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Jornalismo para crianças

Thais Furtado discute a relação entre mídia, infância e consumo



 

As manhãs na televisão já não contam com tantos desenhos e são quase exclusivamente dedicadas a uma programação adulta. Os programas de realidade apostam na competição entre pequenos cozinheiros ou cantores. As revistas infantis são vendidas com o apelo dos brindes em formato de brinquedo. A internet apresenta cotidianamente as novidades infantis, muitas produzidas pelas próprias crianças. Se o nosso tempo é chamado de “era da informação”, certamente a infância não ficaria fora das mudanças. Mas que infância é essa, narrada pela mídia e cercada de tantas transformações? A pesquisadora Thais Furtado assumiu o desafio de tentar compreender essa questão através do Jornalismo, e sua tese de Doutorado, defendida na UFRGS em 2013, se tornou referência para pesquisas sobre o tema.

 

Jornalista com experiência de reportagem em grandes veículos nacionais, como Veja e Zero Hora, Thais é professora de Jornalismo e coordenadora do novo curso da Unisinos em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ela também coordena a Agência Experimental de Comunicação da universidade. O mestrado em Letras, pela UFRGS, agrega ao trabalho de pesquisa uma importante visão sobre como a linguagem às vezes diz mais do que parece dizer.

 

 

A pesquisadora Thais Furtado é autora da tese

 

De onde surgiu teu interesse em trabalhar com a temática Mídia e Infância?

Acredito que as pesquisas sempre têm relação com a vida e o contexto dos pesquisadores. Tanto que no mestrado estudei as modificações de sentido no discurso da Veja, porque a forma como o jornalismo era feito na revista me incomodava. Quando fiz o doutorado, meu filho mais velho era adolescente e minha filha ainda era uma criança. Chamava muito minha atenção a forma como eles e seus amigos se relacionavam com a mídia e, especialmente, com o jornalismo. Isso me motivou a pesquisar esse tema.

 

Como a maternidade te ajuda a pensar academicamente a relação entre infância e consumo?

Um dos pontos que me intrigava era justamente como a mídia estimulava – ou acionava, como uso na tese – o desejo de consumo das crianças. Eu percebia claramente, mesmo não tendo filhos consumistas em excesso, que a televisão, os sites, os jogos, o cinema faziam com que meus filhos e seus amigos desejassem produtos que eram anunciados. Além disso, existe também a vontade de ter roupas ou outros produtos com personagens, criando uma grande rede de consumo que se auto-alimenta. Mas isso é algo que todo mundo percebe. A publicidade tem mesmo esse objetivo e já existe muita discussão sobre como controlar a publicidade infantil.

 

Entretanto, comecei a perceber que o jornalismo também fazia isso. Sites e revistas infantis, por exemplo, ao tratar de certos temas, também acabam ditando o que deve ser consumido, o que faz as pessoas serem “felizes” e incluídas socialmente. É claro que a mídia e jornalismo não são os únicos responsáveis por isso. As crianças estão, atualmente, em contato com três “instituições” básicas: a família, a escola e a mídia. Em todas essas relações existe, ao mesmo tempo, a preocupação com o consumismo, mas também o estímulo. É algo bem complexo.

 

Quais são as tuas memórias de infância sobre o Jornalismo?

Na época em que eu era criança – faço 50 anos este ano – a informação não era tão disponível como hoje, nem havia tantos formatos narrativos. Lembro que lia muitos livros e também gostava muito de assistir televisão. Mas via programas e desenhos, nada jornalístico. Minha família, no entanto, sempre foi politizada, e o conhecimento sempre foi muito valorizado. Tenho cinco irmãos e, quando nos reunimos, os debates são constantes e acalorados até hoje. Meus pais estimularam muito isso. Sempre leram livros e jornais, e debater os temas sociais sempre foi uma rotina na minha casa. Acho que isso me aproximou do jornalismo desde pequena. Queria sempre saber o que estava acontecendo no mundo para me posicionar. Na adolescência eu tinha muito mais certezas do que hoje. E quando era criança, gostava de brincar de ser apresentadora de telejornal. Pegava uma caixa de papelão grande, cortava e desenhava botões, transformado a caixa em uma TV. Colocava a caixa sobre uma mesa e ficava sentada com a cara no buraco lendo notícias que eu pegava do jornal ou escrevia.

