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A terceira (sexual)idade

Expressões do cotidiano e da sexualidade de pessoas idosas institucionalizadas são relatadas em diários de campo



A sexualidade floresce com a adolescência e anda lado a lado com a vida adulta, mas há quem diga que encontra seu limite quando alcança o envelhecimento. Intimidade, carícias, beijos, afeto, contato pele a pele… Essas são expressões da sexualidade que não estão, necessariamente, ligadas à reprodução, e nesse contexto surgem algumas perguntas: até que ponto a sexualidade é aceita socialmente sem o objetivo procriativo? A felicidade pelo prazer sexual pode ser almejada pelas pessoas idosas?

Com um olhar subjetivo acerca do aumento da expectativa de vida da população brasileira e das mudanças nas configurações familiares modernas, a pesquisadora Tatiane Rocha Razeira se insere no contexto de uma casa para idosos a fim de entender como idosos e idosas institucionalizadas vivenciam o cotidiano e suas sexualidades. Um olhar intimista é direcionado às individualidades existentes no âmbito de uma das instituições (asilo, abrigo, centro de convivência para idosos) existentes em Santa Maria, as quais, segundo ela, são estigmatizadas socialmente e vistas como forma de exclusão e isolamento de idosos à espera da morte.

Duas vezes por semana, de março de 2015 a abril de 2016, a pós-graduanda em Gerontologia pela UFSM realizava atividades que envolviam os idosos por cerca de 45 minutos e aproveitava o tempo no local para conversar com os moradores da casa, com a equipe de enfermagem e com as cuidadoras. O resultado são 164 páginas de diários de campo, que dão vida e são inseridos, em parte, na dissertação Cenas do cotidiano e da sexualidade de pessoas idosas institucionalizadas, apresentada em 2016.

Na dissertação, as fantasias que envolvem o universo da sexualidade são realçadas através do Kama Sutra, obra literária escrita na Índia há aproximadamente 2 mil anos por Mallanaga Vatsyayana. Tatiane nomeou as pessoas descritas no trabalho a partir da proximidade com as interações afetivas e amorosas expressas nos personagens da literatura. Como resultado, a pesquisa mostrou que o grande desafio da temática é fazer com que as pessoas idosas consigam manifestar suas sexualidades sem se sentirem culpadas; e que a institucionalização, atualmente, mostra-se como uma alternativa possível, e até mesmo necessária, às configurações familiares contemporâneas. Essas transformações no corpo e na vida de pessoas em processo de envelhecimento estão disponíveis nos relatos selecionados a seguir.

 

DESCRIÇÃO DO ESPAÇO

Na sala de televisão ficam muitas pessoas, principalmente as que possuem pouca mobilidade, as quais repousam sonolentamente em cadeiras retráteis, os olhos ficam semiabertos, assim como os lábios, por onde timidamente escorre a saliva que repousa na boca espaçosa e ociosa. Algumas delas gemem, outras balbuciam algumas palavras incompreensíveis; umas assistem à televisão, enquanto outras observam seu entorno, como se estivessem procurando alguém ou alguma coisa. Talvez em busca de si mesmas, de quem foram, ou em quem se transformaram, enfim, de sua ipseidade.

CASAL NA CASA

Quando cheguei à casa, o casal Satakarni e Malayevati estava na sala, começaram a namorar ali na casa; convidei-os para a roda de conversa, mas agradeceram e foram subindo as escadas para o quarto. Ela segurou meu braço e, em tom moderado de voz, disse que não era nada comigo, mas é que o marido dela é muito ciumento e não gosta que ela fique se mostrando; disse que obedecia para não dar briga. Antes do namoro, realizavam as atividades físicas; ela gostava e participava ativamente, ele também participava. Satakarni é casado, presenciei a visita da esposa dele na casa no dia que ele apresentou a namorada para a esposa. A esposa apoiou a relação, disse que ficava feliz por ele ter uma companhia, já que entre eles agora só existia amizade.

A FAMÍLIA E O ASILO

Conversei com Vita e sua esposa, que tinha ido visitá-lo. Ela é uma senhora muito elegante, cabelos castanhos curtos escovados, maquiagem leve e perfume suave; é professora do estado aposentada. Ela estava sentada junto de Vita no sofá de dois lugares, seu braço direito repousava nos ombros dele, de vez em quando ela fazia um cafuné no cabelo. Ela disse que tinha vindo namorar, que sente muita saudade dele, que sofreu e sofre muito com a decisão de deixar ele ali na casa; com os olhos marejados, confessou que não foi fácil decidir; conversou com familiares e filhos, e no início sentia vergonha de dizer que ele estava no asilo. O sofrimento é imenso, mesmo sabendo que não tinha mais condições de cuidar e suprir todas as necessidades dele. […] ‘mas a força a gente tira de Deus, sem ele não ia conseguir enfrentar tudo isso’.

AUTOIMAGEM

[…] estava lá, sentada na cama, olhando em direção à janela, Maharashtra deslizava a escova de plástico desgastada pelos curtos e poucos cabelos castanhos iluminados por ralos fios brancos. Em tom de desabafo, diz que não se olha mais no espelho, só no do banheiro que é pequeno e dá pra ver só o rosto, e faz tempo que não vê seu corpo inteiro refletido no espelho. ‘Pra que olhar? Eu me sinto como um pêssego murcho, por fora! Mas por dentro eu me sinto viva e penso até naquilo, eu tô viva! É isso que importa, não é?’

