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Nem só de gente grande se faz uma universidade

Em meio ao vai e vem da UFSM, a pesquisadora Sueli Salva notou a presença de crianças que fizeram do espaço acadêmico também seu lar



Entre um passo e outro, o olhar corre o relógio. O andar se apressa na tentativa de chegar a tempo na aula que já se inicia. Não muito longe, é a tentativa de equilibrar os vários livros recém retirados da biblioteca que prende a atenção. No bosque, há aqueles para os quais o horário não parece importar; afinal, a grama e a sombra das árvores parecem ter um efeito quase sedativo depois do almoço. As diversas mãos carregando frutas anunciam: a sobremesa do dia no Restaurante Universitário foi laranja.

O trecho acima poderia descrever um dia qualquer no cotidiano universitário da UFSM. Houve um momento, no entanto, em que um fato rompeu a normalidade dessas cenas para a professora de Pedagogia Sueli Salva: a presença de crianças no campus. Não crianças que ali passavam a tarde em passeio com a escola, mas sim aquelas que fizeram da Casa do Estudante Universitário (CEU) moradia de quem recém inicia a vida. Foi a partir da percepção dessa presença que iniciou a pesquisa, que tem como objetivo conhecer as vivências cotidianas das crianças na Universidade, a união da cultura universitária com as experiências infantis, além dos arranjos familiares construídos pelos jovens e seus filhos.

Assim, desde 2010 são realizadas entrevistas com os pais e seus filhos e é feito o acompanhamento de sua rotina. A professora Sueli destaca algumas de suas percepções sobre como as mães reconfiguram o espaço em que vivem:

— O espaço da Universidade, não pensado para crianças, é reorganizado a partir da necessidade dos jovens. Então, a jovem mãe, algumas vezes com a ajuda do pai, cria maneiras de fazer acontecer. Aquele lugar que antes tinha uma prateleira com livros hoje tem uma prateleira com brinquedos também. Aquele espaço que antes tinha um beliche, agora tem um berço.

Em alguns casos por descuido, em outros para consolidar uma união com a qual a família discordava, ou ainda por considerar aquele o momento ideal para ter um filho, seja qual for o motivo que leva à gravidez, algumas semelhanças se apresentam. Uma das dificuldades iniciais é a presença do discurso moral que gira em torno da sexualidade – principalmente a feminina – e de uma gravidez que acontece em meio aos estudos e, em alguns casos, sem a existência de um relacionamento estável entre o pai e a mãe. Outra questão é a necessidade de uma reorganização no modo de vida, que precisa passar a considerar a presença de uma criança que exige dedicação e tempo. A bolsista da pesquisa e responsável pelas anotações do diário de campo, Keila de Oliveira, pontua essa como uma experiência que permite entender o processo de forma mais ampla:

— O contato com essas mães me ajuda a entender muita coisa também fora da Casa do Estudante desse processo de gravidez juvenil. Muitas vezes as pessoas tendem a ver essas meninas como imaturas ou irresponsáveis. Às vezes não, ao contrário, vai muito além dessa simplificação. Então isso me ajudou, como pedagoga, a ampliar o olhar sobre a questão, ao invés de ser reducionista.

No dia a dia, essas crianças passam a entender a Casa do Estudante como um lugar que também é delas. Enquanto elas crescem e aprendem, também ensinam com a sua presença e mostram que, afinal de contas, alguns padrões aceitos como corretos já deveriam ter ficado no passado.

Durante a pesquisa, foram várias as famílias acompanhadas. Os trechos a seguir trazem fragmentos da trajetória de Daiane e seu filho Pedro e de Mariana e seu filho Samuel. Através de suas histórias, eles nos mostram como a universidade não é lugar apenas de gente grande.

