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Aqui também é lugar de cuidado

Pesquisadora da UFSM realiza imersão na rotina de catadores em galpões de reciclagem em Santa Maria para pesquisar sobre condições de trabalho e vulnerabilidade



Pesquisadora realiza imersão na rotina de catadores em galpões de reciclagem para pesquisar sobre condições de trabalho e vulnerabilidade

Os catadores são profissionais que recolhem, transportam e encaminham materiais para reciclagem. Esta profissão é reconhecida pelo Ministério do Trabalho desde 2002, mas as condições precárias e cheias de risco são temas de discussão para a área da saúde. Em 2018, a professora Alexa Pupiara Flores Coelho, do Departamento de Ciências da Saúde, do campus de Palmeira das Missões, defendeu a tese Autocuidado de catadores de material reciclável: estudo convergente-assistencial. Em um diário de campo, a pesquisadora registrou relatos de 19 catadores de materiais recicláveis das associações Esmeralda e Diamante*, entre agosto e setembro de 2017. O estudo foi desenvolvido em parceria com o grupo de pesquisa Trabalho, Saúde, Educação e Enfermagem, da UFSM. A pesquisadora se inseriu na rotina dos catadores a partir da observação sistemática participante, que consiste em vivenciar a experiência como parte do grupo. Além disso, os relatos do estudo foram obtidos a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas entre setembro de outubro de 2017 e em oficinas sobre autocuidado.

O caminho até a reciclagem 

“Eu estudei até a segunda série. Naquela época, não tinha muito recurso. Meus pais moravam pra fora e nem se importavam. O colégio era longe, a gente só ia quando podia. Daí, não tinha como acompanhar a turma.” Luana 

“Eu era noiva. Trabalhava de babá. Depois, me disseram que não podiam me pagar mais. Como eu conhecia a [coordenadora da Esmeralda], eu disse “vê se arruma uma vaga para mim”. Porque eu tinha que fazer alguma coisa. O pai da criança me deixou, me faltava fralda e leite.” Fia 

“Eu criei os meus filhos puxando carrocinha. Até eles ficarem grandes. Meu ex-marido não tinha trabalho, aí ele trabalhava na reciclagem. A guria tinha dois anos.” Marlene 

“Eu só ficava em casa, levava as crianças para o colégio, limpava as coisas e fazia comida. E precisava de um dinheirinho. E daí, eu vim pra cá trabalhar com as gurias.” Eva

 

Dupla jornada 

Verifico nos diálogos dos trabalhadores aspectos relacionados ao trabalho feminino. Muitas referem sobrecarga com o trabalho doméstico e como isso afeta seu bem-estar. Muitas catadoras são responsáveis pela criação e sustento dos netos, de filhas gestantes, sendo notória a ausência da figura masculina na realidade da maior parte destas mulheres. 

 

Vulnerabilidade 

Grande parte destas pessoas possui questões familiares complexas: filhos dependentes de drogas ou envolvidos com o tráfico; filhos em privação de liberdade; gravidez indesejada; violência doméstica. Observo que a vulnerabilidade é um campo extenso, que não se restringe ao trabalho. 

 

Trabalho exaustivo 

Além de demandar posição em pé durante o dia inteiro, manuseio e mobilização de peso, realização de esforço físico e movimentos repetitivos, o trabalho, muitas vezes, é monótono. 

 

Risco constante 

O ambiente é repleto de riscos e os ‘quase-acidentes’ são frequentes. No entanto, não os pude associar a algum déficit de autocuidado. Observo que existem tantos riscos intrínsecos ao ambiente e à natureza do trabalho que é possível que os trabalhadores tenham pouca governabilidade para evitá-los. 

 

Dificuldades em estar no galpão 

O clima estava abafado e a temperatura muito elevada. Todos sofriam muito com a temperatura dentro do galpão, inclusive eu. A sensação era de esgotamento e sufocamento. O corpo doía e, seguidamente, eu precisava ir ao refeitório para me sentar e beber água. Em determinado momento, uma trabalhadora disse que não estava se sentindo bem. Levei-a ao refeitório, fiz com que ela se sentasse confortavelmente e dei-lhe água fresca. 

