Há algumas semanas recebemos exemplares do livro da Marília Gehrke, que concluiu seu doutorado pela UFRGS em 2021. O livro “Os elementos de transparência no Jornalismo de Dados” é resultado da tese da autora e uma contribuição relevante para as pesquisas em jornalismo – e não só em jornalismo de dados!

“Como valor para o jornalismo e com vistas à abertura de procedimentos de reportagem e decisões editoriais que se manifestam na esfera do produto, a transparência é um fundamento que faz sentido principalmente em iniciativas que têm a ciência como inspiração metodológica, caso do Jornalismo Guiado por Dados, que se propõe a gerar um tipo de conhecimento explicativo e duradouro […]. Mesmo que tomem como base um acontecimento factual, as notícias vinculadas ao modo de produção do JGD são diferentes no que diz respeito ao conteúdo jornalístico efêmero corriqueiramente produzido para o jornalismo digital. Pressupõem o cumprimento de um método que parte de um problema e culmina com a geração de um produto cujos resultados preconizam a abertura e o compartilhamento de saberes com a divulgação da metodologia ou do código-fonte adotado, mantendo o modo de operação colaborativo […]. A transparência também integra práticas como fact-checking, sendo um valor normativo e parte da metodologia de apuração”. (Gehrke, 2022, p 175).

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No livro (e na pesquisa) a Marília propõe o que chamou de “Protocolo de Transparência em Jornalismo Guiado por Dados”, um conjunto de 15 elementos, distribuídos nos níveis organizacional e operacional da prática jornalística e que podem colaborar para a “reprodutibilidade” da transparência como prática, em particular em iniciativas jornalísticas orientadas por dados.

A leitura foi particularmente interessante porque acompanhamos o trabalho da Marília, mesmo de longe, enquanto estava em desenvolvimento na UFRGS. Isso aconteceu porque por aqui também estávamos com essas questões em discussão. A Bibiana Pinheiro defendeu a dissertação em meados de 2022 e o seu tema de pesquisa era exatamente a transparência do jornalismo de dados. Foi uma pesquisa muito interessante, que nos permitiu mapear os debates centrais sobre transparência e jornalismo ao redor do mundo e conversar com jornalistas de dados brasileiros, tentando entender como os jornalistas de dados compreendiam a transparência nos seus processos de produção.

A pesquisa “As compreensões dos jornalistas de dados sobre transparência nos processos produtivos” foi elaborada a partir de entrevistas (semi-estruturadas e em profundidade) com jornalistas de dados brasileiros. Os resultados acompanham muitos dos debates elaborados pela Marília no livro, visto que também reconhecemos, a partir das experiências dos jornalistas de dados, que a transparência pode ser percebida como “[…] uma prática que se manifesta através da descrição dos processos, explicação e justificação das decisões durante a construção da notícia” (PINHEIRO, 2022, p. 111), e também como um valor, fortemente associado a certo nível estratégico, que teria como objetivo “garantir que o leitor perceba um jornalismo responsável e credível através da implementação de mecanismos que mostrem sobre o jornalismo e sua produção” (PINHEIRO, 2022, p. 112).

Mas para além destes sentidos, outras duas dimensões surgiram na análise das entrevistas, e que são interessantes como forma de problematização da transparência no cotidiano da produção de notícias: a transparência é percebida como “dever-ser” da profissão, mas não é uma prática institucionalizada, nem mesmo no jornalismo de dados. Ela depende da compreensão individual de cada jornalista de dados, e pode se alterar significativamente de uma organização jornalística para outra. Também é impactada pelos vínculos de trabalho estabelecidos com o jornalista – freelancers tendem a ter mais dificuldade de estabelecer uma rotina de transparência, visto que atuam para empresas que possuem linhas de conduta muito distintas entre si. Pelos dados levantados na pesquisa, a Bibiana considera que a transparência é “uma concepção que circula no campo do jornalismo de dados e reverbera em uma conduta transparente através de princípios próprios do campo” (PINHEIRO, 2022, p. 113), fortemente vinculada a uma percepção dos jornalistas, que “[…] defendem que ao trabalhar com dados públicos, a transparência deve ser acionada como um princípio – trabalhar para o interesse público, nesse caso, significa disponibilizar seu trabalho com dados públicos ao leitor” (PINHEIRO, 2021, p. 115). Ainda assim, até este momento, na prática, “[…] cada organização e até mesmo cada indivíduo aplica parâmetros próprios para operar a transparência” (PINHEIRO, 2022, p. 112).

E isso nos leva para a última categoria, em que as análises das entrevistas sugerem que a transparência é percebida pelos jornalistas de dados como um diferencial (seu ou da organização) em relação a práticas jornalísticas que não prezam pela transparência: “[…] os entrevistados entendem que o material jornalístico [transparente] se diferencia dos demais pela possibilidade de verificação do trabalho, gerando clareza ao conteúdo”. Mais do que isso, a transparência envolveria atitudes que, na perspectiva dos entrevistados, o jornalismo, de forma mais ampla, tem dificuldades de praticar. O jornalismo de dados aposta nessas estratégias para tentar gerar no leitor efeitos de credibilidade. As falas dos entrevistados nos permitem perceber que a transparência é um valor conflituoso para parcela relevante do jornalismo – fora do jornalismo de dados. “Questões da cultura organizacional (comercial) e profissional (vaidade) do jornalismo são apontadas nas sequências textuais como aspectos que fazem parte da tradição do jornalismo e limitam a prática da transparência” (PINHEIRO, 2022, p. 116).

O trabalho da Marília Gehrke também circula por essas questões mais “espinhosas”. E talvez ai esteja uma das grandes potências do protocolo que ela oferece aos profissionais do jornalismo: “[…] os elementos de transparência dificilmente serão acatados em sua totalidade; isso não inviabiliza, porém, que sirvam como norte para boas práticas” (Gehrke, 2022, p. 178).

No prefácio do livro, a Marcia Benetti, que foi orientadora do trabalho, sinaliza também neste sentido: “A transparência é um conceito espinhoso. Como analista do discurso, sei que o discurso é sempre opaco e que a transparência está no campo dos efeitos – o efeito de transparência, o efeito de literalidade, o efeito de verdade. Percebo, no entanto, que a recusa completa ou a priori do conceito impede a compreensão do jornalismo contemporâneo. Quando dizemos que a transparência no jornalismo ‘não existe’ ou ‘não é possível’, estamos dizendo que não devemos gastar nosso tempo pensando sobre ela e buscando construí-la. No entanto, nunca o jornalismo precisou tanto desse esforço” (Benetti, 2022, p 15).

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Para saber mais:

Os elementos de transparência no Jornalismo de Dados
Marília Gehrke (University of Southern Denmark)
Série Jornalismo a rigor | Editora Insular

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Referências citadas no texto:

Benetti, M. (2022). Prefácio. In M. Gehrke. Os elementos de transparência no Jornalismo de Dados. Editora Insular.

Gehrke, M. (2022). Os elementos de transparência no Jornalismo de Dados. Editora Insular.

Pinheiro, B. (2022). As compreensões dos jornalistas de dados sobre transparência nos processos produtivos. [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Maria]. Repositório da UFSM.