desigualdade cada vez mais ampla e qual o papel da comunicação na construção dessa distinção?
A dificuldade em discutir-se racismo ambiental sem considerar a questão socioeconômica, ainda que esse fenômeno não se reduza à economia, se assemelha à impossibilidade de tratar da questão ambiental à parte da social. Dados de renda, saneamento, escolaridade e habitação, por exemplo, mostram significativa correlação entre baixos índices de desenvolvimento humano e população negra (pretos e pardos, IBGE) no Brasil. De fato, a questão socioeconômica condiciona as possibilidades de construção e/ou aquisição de um imóvel, refrigeração de ambientes, agilidade para deslocamentos, acesso à água potável ou a serviços de coleta domiciliar de resíduos sólidos, entre outras. Ou seja, significa que ela impõe restrições ao acesso por parte dos setores da população mais vulneráveis a recursos que reduziriam os impactos dos eventos climáticos extremos. Por outro lado, pobreza, de um modo geral e, pretos, pardos e indígenas, em especial, não são priorizados na definição dos investimentos públicos por parte de governos que se orientam pelos princípios do neoliberalismo. Dessa maneira, o racismo ambiental entendido como relação social que se dá no interior de uma formação socioeconômica neoliberal, de certo modo, distancia-se da questão puramente socioeconômica quando pensado como componente de uma ideologia que busca justificar a necessidade de assegurar-se a reprodução de “melhores espécimes”, dos “mais aptos”. Essas ideias encontram-se no processo de consolidação de uma doutrina sociopolítica marcante na primeira metade do século passado e presente como um espectro na definição e na aplicação de políticas públicas em nosso país. Sendo assim, o racismo ambiental configura-se no Brasil com traços ideológicos do eugenismo. Quando se observa, p. ex., que o direcionamento e a aplicação de recursos públicos resultam na distribuição espacial desequilibrada de equipamentos sociais e públicos, como as unidades de saúde, escolas, os de abastecimento de água e esgotos, coleta de águas pluviais etc., ou quando se constata que a concessão de incentivos fiscais e a cessão de áreas públicas pelo Estado às indústrias poluidoras, via de regra, se sobrepõem a espaços ocupados pelos segmentos mais vulneráveis da população, percebe-se o racismo ambiental em estado latente. Argumentos como a necessidade de redução das despesas públicas, atenção com relação ao limite de gastos e expressões como austeridade econômica e fiscal, são úteis na ocultação de interesses reais. Alinhado ao eugenismo o racismo ambiental pode ser compreendido como uma manifestação afeita ao supremacismo racial, à medida que espaços ocupados por setores da população considerados inferiores, desimportantes ou mesmo, desprezíveis, não merecem a mesma atenção, na forma de investimentos públicos, que aqueles pelos quais circula a minoria concentradora de riquezas. Além dessas particularidades de caráter subjetivo que atravessam a noção de racismo ambiental há outras ações mais diretas, que capitalistas de diferentes matizes e níveis de riqueza promovem a fim de potencializar seus ganhos. Como a prática de guerra química contra trabalhadores rurais, povos originários e ribeirinhos por meio do derramamento de agrotóxicos com o uso de aviões monomotores, registrada em todas as regiões e biomas brasileiros, especialmente em disputas que envolvem territórios indígenas e quilombolas. A mineração, o garimpo e extração ilegal de água de territórios quilombolas para a irrigação de monoculturas destinadas à exportação ou os incêndios criminosos e o desmatamento em regiões do Cerrado, da Amazônia e do Pantanal habitadas por povos tradicionais para a expansão da pecuária de corte podem ser citados como eventos relacionados ao racismo ambiental e, além de exporem grupos vulneráveis a riscos consideráveis, têm relação direta com a produção do aquecimento global. Assim, o caminho para a diferenciação entre a questão do racismo ambiental e a questão econômica pode ser feito a partir da compreensão dos aspectos político-ideológicos que definem como e a que interesses servem governos e Estado neoliberais. A comunicação pode cumprir um papel importante nesse campo, caso consiga superar as forças ideológicas e político-econômicas atuam na definição das pautas que devem ser construídas e dos conteúdos a serem comunicados. Para tanto, ela precisa alimentar e promover fluxos de informação sobre os aspectos que permitem observar tal diferenciação.