 

“Para saber de seus direitos e até do que vão consumir ou não, as crianças precisam buscar informação. Os jornalistas devem perceber que têm uma responsabilidade muito grande com esse público, que está ficando desassistido de conteúdo jornalístico responsável”.

Você acha que o jornalismo mudou, nesse sentido?

O jornalismo mudou muito de lá para cá, em muitos sentidos. Em relação ao jornalismo direcionado para os adultos, já ocorreram muitas mudanças, principalmente com a chegada da internet e a evolução da tecnologia. Em relação ao jornalismo infantil, então, as modificações foram maiores ainda. Na tese, eu pesquisei como surgiu o jornalismo infantil e é possível afirmar que ele partiu da união da literatura infantil com os quadrinhos. Quando eu era criança, gostava dessas duas linguagens e a revista Recreio, que acabei estudando mais tarde, foi para mim – e para muita gente – o início da aproximação com uma linguagem direcionada para as crianças que incluía informação. Mas a linguagem ainda era muito mais lúdica. Hoje existe um interdiscurso muito maior nas mídias direcionadas para as crianças. Tanto que a Recreio de hoje, como eu pude ver no doutorado, é formada por uma forte relação entre os discursos jornalístico, publicitário, científico, didático e de entretenimento. Ou seja, o lúdico é apenas um pedacinho. Mas ainda é preciso muito debate sobre como se deve fazer jornalismo para crianças.

 

Do ponto de vista da mídia, por que as crianças são consideradas “público”?

Para qualquer pessoa ser considerada cidadã, hoje, ela precisa ser consumidora. Quem não consome, não é incluído, e isso se modifica constantemente. As crianças passaram mesmo a ser consideradas público para a mídia, e para o jornalismo, quando passaram a consumir. Aconteceu, por exemplo, com as mulheres na década de 1960. Já com as crianças, foi a partir dos anos 1990 e início dos anos 2000 que elas passaram a ter o poder de consumo. Isso ocorreu principalmente pela redução das famílias, o aumento dos divórcios combinados com a valorização simbólica da infância.

 

A terceirização dos cuidados com as crianças, o aumento das mulheres no mercado de trabalho, tudo isso fez com que os pais e mães passassem a sentir mais culpados e a tratar as crianças com uma importância que não tinham antes. Com isso, as crianças passaram a ter poder de influência no que é comprado não só para elas mesmas, mas para os pais e para dentro de casa. No Brasil, uma pesquisa realizada pela TSN/InterScience, em 2003, revelou que 80% do que é comprado em uma casa hoje passa pelo crivo das crianças. Por isso, a mídia passou a se direcionar mais para elas.

 

A mídia e o jornalismo ao mesmo tempo que ajudam os grupos a se fortalecerem e a terem voz social, também os enxerga como grupos que consomem, pois necessitam disso para sobreviver. Mas ainda falta as crianças adquirirem muitos direitos. O que tenho estudado hoje, por exemplo, é a presença – ou ausência – da voz das crianças no jornalismo tradicional, direcionado aos adultos, ou a todos. Por que as crianças não podem ser ouvidas, como qualquer fonte, principalmente sobre temas que dizem respeito diretamente a elas, como educação, saúde, entretenimento?

 

A infância é tema recorrente nas discussões sobre publicidade…

Justamente, em relação à publicidade a discussão já está muito mais adiantada. Tanto que existe a resolução 163 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) que regula a publicidade abusiva para as crianças. Além de muitos debates em escolas e na própria mídia. Mas e o jornalismo? Quem está discutindo isso, fora poucos pesquisadores na academia?

 

Pensando nisso, como a questão da especialização de públicos pode ser compreendida quando falamos de jornalismo infantil?

Como falei, o investimento em publicações direcionadas a esse público se dá pelo interesse de conquistar um novo grupo que não só é consumidor, como interfere nas decisões de consumo dos adultos da família e ainda por cima será um grupo consumidor do futuro. Mas as empresas de comunicação ainda estão muito perdidas em relação à forma de se direcionar a esse grupo para passar informações. Ou seja, não se sabe fazer jornalismo infantil ainda. Enquanto as crianças estão presentes na publicidade, em programas de entretenimento, como The Voice Kids e Master Chef Junior, elas ainda são praticamente inexistentes nas matérias jornalísticas.

 

Além dos clássicos espaços de entretenimento infantil, nas grades de televisão e produções editoriais variadas, qual a importância de pensar a relação entre jornalismo e infância?