TRECHOS DO DIÁRIO

28 DE SETEMBRO DE 2010 

Nesta manhã fui até ao apartamento do menino Samuel para acompanhá-lo até a sua escola. Quando cheguei ao apartamento, Samuel estava deitado na cama. A mãe lhe deu a mamadeira e arrumou a mochila do filho. Mariana também relatou que o filho caiu da cama e teve que ir até o hospital fazer curativo de três pontos na cabeça. Nessa oportunidade, Samuel estava somente com o pai em casa e bateu a cabeça na janela. O menino queria iogurte que o pai havia trazido do mercado; o pai disse para ele esperar, mas Samuel foi impaciente e, quando levantou da cama, bateu a cabeça. Mariana terminou de arrumar o filho, colocou os calçados, ajudou a lavar os dentes e então saímos. No caminho, Samuel estava sempre pulando e correndo, além de estar juntando galhos e folhas secas que encontrava. Quando estávamos passando por um determinado muro, Samuel apontou para o mesmo e falou: Olha um peixinho! Realmente, a rachadura do muro fazia o desenho de um peixinho. A mãe comentou que faz muito tempo “que ele descobriu” essa imagem e que toda a vez que passa por ali aponta para o “peixinho”.

30 DE SETEMBRO DE 2010 

Mariana comentou comigo que no dia anterior Samuel a havia acompanhado durante o ensaio de uma peça teatral. A mãe falou que Samuel às vezes fica com um amigo seu enquanto ela ensaia, e que ela até convidou umas meninas para morar no mesmo apartamento seu para ajudar a cuidar do Samuel quando precisasse, e que propôs pagamento para essas estudantes. Porém, como as meninas nunca estão em casa à noite ou quando ela precisa, Mariana resolveu não insistir mais nisso.

A jovem falou que hoje é menos difícil de Samuel acompanhá-la nos ensaios, pois já está um pouco maior e fica com a recepcionista do CAL* enquanto a mãe ensaia, mas que quando era menor e ficava com outras pessoas que não conhecia direito, não pedia para ir ao banheiro e então fazia as necessidades nas calças. A mãe também comentou que certa vez o filho “invadiu” o palco enquanto ela estava ensaiando.

No caminho para a escola, Samuel parou numa placa, dessas de concreto em que constam fatos históricos da Universidade, e disse que era seu computador. Numa calçada que era formada por blocos de concreto alternados por grama, Samuel pisava somente nos blocos e dizia que a grama era jacaré que podia nos pegar. Já na escola, brinquei com Samuel de carrinho, ele me contou histórias de livros infantis da escola. […] Samuel queria a todo o momento que eu ficasse brincando com ele, e quando outra CRIANÇA me chamou de “Profe”, ele disse que meu nome não era “Profe”, era Keila.

*CAL: Centro de Artes e Letras

1º DE JUNHO DE 2011 

Daiane falou que Felipe, o pai de Pedro, que morava no apartamento em frente ao do filho, agora está residindo em São Paulo, fazendo doutorado. Ela disse que os primeiros dias do filho sem o pai foram difíceis, que o menino ia até o apartamento do pai e chamava por ele. Atualmente, segundo a mãe, ele está mais acostumado. Daiane disse que, em função de Felipe ter ido embora, ela optou por pagar uma van para levar e buscar Pedrinho, já que antes Felipe a ajudava com isso. Disse ainda que, quando Felipe foi embora, ele explicou ao filho que iria estudar e que para chegar aonde iria, precisava ir de avião. Segundo Daiane, agora sempre quando o filho ouve barulho de avião, ele fala “papai, papai”.

Relacionado a isso, Daiane disse que o padrinho de Pedro a tem ajudado bastante, que ele tem feito o papel de pai. A jovem disse que o padrinho do menino também conseguiu uma vaga numa aula de natação para Pedro, aula que é oferecida aos sábados de manhã no CEFD*.

6 DE JUNHO DE 2011 

Montamos o quebra-cabeça duas vezes. Samuel demonstrou gostar muito da brincadeira. Durante o tempo em que estávamos montando, o menino também demonstrou desenvoltura e rapidez na associação das peças, levando em consideração sua idade e o tamanho do jogo, que tinha 38 peças.