3. No contexto de crises climáticas – como enchentes, deslizamentos e ondas de calor –, como o racismo ambiental se reflete na vulnerabilidade da população e na resposta do poder público?
As origens históricas da sociedade brasileira explicam a ocupação espacial do território. A colonização teve início no litoral antes de se interiorizar. A Igreja teve um papel importante nesse processo com a atuação de missionários de diferentes ordens. Como testemunhos arquitetônicos desse processo histórico várias igrejas estão presentes em diversas cidades do país. O que poderia explicar a permanência desses prédios imponentes durante séculos nesses lugares, além dos investimentos em restaurações e manutenção? A sua localização privilegiada. Como contrapartida desse processo de ocupação do território setores da população compostos por ex-escravos, trabalhadores rurais e pobres urbanos em geral foram “empurrados” para lugares cujas condições para fixação de moradias não eram adequadas, como as encostas de morros, áreas inundáveis, terras de baixa fertilidade etc. Esses lugares foram sendo ocupados de acordo com as possibilidades limitadas desses grupos sociais desterritorializados, que passaram a viver em situação iminente risco, sem as condições adequadas de saneamento, que incluem esgotamento sanitário, sistemas de drenagem e coleta regular de lixo, o que impacta a sua qualidade de vida. Com o avanço do capitalismo no Brasil essa territorialização assume caráter corporativo, com as corporações utilizando o essencial dos recursos públicos, o que impede que camadas da sociedade historicamente excluídas tenham acesso aos chamados serviços sociais. No caso dos negros, é isso o que se passa”. Se levarmos em conta o fato de os efeitos do aquecimento global sobre o clima serem fenômenos recentes, podemos considerar que, além de esses grupos terem ocupado áreas com condições inadequadas para se viver, a sua instalação nesses lugares não levou em conta os potenciais impactos dos eventos climáticos. Portanto, o racismo ambiental deve ser analisado tendo como referência a formação histórica e econômico-social brasileira e o processo de territorialização sob o capitalismo. Desde os seus primórdios, enquanto se desenvolvia no continente europeu, o capitalismo se estruturou a partir de relações socioeconômicas racializadas. No Brasil o seu desenvolvimento se dá a partir das relações econômico-sociais escravistas. Como resultado desse processo observa-se que as pessoas mais vulneráveis aos eventos extremos são as mais pobres e as mais discriminadas, como as negras e as indígenas no Brasil, ou os palestinos em Gaza e na Cisjordânia, afro-americanos, afro-caribenhos, asiáticos e latinos nos EUA, enfim, as consideradas descartáveis no neoliberalismo. E, por serem discriminadas e descartáveis, são tratadas pelos poderes públicos e por agentes privados com descaso e/ou como adversárias e, uma vez que lutem pelo direito à vida, passarão a ser consideradas inimigas. Nesse cenário, a comunicação feita pela grande mídia é reveladora da relativização do valor atribuído às vítimas das crises climáticas. De tal modo que os incêndios de 2024 na Califórnia mereceram destaque em telejornais e na Internet até quando estiveram acesas as chamas, com tomadas aéreas, depoimentos de milionários que perderam parte dos seus investimentos imobiliários. Por outro lado, a seca extrema que atingiu a Amazônia em 2023, na qual os municípios de Manaus (mais de 75% da população é negra), Tefé (mais 80% se define como negra e em torno de 11% como indígena), São Gabriel da Cachoeira (com aproximadamente 90% indígena e 9% negra) foram afetados pela falta de água potável e alimentos, pela poluição atmosférica (Manaus), o que resultou em adoecimento e perda de biodiversidade (mortandade de peixes/botos) etc., não teve a mesma repercussão midiática. Tampouco mereceu a devida atenção dos poderes públicos. De modo que o racismo não se faz presente no meio ambiente ou na crise climática, mas corresponde à inação irresponsável e às políticas públicas que prejudicam, de forma intencional ou não, os grupos sociais mais vulneráveis e, em especial, grupos étnicos discriminados.