IMPOTÊNCIA

‘[…] mas ele não funciona mais! Eu pego, puxo, puxo, mas dá em nada, daí a gente fica na vontade’. O relato dela foi reafirmado por uma das funcionárias, que confirmou que ela manipula o pênis dele no banho que chega a cortar, ele reclama e ela vai pedir pomada pra passar. Segundo ela: ‘minha filha diz que ele tá pior que eu, o que eu quero com ele?’ A família não é favorável à relação, pois ele é casado e já tem 84 anos, mas ela não se importa com a opinião da família, disse que continuaria com o namoro.

SEXUALIDADE

A pesquisadora pergunta aos idosos Dandakya, Maharashtra, Bali, Dravida e Aparatika o que eles(as) entendiam por sexualidade:

[…] após pensarem por alguns segundos, Dandakya respondeu para mim: ‘é tá junto com alguém, em relação né, dormindo junto, com intimidade’. Para Aparatika, ‘é sexo e amor, entre um homem e uma mulher, daí vêm os filhos, depois os netos, é ter uma família’. E Dravida completou: ‘quando a gente fica velha, nem pensa mais nisso, é como se a gente deixasse de ser mulher’.

FUNCIONÁRIOS E SEXUALIDADE DOS IDOSOS

O técnico em enfermagem que trabalha na casa relatou que algumas idosas querem que ele dê o banho nelas, e que, durante o banho, fazem insinuações verbais e gestuais, pedem para ele passar o sabonete várias vezes pelo corpo e em partes específicas (aproximou a mão da região genital e do peito). Ele disse que leva tudo com bom humor, que hoje acha isso normal, mas no início ficava um pouco constrangido. Perguntei se na formação dele em algum momento tinham sido desenvolvidas as temáticas, ele respondeu que foi trabalhado algo relacionado com doenças.

LIMITAÇÕES DO CORPO

[…] Vidushaka estava no quarto, estendendo a cama vagarosamente e com certa dificuldade. Relatou que sentia muita dor na coluna, nos joelhos e nas pernas, cada dia uma dor. Mas, segundo ele, ‘antes tinha um corpo, jogava bocha, caminhava pra lá e pra cá, saia lá de casa e ia na Acampamento a pé, agora tô virado em dor, uma carcaça’.

MASTURBAÇÃO

Em conversa com uma das técnicas em enfermagem, perguntei se ela já tinha presenciado algum tipo de expressão da sexualidade por parte de algum(a) idoso(a). Ela ressaltou que existe um cuidado relativo ao que poderia ser algum tipo de abuso, quando percebem que a pessoa é mais saidinha com as outras, ficam de olho. ‘À noite, na hora de dormir, os quartos ficam com as portas abertas, é que muitos tomam medicamentos para dormir, então fica tudo tranquilo, mas tem muita coisa que a gente finge que não viu e não ouviu e outras a gente acostuma. Na casa, tinha um senhor que se masturbava a qualquer hora ou lugar, então a gente o levava para o quarto e deixava terminar. Algumas idosas tinham medo dele, outras pediam para tirar ele da sala, mas a gente entende a situação dele, tá com vontade. Mas, à noite, eu pedia para as gurias do turno ficarem de olho nele’.

BOM PARTIDO

‘Ele não é como os velhos daqui, ele nem é velho, caminha, vai aonde quer, volta pra casa dele e não depende de ninguém para comer, ir no banheiro… ele seria um bom companheiro, porque eu não quero um velho de fralda, que não faz mais nada [fez um gesto com as mãos em forma de concha para baixo e para cima], nem que seja para esquentar meus pés, beijar, fazer carinho e conversar. Tu não acha ele um homem bonito? Bem arrumado e não tem cheiro de urina, eu tô certa ou não de querer uma pessoa assim?’

FILHOS, DE QUE ADIANTA?

‘Sempre fui chineiro, não tinha uma mulher, mas várias, fui noivo, mas ela não aguentou, por isso não casei, mas agora queria ter uma companheira, pra esquentar os pezinhos de noite [risos]. Eu acho linda uma morena que vem aqui, é filha de uma das idosas acamadas, pra ela eu dava casa, comida e roupa lavada [risos], até me aquietava, podia ter filhos e eles me cuidarem’. Rapidamente Maharashtra exclamou: Eles não cuidam da gente, olha, eu tô aqui e tenho três filhos, o que adianta?’

DOR DA MORTE

Estávamos sentados na varanda, quando ela, a irmã dele, desceu do quarto, abraçou e agradeceu a enfermeira, despediu-se das pessoas idosas que estavam na sala. Maharashtra perguntou como ele estava, ela respondeu sem graça que ele estava bem e tratou de sair da sala. Foi caminhando pela rampa, carregando no braço esquerdo uma sacola de papel com alguns pertences, segundo a enfermeira era o radinho de pilha, o relógio, o óculos e a Bíblia; as roupas e os calçados deixou para doação. Na outra mão, segurava o ventilador e, no coração, acredito que o que carregava era tristeza e a certeza de que uma vida toda coube em uma sacola.

Reportagem: Claudine Friedrich

Diagramação e Ilustração: Giana Bonilla e Juliana Krupahtz

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