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Da loucura à revolução

Psiquiatra brasileira, Nise da Silveira foi a pioneira no tratamento humanizado no país



Um hospital público com lixo, roupas sujas, urina e excrementos espalhados pelo chão. Assim viviam os “loucos” do século XIX. Nessas mesmas condições ainda vivem, hoje, os internos do Instituto Psiquiátrico Forense, em Porto Alegre. Em julho deste ano, o juiz Luciano André Losekann, da Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas (Vepma) do Rio Grande do Sul,  afirmou que o tratamento do Estado para com os doentes equivale à tortura, e proibiu a admissão de novos pacientes na instituição.

Segundo informações publicadas pelo jornal gaúcho Zero Hora, o IPF hospeda 223 pessoas portadoras de distúrbios neurológicos que estão envolvidas em crimes, sentenciadas ou aguardando julgamento. Por falta de pagamento aos prestadores de serviço, os internos trabalham como cozinheiros e faxineiros do local.

A situação do IPF chama a atenção pela violência, e pode até ser considerada uma exceção nos nossos dias, mas não na história. Segundo a psiquiatra Sandra Helena Nardi, formada em medicina pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), antes da reforma psiquiátrica, os doentes mentais eram excluídos da sociedade, exilados e internados em hospitais psiquiátricos, onde ficavam a vida toda. Como muitas doenças mentais não tem cura e apenas tratamento, os pacientes eram levados para os manicômios e permaneciam a vida inteira sem um tratamento digno, deixados à mercê de cuidados desumanos.

A psiquiatria é uma área recente da medicina e, no Brasil, as medicações psiquiátricas começaram a ser usadas a partir da década de 1950. Antes disso, os tratamentos eram à base de choques elétricos, choques insulínicos e lobotomias. Os transtornos mentais não eram vistos como doenças no século XVIII, achava-se que era um “castigo dos deuses ou influência divina”, como conta Nardi. Segundo a psiquiatra, nos manicômios também eram internadas muitas mulheres com o “pensamento um pouco mais avançado: existem muitos relatos de mulheres que foram mandadas para o manicômio porque queriam cursar medicina na época”, explica.

De perto ninguém é normal

“Não se cura além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas”. A frase é de Nise da Silveira, uma das mulheres mais importantes e revolucionárias na história da psiquiatria brasileira.

Loucura, arte e rebeldia são palavras presentes na trajetória de Nise, que ao negar-se a utilizar métodos medicinais invasivos nos pacientes se tornou uma das pioneiras no uso da terapia ocupacional e de oficinas de arte como tratamento.

Em um ambiente dominado por homens, Nise foi uma mulher precursora, que abriu caminho para que outras mulheres atuassem na área de saúde mental. Ela teve seu trabalho reconhecido por grandes nomes da psiquiatria mundial e, além de tratar de forma humanizada seus pacientes, mostrou ao mundo o grande potencial artístico que havia neles.

Alagoana, nascida em Maceió em 1905, Nise morreu aos 94 anos de idade, deixando um legado humanizado para a psiquiatria no Brasil. Formou-se em 1926, na Faculdade de Medicina da Bahia. Foi a única mulher em uma turma de 157 médicos homens. Após a morte do pai, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1927, onde fundamentou seu desenvolvimento intelectual e seu trabalho na área de saúde mental. Em 1933, começou a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental, no Hospital da Praia Vermelha.

Em um período em que o “perigo vermelho” fez o presidente Getúlio Vargas suspender os direitos civis e perseguir aqueles que eram considerados uma “ameaça à paz nacional”, Nise foi presa em 1936 por portar livros marxistas. Foi mantida em reclusão no presídio Frei Caneca por mais de um ano, onde partilhou cela com Olga Benário – judia militante comunista que foi entregue, grávida, à Gestapo de Hitler pelo governo brasileiro. Nise se tornou personagem real do livro Memórias do Cárcere, do seu também colega de presídio, Graciliano Ramos.

Após sair da prisão, Nise da Silveira trabalhou no Hospital Psiquiátrico Pedro II, onde rebelou-se contra os métodos até então usados para o tratamento daqueles que eram considerados “loucos e desajustados”. Homossexuais, prostitutas, viciados em álcool e entorpecentes, autistas, pacientes com epilepsia, todos aqueles que não se encaixassem nos padrões de normalidade eram encarcerados e viviam em condições sub-humanas. O objetivo dos manicômios não era tratar os pacientes, porque não se acreditava na possibilidade de melhora: os locais serviam como um depósito, onde o principal objetivo era recolher da sociedade aqueles que à época eram destoantes.

Choques elétricos, camisas de força, isolamento e cirurgias eram meios brutais contra os quais Nise lutou ferozmente. Ela não somente criticou essas formas invasivas e violentas de tratamento, como apresentou alternativas para tratar os pacientes de forma mais humana. Nise não apenas via humanidade e lutava por condições dignas de tratamento para essas pessoas, como também enxergava e estimulava suas potencialidades.