4. A desinformação e a falta de cobertura jornalística adequada podem dificultar a mobilização contra o racismo ambiental? Quais estratégias comunicacionais podem ser adotadas para sensibilizar a opinião pública e pressionar por mudanças estruturais?
Certamente. A desinformação é uma estratégia que busca não somente desmobilizar as pessoas que se opõem ao racismo ambiental ou a qualquer outra injustiça, mas que também desacredita jornalistas, cientistas e lideranças populares, entre outros, que denunciam as causas e as consequências da crise ambiental. Trata-se de uma estratégia que, desde quando o consumo do cigarro foi associado ao desenvolvimento do câncer pulmonar tornou-se útil aos interesses oligárquicos associados à produção de combustíveis fósseis, à mineração, às indústrias bélica e química, enfim, às corporações. A produção e o uso dos combustíveis fósseis são a principal causa do efeito estufa, geram poluição, contaminação ambiental e danos graves à saúde humana e à de outros seres. A mineração provoca contaminação ambiental e destruição em larga escala. As guerras e os produtos químicos geram destruição, devastação ambiental e mortes em massa. No entanto, do ponto de vista das corporações, verdadeiras gestoras do sistema global, a divulgação dessas informações não é desejável. O “agro” precisa ser visto como “pop” e os inseticidas devem ser considerados “proteção”. A eficácia dessa estratégia de desinformação é tanta que o primeiro estudo abrangente sobre a rede de controle corporativo global foi feito somente em 2011, décadas após ela ter começado a existir. Atualmente a desinformação usa a propagação de fake news nas redes sociais, a IA e deep fakes em vídeos, mas se mantém por meio da difusão de notícias que distorcem fatos e, assim, alteram o significado do jornalismo que é o de busca incessante de informações verdadeiras sobre os fatos. Dessa forma, há cada vez menos coberturas jornalísticas adequadas, com checagem e crítica das fontes, principalmente nos grandes veículos de comunicação. A título de exemplo podemos citar a forma como tem sido noticiada a chamada “transição energética”, apresentada como necessária para a recuperação do planeta, numa abordagem que justifica o aumento da exploração de petróleo como forma de assegurar a ampliação do uso de fontes de energia “sustentáveis”. A recente decisão da Agência Nacional de Petróleo de autorizar leilões para a aquisição de “lotes” para a exploração da margem equatorial do Amazonas por corporações se sustenta nesse tipo de argumentação. A solução para as crises climáticas seria, de acordo com as corporações e os capitalistas verdes, de ordem técnica.
A construção de estratégias comunicacionais deve ser pensada junto dos defensores/as dos territórios, movimentos antirracistas, desterritorializados climáticos, povos tradicionais e originários, pois são eles quem melhor conhece as origens dos seus problemas e, por isso, consegue conceber as melhores soluções para eles. Portanto, para a definição dessas estratégias comunicacionais o caminho a ser seguido deve incluir a construção de “pontes” com esses grupos, aproximações feitas com base em diálogos, nas trocas fraternas de conhecimentos e informações. Todavia, com a consciência sobre os limites das “pressões” no sentido de promoverem mudanças estruturais na sociedade.
5. A abordagem de “Uma Só Saúde” (One Health) integra saúde humana, animal e ambiental. Como podemos inserir a questão do racismo ambiental nessa perspectiva, considerando a interseção entre mudanças climáticas, saúde pública e justiça social?