 

Conquista de bens materiais 

“Eu tinha doze anos. Era só eu e a mãe. Daí, eu comecei a trabalhar e estudar. Ganhava pouquinho, às vezes tirava R$ 12 numa semana. E conquistei bastante coisa dentro da reciclagem. Minhas coisas, meu carro, minha moto. Viagem. Foi bom, não posso me queixar.” (Johnny Cash)

“Às vezes eu queria comer alguma coisa, comprar alguma coisa. Tudo que eu quero agora, eu consigo trabalhando. Eu tenho as coisas, não dependo do pai, da mãe.” (Fernanda) 

 

Empoderamento e autonomia 

“Quando eu cheguei aqui, eu estava bem doente dos nervos, e eu mudei bastante, depois que eu comecei a trabalhar. Eu comecei a me sentir melhor, comecei a me sentir útil.” (Marlene) 

“Não sabia que eu tinha condição de trabalhar numa associação. Eu era dona de casa, mãe. Depois que veio a crise, eu tive que trabalhar fora. Daí eu fui ver, “pô, eu posso estudar”. Fui fazer EJA, primeiro grau, segundo grau. Então é uma divisão bem clara. Antes, uma água parada. Depois, uma água turbulenta, agitada.” (Simoniti) 

 

Perigo, lixo contaminado! 

Tenho observado, dentre os materiais recicláveis, objetos como fitas utilizadas na verificação de glicemia capilar contaminadas com sangue; seringas de administração de insulina; perfurocortantes em geral; papel higiênico contaminado; lixo orgânico de todo o tipo; animais em decomposição. Além disso, o material reciclável contém, frequentemente, urina e fezes de cães, gatos e ratos, os quais circulam livremente no galpão. 

“Todo mundo fala material seletivo, mas vem do lixo. A gente trabalha com lixo. O lixo dos outros.” (Madalena)

“Eles não têm noção de que quem trabalha aqui é humano. Nós cansamos de pegar agulha com seringa, papel higiênico, gato morto. Fiz exame e o doutor acha que eu estou com hepatite. E onde que eu peguei?” (Marlene) 

 

Remédio pra que te quero?! 

Ao longo da observação, tenho recebido, diariamente, um conjunto de queixas de desvio de saúde dos trabalhadores. No entanto, na maior parte das vezes, a dor é a queixa recorrente. Sobretudo, dores nos membros inferiores e na coluna, para as quais eles se automedicam, geralmente, com medicamentos orais à base de paracetamol.

“Têm dias que eu me levanto, assim… Sabe aquela música que as crianças cantavam, fazendo rodinha, do boneco de lata, desamassa aqui, desamassa ali… Eu fico pensando naquela música. Eu levanto assim, com dor.” (Joana, NG) 

 

Além de pesquisadora, enfermeira 

Percebo que os trabalhadores me reconhecem muito mais como enfermeira do que como pesquisadora e, seguidamente, recorrem a mim com dúvidas e questionamentos sobre saúde, doenças e ações de autocuidado. Seguidamente, debatem sobre determinado assunto e me chamam para fornecer informações profissionais. Porém, o mais comum é me procurarem para mostrar hemogramas, resultados de exames ou relatar alterações clínicas, pedindo minha opinião. Alterações no ciclo menstrual, doenças de familiares e cuidados com diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica e doenças cardiovasculares são os principais motivos pela procura por mim. 

 

Cuidado de si 

Uma trabalhadora que atuava na prensa referiu que sente ressecamento e ardência na mucosa das vias aéreas superiores e perguntou para mim qual poderia ser a razão. Perguntei se já houve sangramento nasal e ela referiu que sim e em grande quantidade. Orientei que poderia ser em decorrência da aspiração de partículas de papelão e do pó de cimento do chão. Ela referiu que costuma inalar vapores de folhas de eucalipto, e que isso costuma aliviar o desconforto. 