A psiquiatra criou um ateliê de arte como uma dessas alternativas: um espaço idealizado por Nise da Silveira para que esquizofrênicos marginalizados pudessem se expressar artisticamente. Obras de diversos pacientes seus percorreram o mundo em exposições nas mais prestigiadas galerias de arte. Hoje, estão expostas no Museu de Imagens do Inconsciente.

Segundo Nardi, “Nise conseguiu perceber que, através do desenho, seus pacientes poderiam trazer coisas do inconsciente e, assim, construir um vínculo com a realidade. É através dessa expressão do inconsciente pelos desenhos que o paciente estabelece uma relação com o mundo real”. Para a psiquiatra santa-mariense, o limiar que determina quem deve ser internado ou não está na percepção da realidade: “o paciente é internado quando está fora da realidade, quando possui delírios ou alucinações e representa risco para si e para os outros”. Segundo Nardi, as artes dos pacientes representam uma ponte entre a realidade e o inconsciente dos pacientes, o que a psiquiatra define como “coisas que vivenciamos desde quando nascemos e que são guardadas em um nível de consciência abaixo do nível do consciente, e que influenciam todas as nossas ações. O inconsciente se forma desde que se nasce (alguns dizem que até mesmo antes do nascimento), pelas vivências que temos”.

Jung e o inconsciente

Com seus trabalhos e estudos, Nise despertou o interesse de Carl Gustav Jung, psicoterapeuta suíço conhecido como pai da psicologia analítica e cujas teorias eram estudadas pela psiquiatra no Brasil. Nise da Silveira introduziu e divulgou no país a psicologia junguiana. Durante anos, os dois trocaram cartas sobre as pinturas de seus pacientes, buscando entendê-las.

O primeiro encontro presencial entre os dois iria acontecer em 1957, durante o II Congresso Internacional de Psiquiatria. Foi quando a psiquiatra brasileira foi convidada por Jung para estudar com ele durante um ano na Suíça, no Instituto Junguiano. Lá ela pode expôr ao mundo as obras do Museu das Imagens do Inconsciente. Após voltar ao Brasil, criou o Grupo de Estudos C. G. Jung, do qual foi presidente até sua morte, sendo considerada uma das maiores autoridades em Psicologia Junguiana no Brasil.

Nise foi uma das precursoras da luta antimanicomial, que ganhou força no final da década de 1980, quando trabalhadores da área da saúde mental e familiares começaram a denunciar o tratamento desumano dado aos pacientes e lutar por uma mudança no sistema de saúde, em busca de um tratamento mais humano.

A luta antimanicomial

O dia nacional da luta contra manicômios começou a ser comemorado em 18 de maio de 1987. Em 2001 foi aprovada a Lei 10.216,  conhecida como a “Lei da Reforma Psiquiátrica”, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Levou mais de dez anos em tramitação para que a lei fosse aprovada.

“Nessa época já existiam algumas mudanças, mas a lei realmente garantiu os direitos dos pacientes com transtornos mentais, resgatando sua cidadania”, comenta Nardi. A psiquiatra afirma que o resgate da cidadania do paciente é fundamental, porque o preconceito com a questão da saúde mental ainda é muito grande: “pessoas acham que o doente mental não é capaz de decidir, não é capaz de pensar, não tem o seu querer, e a gente sabe que ele tem”. Para Nardi, um paciente com transtorno mental, que possui dificuldade em se relacionar e é isolado em um hospital, longe da família, demora mais para apresentar quadros de melhora do que um paciente que fica em casa, perto da família. “Por que não podemos entender e aceitar que as pessoas podem ser diferentes? Elas podem apresentar o transtorno pelo resto da vida, mas existem também o afeto, o querer, o direito de ter um lugar na sociedade, mesmo tendo um transtorno mental”, complementa Nardi.

Ao contrário de outros psiquiatras da época, Nise acreditava que os esquizofrênicos não sofriam de um enfraquecimento afetivo, pois eles demonstravam sentimentos através das pinturas e esculturas que faziam. Para estimular o afeto de seus pacientes, ela introduzia cães e gatos nas clínicas, chegando a chamá-los de co-terapeutas.

Atualmente, os hospitais contam com uma ala psiquiátrica específica para a saúde mental, tal qual as áreas geriátricas para idosos e obstétricas para grávidas. Além disso, existem os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), onde o paciente recebe tratamento integral e diário, caso necessário. “Ele pode ir todos os dias, ser reavaliado e receber medicação”, afirma Nardi. Além disso, os CAPS são locais onde o paciente também pode realizar atividades terapêuticas. Há, ainda, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, que fiscaliza os hospitais e as políticas públicas de saúde.

Até setembro deste ano, o Instituto Psiquiátrico Forense estava interditado parcialmente. Desde julho o local estava interditado por conta das más condições de higiene e salubridade. Porém uma nova vistoria realizada no início do mesmo mês, mostrou melhoras nas questões de higienes do local e na alimentação dos pacientes.

Reportagem: Carolina Escher, Maria Helena e Nicoli Saft
Fotografia de capa: Leonardo Carneiro
Infográficos: Nicolle Sartor

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