Casos como os de Mariana e Brumadinho, embora não estejam incluídos no rol daqueles que tiveram influência direta das mudanças climáticas, mas que, ainda assim, foram considerados pela grande mídia como “desastres ambientais”, podem ser úteis para pensarmos situações de racismo ambiental na perspectiva de “Uma Só Saúde”. A análise dos aspectos culturais e étnico-raciais das populações afetadas, das vidas perdidas, da biodiversidade destruída e, em contrapartida, da negligência da corporação responsável por toda destruição em restituí-las das suas perdas materiais, simbólicas e afetivas, aponta para a presença de elementos que caracterizam o racismo ambiental nos dois casos. A existência de passivos ambientais em espaços altamente sensíveis compromete a sua recuperação e torna inviável a recomposição de condições de equilíbrio entre diferentes espécies, de tal sorte que esses dois lugares se tornaram irreconhecíveis para os seus antigos habitantes. De forma abrupta esses espaços foram destituídos dos laços que uniam seus ocupantes, humanos, animais e vegetais. Num quadro de mudanças climáticas e descaso, a reconstituição desses laços e a própria sobrevivência tornam-se objetivos de difícil alcance. As muitas mortes e o adoecimento decorrentes dos dois crimes ambientais foram acompanhados pela perda da biodiversidade, no que podemos considerar como o adoecimento da própria “Mãe Terra”, numa concepção próxima à dos povos originários latino-americanos. Casos de depressão, hipertensão, suicídios, câncer, entre outros, além da morte de peixes, mamíferos terrestres, aves etc., dão aparência à destruição. Tais fatos correspondem à injustiça social extrema que se impõe em escala planetária, mas que se expressa no nível local. Fundos de investimentos têm retornos milionários em curto espaço de tempo, com compras e vendas diárias de ações, enquanto as pessoas afetadas pelos crimes ambientais decorrentes da atuação de mineradoras aguardam durante anos, senão por décadas, por indenizações que jamais reporão as perdas, inclusive, as não materiais, as afetivas, frutos da interação com o ambiente por meio da pura contemplação ou do diálogo com suas entidades, da obtenção de alimentos e de “remédios do mato” para enfermidades variadas, ou mesmo da perda de vidas humanas e não humanas, da memória de experiências coletivas de viver. A busca da superação do racismo ambiental dialoga com a perspectiva de “Uma Só Saúde”, pois, passa pela construção de alternativas que integrem conhecimentos, elementos da natureza e sujeitos históricos. A transição agroecológica é um exemplo nesse sentido, à medida que adota métodos que priorizam a saúde do solo, a biodiversidade e a redução do uso de insumos químicos, o que tende a reduzir os fatores que contribuem para a elevação do aquecimento no planeta, preservar a vida e prevenir doenças.
6. O Brasil tem grandes contrastes regionais. Como a comunicação pode ajudar a evidenciar as desigualdades ambientais e climáticas entre diferentes territórios do país?
Baseando-se no tratamento e no uso de informações resultantes de estudos científicos sobre essas desigualdades, preferencialmente, de forma referida àqueles que vivem e defendem seus territórios e todas as formas vidas neles presentes. Há dados sobre essas desigualdades organizados e disponíveis em sites do IBGE, IPEA, Observatório do Clima, De Olho nos Ruralistas, Atlas dos Agrotóxicos, universidades etc. O uso desses dados em matérias jornalísticas e informativas pode ajudar a comunicação evidenciar as desigualdades ambientais e climáticas, principalmente, se eles forem confrontados com as informações produzidas por aqueles/as que vivenciam os problemas nos seus territórios. Nesse caso, a busca dessas informações teria que acontecer noutros ambientes como as redes sociais, em perfis de movimentos populares e de lideranças locais, por exemplo.
Além disso, fazendo da articulação com movimentos e grupos locais um meio para estimular e promover discussões sobre esses grandes contrastes regionais e as desigualdades ambientais e climáticas a ele relacionadas, seja através de seminários, debates, encontros temáticos etc. e, por fim, facilitar a disseminação de informações produzidas a partir desses diálogos.