É importante pensarmos que as crianças hoje estão muito conectadas, recebendo informações de blogs, de sites, de vlogueiros, de youtubers, de revistas, da televisão, das redes sociais, de muitos diferentes canais. Para serem conhecedoras de seus direitos e até do que vão consumir ou não, essas crianças precisam buscar informação. Então os jornalistas devem perceber que eles têm uma responsabilidade muito grande com esse público que está ficando desassistido de um conteúdo jornalístico mais responsável. É preciso criar canais de informação jornalística com credibilidade e linguagem adequada para as crianças, mas é preciso também incluí-las no jornalismo rotineiro, direcionado a todos.

 

“As crianças passaram mesmo a ser consideradas público para a mídia, e para o jornalismo, quando passaram a consumir”.

 

 

 

Sobre a sua pesquisa com a revista Recreio. Você acabou trabalhando com um segmento específico de crianças, aquelas que têm acesso, no Brasil, a esse tipo de publicação. Por que trabalhar com jornalismo impresso para crianças?

É muito importante essa pergunta, porque ela me proporciona dizer que não podemos pensar a infância como uma só. A infância muda com o tempo, com as culturas e mesmo com as condições sociais. No Brasil, nós temos crianças de rua, temos crianças que infelizmente trabalham para ajudar suas famílias, assim como temos crianças que têm em seu quarto televisão, som, vídeo game, além de um celular que as acompanha 24 horas por dia. São infâncias diferentes em um mesmo país, que recebem informações de formas diferentes. Claro que elas têm características comuns a qualquer criança, como o desejo do saber e o desejo de brincar, mas elas têm formas de vida muito diferentes.

 

Mesmo assim, esses bens que algumas crianças possuem são valorizados por todos. A criança pobre, de uma escola pública, sabe tanto quanto a rica, de uma escola privada, o valor social que tem hoje um Iphone. E é exatamente isso que as diferencia. Todos sabem que o celular de última geração é o mais caro e melhor. É isso o que faz a criança rica assumir um papel diferenciado numa relação de poder social. Todas sabem o valor de ter uma camiseta, ou um estojo, da Frozen, mas sabem que somente algumas têm uma camiseta da Frozen de uma loja de grife.

 

Por outro lado, o acesso à internet, que cada vez abrange um público maior, inclusive sendo introduzido nas escolas, traz uma esperança de ampliação da democratização de espaços de conhecimento, de informação e de opinião. Mas meu interesse, no doutorado, era focar no discurso jornalístico, pensar realmente o jornalismo infantil. E esse ainda é muito mais identificado, até por sua história, com o meio impresso. Enquanto a Recreio existe desde 1969 – mesmo tendo ficado um tempo sem circular – ainda nem descobrimos exatamente como fazer jornalismo infantil na televisão e na internet. Por isso estudei o meio impresso.

 

A pesquisa aponta uma forte relação da revista Recreio, que você estudou, com o consumo infantil. Você sustenta que a revista busca “acionar” o desejo de consumo nas crianças. O que isso significa quando pensamos a função social do jornalismo e a formação de futuros leitores de jornais?

Acho importante falar na função social do jornalismo de formar leitores. Ela é fundamental. Ler é muito importante e isso é comprovado por várias pesquisas. Desenvolve o raciocínio, a capacidade de argumentação, a criatividade, a atenção, então temos que ficar atentos ao fato de que precisamos fazer com que essa geração digital, que já nasceu na lógica digital, continue a ler (não necessariamente em papel, embora eu acredite que o meio também é importante para estimular outras habilidades). Não quero, de forma alguma, demonizar os meios digitais. Eles trouxeram inúmeras vantagens na rotina de todos, de todas as idades. Eles estimulam as crianças de diferentes maneiras. Mas não podemos deixar de ensinar as crianças sobre a importância da leitura. E o jornalismo é fundamental nessa luta. As crianças não só precisam desejar ler, como precisam desejar ser bem informadas, por meio de canais de informação responsáveis, com credibilidade, com a inclusão de diferentes fontes. Se os jornalistas hoje já têm dificuldade de oferecer isso tudo aos adultos, imagina para as crianças. Elas não podem receber só conteúdo de entretenimento, e certamente nem querem somente isso. É de responsabilidade das famílias, da escola e da mídia oferecer informação qualificada para as crianças. Esse é um direito de qualquer cidadão, e as crianças são cidadãs de enorme importância social na contemporaneidade.

 

Repórter: Laura Storch

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