 

Bem alimentados 

Chamou-me a atenção que os trabalhadores primam por uma boa refeição ao meio-dia. No almoço, há quase sempre arroz, macarrão, feijão, carne e algum tipo de legume cozido ou salada. Eu sempre almoço com os trabalhadores e a comida é muito saborosa.

 

Necessidade de lazer 

Durante uma reunião entre as associações, foi debatida a possibilidade de trabalhar aos sábados, visando ao aumento da produtividade. O grupo foi unânime em manter os sábados de folga, visando ao descanso e ao tempo livre com a família. Uma das trabalhadoras argumentou que, para ela, saúde e bem-estar é ter tempo para cuidar de si, da casa e de poder conviver com amigos e família. 

“Quando está muito puxado, eu faço questão de pescar. Eu gosto, o meu guri sabe disso. Ele sempre diz: mãe, tu já está pirando, vamos pescar, daí eu digo vamos.” (Simoniti) 

 

Espiritualidade 

No intervalo do meio-dia, eu estava conversando com um grupo de trabalhadoras em relação à espiritualidade. Uma delas referiu como a espiritualidade havia cumprido o papel de amenizar sentimentos e sensações negativas, como o estresse, a ansiedade e o sofrimento. Referiu que seu investimento pessoal nisso havia começado pela leitura de um livro encontrado por acaso no material reciclável, intitulado “Violetas na Janela”. 

“Eu tenho um hábito de chegar em casa, e eu tenho cinco minutos que duram meia hora. Que eu sento e eu entro na ‘caixinha do nada’. Eu não penso em nada. […] é o tempo que eu levo para desligar, para relaxar.” (Simoniti)

CUIDADOS e AMOR PRÓPRIO 

“[…] a gente tem que amar a gente mesmo. Eu bebia, eu fazia mal pra mim […] Então, eu percebi que eu tinha que gostar mais de mim, e parei. […] Então, a gente tem que ter amor próprio. Se vê que alguma coisa está prejudicando, a gente tem que mudar. […]” (Joana) 

 

PERGUNTA 

Então, vocês concordam que o autocuidado é ir ao posto de saúde? Que é apenas assim que vocês podem cuidar de si mesmos? Haveria mais alguma coisa possível, além de ir ao posto de saúde? 

“É se cuidar. Fazer coisas que não te agridam, ou que vão te ferir, te magoar, te machucar.” Simoniti, NG 

“Prevenção.” Paloma, NG 

“Se avaliar. Ter um cuidado de como que está a tua saúde.” Sônia, NG 

“Eu acho que é se cuidar e cuidar dos outros. O trânsito é um bom exemplo. Tem que se cuidar e cuidar dos outros. Para não se machucar, e para a outra pessoa também não se machucar.” Johnny Cash, NG 

“Quando a gente está empurrando um fardo e vê que o colega não está dando conta de empurrar sozinho, ir lá e auxiliar. […] Eu acho que isso é autocuidado. Tu está te cuidando e cuidando dele também. […]” Simoniti, NG 

[…] enquanto a trabalhadora preparava o almoço, questionei o que ela pensava sobre o trabalho que eu havia feito com o grupo e, em especial, se havia surtido alguma mudança. Ela respondeu-me que algumas coisas haviam mudado. Disse que os trabalhadores estavam higienizando as mãos, conforme haviam praticado na oficina. A trabalhadora destacou que a maior mudança havia se dado no relacionamento entre os membros. Após os grupos de convergência, havia um clima de paz entre as associações. 

Em visita ao galpão, hoje, encontrei-o bastante organizado. Percebi que havia poucos recicláveis no chão, o que facilitava muito o trânsito. Descobri que há um trabalhador responsável pela organização, limpeza, carregamento dos recicláveis e auxílio aos demais colegas, conforme foi falado em ocasião do grupo de convergência. No entanto, percebi que alguns trabalhadores seguem atuando sem luvas.

*nomes fictícios

Reportagem: Mirella Joels

Diagramação, ilustração e lettering: Lidiane Castagna

*Matéria publicada na 11ª edição impressa da revista Arco. 

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