7. A pesquisa acadêmica e institucional sobre racismo ambiental tem avançado no Brasil? Como a Fiocruz e outras instituições têm contribuído para consolidar esse campo, e como os dados gerados podem influenciar políticas públicas e comunicação de risco?
Se usarmos como parâmetro o número de publicações sobre essa temática é possível afirmar que, sim. Embora, não tenha sido possível encontrar dados que caracterizem esse avanço em escala nacional, a comparação entre a quantidade de publicações sobre racismo ambiental em 2005, ano da realização do I Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, e a de quase duas décadas depois mostra um considerável aumento de trabalhos acadêmicos, relatórios, matérias jornalísticas, entrevistas etc. que abordam essa questão. Mas, somente uma pesquisa consistente sobre essas publicações, que considere seus autores, abordagens, alcance etc. e identifique grupos de pesquisa, fóruns, instituições, movimentos sociais etc. que discutem essa temática pode informar com maior nível de aprofundamento sobre esse avanço. Desconheço a existência de algum estudo com essas características, o que pode ser resultado de uma falha pessoal nas pesquisas que faço sobre o assunto ou a indicação de que essa é uma lacuna a ser preenchida.
A ampliação do debate sobre a questão do racismo ambiental se dá na esteira de lutas históricas de negros/as e povos originários pela terra, por direitos negados, contra a opressão e em defesa da vida. Esse avanço pode ser atribuído, em parte, à ampliação do acesso às universidades públicas e a outras instituições de educação por pessoas negras, indígenas e quilombolas. Dez anos após a promulgação da Lei de Cotas o número de ingressos no ensino superior aumentou 167%. Assim, em 2022, 55.371 pessoas entraram nas faculdades, institutos técnicos federais e universidades pelo critério étnico-racial. Nesse sentido, o avanço dos estudos sobre racismo ambiental pode estar relacionado à ampliação do acesso ao ensino superior, assim como às lutas históricas negras e indígenas. O que também pode ser interpretado como a redefinição de bandeiras de lutas que, uma vez situadas no interior das instituições, passam a se expressar por meio de produtos como artigos, TCCs, dissertações, teses etc.
Um balanço da contribuição da Fiocruz e de outras instituições para a consolidação do “campo” do racismo ambiental, precisa recorrer à cronologia de como esse debate tem acontecido nesses ambientes. Falamos anteriormente que o primeiro seminário nacional sobre racismo ambiental aconteceu há vinte anos, período que, em termos históricos, pode ser considerado como curto para a consolidação de um campo no âmbito de instituições centenárias como a Fiocruz e algumas universidades, ou mesmo no de outras não tão antigas. Há que se considerar o peso das tradições nessas instituições para que se possa compreender o estado da arte das discussões sobre as questões-étnico raciais e o racismo ambiental que acontecem atualmente nelas. Dessa forma, parece mais sensato considerar as “contribuições” dessas instituições para esse debate como o resultado das disputas de sentidos sobre as duas questões acima. Em 2008 pesquisadores de várias instituições acadêmicas assinaram um manifesto “para oferecer argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem política e jurídica da República”. Dezesseis anos depois, onze dos signatários desse manifesto explicavam à Folha de São Paulo porque mudaram de opinião com relação às cotas, enquanto outros optaram por não se manifestarem a respeito do assunto. Também em 2008 foi criado o Programa de Controle da Dengue em Manguinhos, a partir de uma articulação entre servidores da Fiocruz, organizações e moradores das comunidades vizinhas ao campus Manguinhos/RJ. Esse programa, que teve a duração de três anos, promovia a formação de moradores voltada para a prevenção da dengue e o controle do seu principal vetor, com foco na vigilância ambiental. Nesse processo a questão do racismo ambiental aparecia de forma transversal, embora não fosse nomeada ou debatida como tal. Em dezembro de 2016 um debate na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) que tratou da relação entre racismo e saúde, tornou-se o ponto de partida para a criação de um Curso de Inverno que, por sua vez, deu origem a uma disciplina vinculada ao Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da ENSP. Nessas duas modalidades de formação, a questão do racismo ambiental compunha as ementas, sendo apresentada no formato de mesa com expositor/a seguida de discussões com o corpo discente e ofertada como opção de tema para a construção do trabalho final da disciplina.