[…]

Depois disso, Samuel pediu à mãe para pegar o quebra-cabeça do Batman, que ele havia ganhado do pai. Enquanto estava montando o quebra-cabeça, Mariana comentou que ela e o pai de Samuel haviam acabado o relacionamento e que ele tinha tentado reatar, mas ela não quis. Acrescentou ainda que ele lhe propôs que eles casassem no próximo ano, quando ela já estaria se formando, mas ela disse que seria difícil, pois teria que morar na cidade do marido, que é uma cidade do interior, onde não há muito investimento na cultura, e isso dificulta o trabalho dela.

Relacionado a isso, Mariana contou que o pai de Samuel é professor de artes da rede pública de ensino, mas é também professor de ensino religioso e, paradoxalmente, é ateu. A partir disso, contou que muitas vezes teme pelo que o filho possa ter herdado do pai sobre questões de machismo e homofobia, por exemplo. Mariana disse que a família do pai de Samuel é bastante machista e não gosta da profissão dela e da forma como ela é, por não ser dona de casa etc.

14 DE SETEMBRO DE 2011 

Quando cheguei ao apartamento, Samuel veio abrir a porta, mas logo “se escondeu” de mim. Mariana disse que ele estava ansioso pela minha chegada, que queria tomar banho rápido e a todo o momento estava perguntando se eu ainda não havia chegado. Ela comentou que, quando falou para o filho que eu viria à noite, ele logo se lembrou de mim, que na última vez em que nos encontramos eu havia levado um quebra-cabeça do Mickey para ele montar.

Logo que eu cheguei ao apartamento, Samuel perguntou se eu não havia trazido o jogo do Mickey para montarmos. Eu disse que havia me esquecido de trazer um brinquedo, mas que poderíamos brincar com os dele. Diante disso, Samuel começou a tirar de sua caixa de brinquedos um a um para me mostrar o que faziam, quais eram os nomes e de quem ele havia ganhado o brinquedo.

Mariana também contou que nos últimos dias Samuel está agressivo e que vem chorando bastante na creche, se irritando por qualquer coisa. Ela também disse que começou a namorar, que o namorado reside em outra cidade e que, na primeira vez em que ele veio visitá-la, Samuel reagiu muito bem, brincou com ele. Entretanto, depois disso, Mariana notou que ele ficou mais agressivo. A mãe acha que o menino está com ciúmes dela com o namorado.

15 DE SETEMBRO DE 2011 

[…] Depois, fomos até a sala. Pedro propôs que brincássemos de viajar. O sofá seria nosso avião. Daiane perguntou para onde iríamos viajar, e o menino respondeu que iríamos para São Paulo, na casa do seu pai. Brincamos, então, em cima do sofá, eu, Daiane, Pedrinho e uma amiga de sua mãe.

Pedro contou que estava fazendo natação, pediu à mãe para colocar sua sunga e a touca. Daiane resistiu em consentir, mas acabou cedendo. Pedro decidiu, então, fazer no meio da sala uma piscina para “mergulharmos”. Durante algum tempo, ele brincou dentro de um pequeno espaço do chão da sala, que ele chamou de “minha piscina”.

[…]

Como já estava ficando tarde e Pedro ainda precisava tomar banho, Daiane falou ao filho que achava que já estava na hora de terminar a festa. Pedro não queria. Eu argumentei, dizendo que também já estava um pouco cansada, que precisava ir pra casa tomar banho. Ele disse que se eu fosse pra casa o lobo mau poderia me pegar. Falei que iria correndo pra casa, chegaria e trancaria a porta e o lobo não me pegaria. A mãe argumentou que a minha casa não era de madeira, se o lobo soprasse não iria cair.

Mesmo assim, Pedro não queria parar com a brincadeira, a mãe então insistiu que ele deveria ir tomar banho e o menino começou a chorar e ameaçou se jogar no chão. A mãe pediu que ele parasse imediatamente com aquilo, que ela iria ficar muito brava se ele continuasse com aquele comportamento e falou: Pedro, se você continuar assim o que eu vou virar? O menino respondeu, ainda meio choroso: Um tigre!

Repórter: Daniela Pin Menegazzo
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