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Direito ao Esquecimento

Debate jurídico busca o resgate do indivíduo na era da comunicação sem fronteiras



O carioca André Dahmer é um dos mais respeitados cartunistas e chargistas da atualidade. Conhecido pelo seu estilo ácido, ficou marcado pelas séries Os Malvados e Os Quadrinhos dos Anos 10. Nesta última, uma tirinha assinala a experiência jurídica da qual essa reportagem tratará.

Dois personagens, um patrão e um funcionário. O patrão avisa ao funcionário que uma das clientes da firma teve fotos “eróticas” suas vazadas na internet, e que ele deveria recolhê-las. O quadro final é típico da sátira de Dahmer: o funcionário aparece com uma rede de caçar borboletas coletando fotos da cliente que caem do céu, enquanto se amontoam aos milhões em pilhas.

Pode parecer impossível a ideia de se apagar por completo alguma coisa da Internet. Mas isso existe, e é um direito: o Direito ao Esquecimento, é uma noção jurídica utilizada no mundo inteiro, e que, recentemente, tem sido aplicada também no Brasil. O direito ao esquecimento garante que um cidadão pode, caso queira, “ser esquecido” pela população e – principalmente – pelos meios de comunicação de massa.

 

Em 1958, uma jovem de 18 anos foi estuprada por três pessoas e brutalmente assassinada. Décadas depois, seu caso foi exibido no extinto programa policial “Linha Direta”, da Rede Globo. As irmãs da jovem entraram na justiça pedindo indenização porque consideravam que o caso deveria ser esquecido. Elas perderam o processo. Mas em 1993, um novo processo teve um desfecho distinto. Um policial, inocentado de sua participação na Chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, teve seu nome divulgado em um documentário exibido também pela Rede Globo. A família abriu um processo, alegando constrangimentos posteriores ao fato, e derrotou a emissora, que precisou desembolsar 50 mil reais com a compensação jurídica.

 

O Direito ao Esquecimento é um tema controverso para a justiça brasileira, e a falta de jurisprudência – decisões anteriores sobre temas semelhantes, que auxiliam o juíz a tomar a sua decisão – provoca uma disparidade ainda maior entre as decisões judiciais. A 6ª Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça em 2013, discutiu a questão, e os juristas passaram a interpretar que o cidadão brasileiro tem, sim, direito de ser esquecido.

 

Lei Carolina Dieckman

 

Mas como aplicar a regra em contextos de excesso de registros e informação, como acontece com as nossas relações através da Internet? Até que ponto uma pessoa (ou mesmo sua família) pode exigir de diferentes instituições (como empresas e imprensa, por exemplo) o esquecimento sem que isso seja uma forma de censura? O debate é acalorado no mundo inteiro. Talvez o caso mais marcante seja o do espanhol Mario Costeja Gonzalez, que exigiu na justiça que seu nome não pudesse ser encontrado na plataforma de buscas Google. O Google, aliás, acumula processos que se valem das regras do Direito ao Esquecimento. A Comissão Nacional de Informática e Liberdade da França chegou a pedir que o Google retirasse registros de pessoas em nível mundial dos indexadores do buscador. A medida está sendo questionada judicialmente pela empresa.

 

Casos envolvendo celebridades em situações publicamente constrangedoras tendem a chamar mais a atenção das autoridades. No Brasil, ficou conhecido o caso da atriz Carolina Dieckmann, que teve fotos suas nua vazadas na Internet em 2012. A atriz chegou a sofrer ameaças de extorsão pelo vazamento de mais imagens. O caso foi parar na justiça e acabou gerando mudanças na legislação: agora quem cometer tal delito sofrerá pena de seis meses a dois anos de prisão em regime fechado, mais multa. A lei chegou a ser popularmente batizada com o nome da atriz.

 

O Marco Civil da Internet, instituído em 2014, joga mais lenha nessa fogueira. Afinal, ele garante as liberdades individuais na rede, tornando difícil para veículos de comunicação questionar as auto-afirmadas vítimas de uma política de não esquecimento.

 

O jurista pernambucano Giancarlo Coutinho do Rego, dissecando o Direito ao Esquecimento aplicado à legislação brasileira, buscou estabelecer critérios  de ponderação pelos quais seja possível decidir se o Direito deve ou não ser garantido. O jurista conclui, ao fim da sua análise, que, observados devidamente os critérios de ponderação, o Direito ao Esquecimento é um mecanismo para que a coletividade da memória não infrinja o direito pessoal da manutenção de uma vida digna. Ou seja, que os lastros históricos não destruam reputações e vidas.

 

Na clássica distopia de George Orwell, “1984” (Companhia das Letras), a ditadura do Grande Irmão providencia um departamento inteiro dedicado à alteração da memória, através de mudanças em textos jornalísticos. Orwell destacava que mexer com a memória coletiva é perigoso. Mas “1984” também nos mostra os perigos de uma sociedade em que, pelo “bem coletivo” são colocados em suspenso direitos básicos, como a identidade e os direitos pessoais. O dilema reside aí: se processar um gigante das telecomunicações sob a exigência de que seu nome não seja citado já é um desafio, pedir para que seu nome não apareça na pulverização dantesca da internet soa fantasioso. É o próprio conceito de memória que está posto à prova: agora que “nunca nos esquecerão”, teremos, algum dia, privacidade de dados? Ou estaremos constantemente arquivados, disponíveis para sermos acessados pela coletividade?

Reportagem: Mateus Martins de Albuquerque e William Boessio
Infográfico: Juliana Krupahtz

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