Em 2017 o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas lançou na Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) o projeto Sankofa, que busca potencializar estudos, pesquisas, atividades escolares e extraescolares sobre questões e relações étnico-raciais. Em 2024 esse projeto chegou à sétima edição e entre os temas que discutiu estava o racismo ambiental. Em 2023 foi criada a Coordenação de Equidade, Diversidade, Inclusão e Políticas Afirmativas (Cedipa) que se organiza sobre os eixos de enfrentamento às desigualdades e violências de gênero, às desigualdades étnico-raciais e ao capacitismo. Em 2024 a Cedipa promoveu o Seminário Racismo Ambiental e Crise Climática: impactos na saúde da população negra, no qual foi possível aprofundar algumas discussões sobre a relação entre o tema com o eugenismo, o supremacismo racial e a guerra química. Em 2024 Nadaby Machado (Cedipa/Fiocruz) concluiu a sua graduação em Ciências Ambientais na UNIRIO com a defesa do TCC “Racismo Ambiental e os Desafios ao Acesso ao Saneamento Básico: um estudo sobre a Favela do Jacarezinho – RJ”, trabalho consistente sobre uma problemática ainda pouco explorada nos debates sobre racismo ambiental, que diz respeito à relação entre condições inadequadas de saneamento e enchentes numa das maiores favelas da América do Sul, que tive a satisfação de orientar.
A Universidade Federal Fluminense lançou em 2023 a cartilha “Racismo Institucional e Racismo Ambiental no Brasil” que objetiva “promover a reflexão e o debate sobre os fundamentos dos desastres ambientais e suas conexões com a exploração do capital a partir da extração dos recursos naturais”, além de discutir a forma como ele interfere no espaço e no meio ambiente e afeta a população mais vulnerável aos desastres ambientais. A Faculdade de Serviço Social da UERJ, em parceria com a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, o Núcleo Rio de Janeiro do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental e a Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde do Rio de Janeiro promoveu em 2024 na cidade do Rio de Janeiro o Curso de Extensão Universitária “Mudanças Climáticas e o Direito à Água na Metrópole do Rio de Janeiro”, que discutiu o tema das mudanças climáticas e do racismo ambiental. Em 2024 a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA divulgava a publicação “Dossier racismo ambiental, onde está nkisi?, publicado em 2021 na Revista Maloca do Grupo de Estudos Multidisciplinares em Urbanismos e Arquiteturas do Sul, da UNILA/Brasil.
Como podemos ver há várias iniciativas em andamento em diferentes instituições que têm como tema a questão do racismo ambiental. Entretanto, não parece lícito supor que essas iniciativas estejam produzindo dados que possam ser disponibilizados para consultas, influenciar gestores responsáveis pela formulação de políticas públicas e favorecer a comunicação de risco. Talvez esse seja o maior desafio a ser superado neste momento.
8. No contexto de justiça climática, quais mudanças estruturais na governança e na comunicação de crise seriam necessárias para reduzir o impacto do racismo ambiental?
É muito difícil falar sobre mudanças estruturais na governança de crise sem considerar que a governança de um modo geral vem se tornando, cada vez mais, atributo restrito a pequenos círculos de poder. Se considerarmos a escala global constataremos que a possibilidade de essas mudanças ocorrerem depende da assinatura de acordos entre diversos países, o que tem se mostrado inviável nas últimas Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) e tende a se tornar mais difícil de acontecer em função da situação criada com a recente política tarifária norte-americana. Com relação à conjuntura brasileira são observados limites de várias ordens relacionados à atuação na governança de crises climáticas e ambientais, como os que decorrem da organização federalista do país, na qual cada governante estadual possui autonomia e detém poderes sobre espaços em que essas crises se dão. Ou, ainda, aqueles impostos no interior do Congresso Nacional pelos interesses de corporações extrativistas, minerárias, petroleiras, industriais etc. No caso brasileiro as mudanças na governança poderiam passar pela criação de comitês gestores que envolvessem universidades, sindicatos, organizações populares, representações de povos originários e de quilombolas, enfim, setores da sociedade que pudessem, com autonomia e disponibilidade de recursos, contribuir para a construção de soluções para as crises climáticas e ambientais. Mas, sabemos o quanto essa hipótese tem de utopia.
Além disso, mudanças estruturais dependem de transformações mais profundas na sociedade. A história mostra que mudanças estruturais se relacionam a processos revolucionários. China, Rússia, Cuba, Vietnã, p. ex., tiveram em algum momento das suas histórias as estruturas econômico-social e cultural das suas sociedades transformadas por mudanças radicais. No Brasil, no entanto, não há sinais que indiquem possibilidade de mudança estrutural na governança de crise de forma desvinculada de uma transformação no sistema econômico que ordena essa mesma governança. Noutras palavras, não há possibilidade de mudanças estruturais na governança de crises sem a superação do capitalismo e da gestão global corporativa, visto que as crises climáticas são produtos do desenvolvimento histórico desse sistema e dessa “nova” governança. E, num momento em que esse modo de produção provoca intensificação de outras crises – econômico-financeira, política e humanitária – a tendência é, contrariamente à de busca de soluções para elas, a de torná-las ingovernáveis. A forma usual de governança que o capitalismo adota em contextos de crises se traduz na ascensão de regimes autoritários que têm como referência o nazi fascismo. O que tem sido colocado como projetos de governança em expansão no mundo, portanto, não deve ser considerado como simples fenômenos aleatórios atribuídos a figuras extravagantes como Trump e Milei, entre outras menos dissimuladas como Nayibe Bukele ou Viktor Orbán. São modelos da gestão capitalista num contexto de crises necessárias ao aprofundamento da concentração de riquezas que, em contrapartida, ampliam a destruição ambiental e o cerceamento à vida. Tal processo não pode prescindir de regimes autoritários e violentos, dispostos a levar a termo de variadas maneiras a expropriação de territórios, promoção de extermínio de seres humanos e de outros seres.
Na comunicação sobre as crises climáticas, sim, há possibilidade de mudanças, ainda que não estruturais. Pois, essas dependerão da desarticulação do controle das big techs sobre os fluxos da comunicação, da manipulação de algoritmos, dos sistemas e bases de dados que asseguram o fluxo de informações e de sentidos no mundo. As mudanças possíveis – necessárias e urgentes! – passam por caminhos apontados anteriormente e dizem respeito à capacidade de se promover o diálogo com aqueles/as que vivem e enfrentam os desafios impostos pelas crises climáticas no nível local. Passam, sobretudo, pelo aprimoramento da capacidade de escuta, da sensibilidade em considerar os/as diferentes iguais na busca de soluções que, afinal de contas, serão benéficas para todos/as, independentemente, da cor da sua pele, da sua formação acadêmica ou das suas crenças. Por outro lado, o uso da plataforma Gov.br para a ampliação do fluxo de informações sobre as crises climáticas pode desempenhar um importante papel como alternativa à atuação das big techs, com a democratização de dados públicos sobre as crises climáticas e ambientais, assim como com a manutenção de redes sociais abertas e descentralizadas.
9. O combate ao racismo ambiental pode ser um caminho para mitigar os impactos da crise climática? Como narrativas e estratégias comunicacionais podem contribuir para essa transformação?
Um combate pressupõe a existência de inimigos. O combate ao racismo ambiental teria quem como inimigos?
Essa pergunta ajuda a problematizar determinadas narrativas e as estratégias comunicacionais relacionadas a elas. Uma narrativa construída com argumentos que remetem à guerra ou ao militarismo não parece apropriada às estratégias de comunicação que visam contribuir para a superação de crises. No campo da saúde, p. ex., é recorrente o uso de expressões que remetem à guerra na caracterização de algumas das suas estratégias: “Campanha nacional de combate à malária”, “combate ao Aedes aegypti”, “dia D contra a dengue” etc. Como se sempre houvesse um inimigo a ser derrotado quando, na verdade, tanto os mosquitos quanto as arboviroses que transmitem são parte de um todo no qual estamos inseridos e sobre o qual temos responsabilidades. Esse tipo de narrativa costuma fomentar ações pragmáticas que, em busca de abater os inimigos, têm abusado do uso de inseticidas que se demonstraram ineficazes no controle desses vetores e perigosos para o meio ambiente e para a saúde humana.
Racismo ambiental precisa ser amplamente discutido e compreendido nas suas diferentes manifestações para ser, então, questionado de forma sistemática e consistente. Esse questionamento pode ajudar a reorientar resistências antirracistas diversas em torno das emergências climáticas como uma temática fundamental para os grupos sociais mais vulneráveis e favorecer a consolidação de movimentos políticos unificados. Tais resistências, por sua vez, podem desenvolver e fortalecer a sua capacidade de organizar meios que contribuam para mitigar os impactos das crises climáticas. Essa organização deve ter como referência os espaços nos quais estão estabelecidos os movimentos de resistência antirracista e ecologista. Talvez assim seja possível fazer o enfrentamento ao racismo ambiental com ações articuladas contra o imobilismo de governos com relação à regularização fundiária de terras quilombolas e de povos originários, contra a exploração desses territórios em benefícios privados, na construção de planos de proteção ambiental e de mitigação de impactos das crises ambientais, por exemplo.
Essas talvez sejam algumas vias que possibilitem o convívio menos traumático com as mudanças climáticas, enquanto vão sendo criadas as adaptações necessárias para se desenvolver uma maior resiliência. São conhecidas algumas medidas que apontam para o caminho da adaptação aos novos tempos críticos. Entre elas a comunicação se destaca como uma das mais urgentes nas emergências climáticas, sobre as quais muitas pessoas desconhecem as suas origens e riscos reais. Nesse cenário, os inimigos a serem combatidos são a desinformação, a manipulação algorítmica, a guerra cognitiva e a “imbecilização em massa”, conforme Miguel Nicolelis. Para isso é muito importante a definição de estratégias que contemplem “metodologias avançadas de letramento midiático e digital”, como indica o jornalista e diretor-executivo da Rede Conecta de Inteligência Artificial e Educação Científica e Midiática (UFF/CNPq) Reynaldo José Aragon Gonçalves, que tenham inserção nas diferentes etapas da formação escolar-educacional e ajudem a fortalecer as diferentes formas de resistência ao racismo ambiental e às crises climáticas.
* Paulo Roberto de Abreu Bruno é Tecnologista em Saúde Pública na Fiocruz desde 2006, lotado no Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental (DSSA) da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), onde desenvolve pesquisas e atua no ensino, abordando temas relacionados à saúde ambiental e a vigilância ambiental junto a estudantes de pós-graduação, profissionais do SUS e moradores de comunidades. Participou do Comitê Nacional de Educação Popular e Saúde/SEGEP/MS como representante da Fiocruz (2011), da coordenação da Especialização em Gestão e Tecnologias do Saneamento (2013-2019) e da disciplina Expressões do Racismo e Saúde (2019-2024) na ENSP. Atualmente faz parte da coordenação do Núcleo Operacional Sentinela de Monitoramento de Vetores (Nosmove/IOC). Graduado em História e Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense, obteve o título de doutor em Ciências pelo Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz.