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Quando a história de vida segue ainda após a morte

Doação voluntária de corpos é aposta para continuidade de estudos acadêmicos com cadáveres humanos



Atualizada em 12/11/2017 às 23:30

 

Outdoors, programas televisivos e campanhas governamentais chamam a atenção para a doação de agasalhos, doação de alimentos, doações a igrejas e instituições sociais. Põem-se em prática os ideais de fraternidade e solidariedade, ainda que, por trás disso, impregna-se o individualismo e o egocentrismo. No Brasil, é comum a doação de sangue e, em menor proporção, também a doação de órgãos. Mas então, por que, em nosso país, falar sobre a doação de corpos ainda é um tabu?

 

O filósofo francês Auguste Comte, há cerca de dois séculos, conceituou o altruísmo como uma conduta humana contrária ao egoísmo, que beneficia o próximo de maneira natural, instintiva, não interesseira. É a noção de que buscamos, involuntariamente, ser úteis ao mundo, como se esse fosse nosso propósito. Um propósito de vida que, aparentemente, termina após a morte.

 

Preparação de aula no Departamento de Morfologia na UFSM

Permeada por inúmeras polêmicas, a utilização de corpos humanos e animais para estudos anatômicos é uma prática existente na maior parte das instituições de ensino brasileiras. Não há um consenso sobre o nascimento da anatomia na história da humanidade, porém, estudos indicam que foi Herófilo da Calcedônia (335 a.C. — 280 a.C.) que entrou para a história como o primeiro homem a utilizar um cadáver humano para estudo. Hoje, tudo o que sabemos sobre o funcionamento do organismo humano deve-se aos séculos de estudos de anatomistas.

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Na Europa, os cadáveres de criminosos foram utilizados durante séculos em estudos anatômicos; posteriormente, foram substituídos por cadáveres não reclamados (que não foram procurados/identificados por parentes ou responsáveis legais) e, nos últimos 50 anos, os corpos adquiridos através de doações voluntárias são a maior fonte de cadáveres para estudo, de acordo com pesquisa de Elizabeth Neves de Melo e José Thadeu Pinheiro. No Brasil, no entanto, a prática de doação de corpos ainda é incomum, pouco falada e encarada com estranheza no âmbito social. A maior parte dos corpos que são utilizados nas escolas de anatomia do país são cadáveres não reclamados.

 

Na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), o Departamento de Morfologia é onde se realizam os estudos com corpos humanos e animais. É no subsolo e no primeiro piso do prédio 19, no campus sede da Universidade, que os corpos são conservados, preparados e dispostos nos laboratórios de ensino, inteiros ou em partes, para serem estudados por alunos de treze cursos de graduação e dois cursos técnicos. Um dos professores de Anatomia Humana, Carlos Eduardo Seyfert, afirma que o Departamento possui capacidade para ministrar quatro aulas ao mesmo tempo, com material para atender, concomitantemente, cerca de cento e cinquenta alunos.

 

Preferindo não falar em quantidade exata, Seyfert explica que o material humano existente no Departamento é mais escasso se comparado ao animal, que é extremamente mais fácil de adquirir. No entanto, o professor afirma que não há falta de material; o que há é uma preocupação futura com o desgaste devido a manipulação dos corpos atualmente estudados e com a pouca oferta ao longo dos anos. 

 

Temendo esta escassez de corpos humanos para estudos, o Departamento de Morfologia deu início, em junho de 2016, ao Programa de Doação Voluntária de Corpos. Sob coordenação de Seyfert e baseado no Artigo 14 da Lei 010.406-2002, do Código Civil Brasileiro, o Programa visa conscientizar as pessoas sobre a importância da doação de corpos e auxilia os doadores voluntários no encaminhamento da documentação necessária para a legalização do ato.

 

Pelo Programa de Doação Voluntária de Corpos, o Departamento de Morfologia, já recebeu a doação de três corpos humanos, desde julho de 2016. Na situação de cadáver não reclamado, o último corpo que o Departamento adquiriu foi recebido do Instituto Médico Legal (IML) de Porto Alegre no ano de 2010.

Legislação para utilização de corpos em estudos

 

A lei 8.501/92 regulariza a utilização de cadáveres para fins de ensino e pesquisa. Ela define que o cadáver não reclamado junto às autoridades públicas (que não tenha documentação e nenhuma informação referente a endereço de parentes ou responsáveis) pode ser liberado e encaminhado para um centro de estudos na área da saúde. Entretanto, antes disso, é necessária a publicação de nota de falecimento nos principais jornais da cidade, a título de utilidade pública, por dez vezes em um prazo de trinta dias.

 

Apenas os cadáveres de morte natural – doença contraída ou idade avançada – podem ser encaminhados para estudo e pesquisa, visto que não haverá responsabilidade alheia a apurar. Quando houver indício de que a morte tenha resultado de ação criminosa, o cadáver não poderá ser destinados a estudo, pois há necessidade de esclarecer as circunstâncias em que se deu o fato.

 

Material humano do Departamento de Morfologia da UFSM

Procedimentos para a doação voluntária de corpos

 

“A conscientização da família é crucial”. Esta é a frase dita pelo professor Seyfert quando questionado sobre o que é necessário para que a doação voluntária se concretize após o óbito do doador cadastrado. Ele explica que, mesmo se todos os documentos estiverem encaminhados legalmente, se a família da pessoa falecida não autorizar, a doação voluntária do corpo não é efetivada.

A lei 010.406-2002 permite a disposição gratuita do corpo depois da morte, no todo ou parte dele, para fins científicos.

Na doação em vida, o doador deve: emitir três vias de uma declaração assinada por ele e três testemunhas, todas com firma reconhecida em cartório, declarando que, em pleno gozo de suas faculdades mentais, deseja fazer doação espontânea do seu corpo após falecimento, para fins de estudo e pesquisa.

Para o corpo doado pela família, o familiar ou representante legal do doador deve: emitir declaração que contemple o desejo de fazer doação espontânea do corpo de seu parente, também com reconhecimento de firma, do responsável e das três testemunhas.

Tanto na doação em vida quanto na doação pela família, é preciso especificar para qual centro de estudos o cadáver deve ser encaminhado. Seyfert conta que, atualmente, o número de intenções para o Programa de Doação de Corpos da UFSM é de 18 pessoas. Ele explica que é um número pequeno se comparado a universidades com mais tempo de programa de doação: “Na Universidade de São Paulo, com 4 anos de programa, existem mais de 200 doadores cadastrados e 28 corpos doados; a Universidade Federal de Minas Gerais tem mais de 1000 cadastrados e cerca de 50 doações concretizadas, com 19 anos de programa”.

 

De acordo com Seyfert, cada programa de doação voluntária é norteado por uma lei e apresenta particularidades. Ele explica que, na UFSM, poucos sabem sobre a existência do Programa porque, além de ter sido criado recentemente, não houve uma grande divulgação: “Não foi intensificada essa divulgação porque nos preocupamos com números grandes; temos condições de receber corpos a qualquer momento aqui, mas se aparecer um número muito grande pode ser que cause desconforto”.

 

Questões culturais que permeiam a (não) doação

 

Questionado sobre o porquê de, no Brasil, não ser comum a prática de doação de corpos, o professor Dorival Terra Martini, que também ministra aulas de anatomia na UFSM, opina que o fato é baseado em questões culturais: “Não temos esta cultura de nos doar; a própria doação de órgãos para transplante enfrenta um grande problema no Brasil, pela falta de doadores, que decorre da cultura do nosso povo; com a doação de corpos não é diferente”. Além disso, Martini expõe que a cultura de enterrarmos os corpos e irmos visitá-los em datas especiais, como no dia de finados, não são práticas tão usuais em países com menor extensão territorial: “Em alguns países da Europa, por exemplo, onde é caro manter um corpo sepultado, a família acaba optando com mais frequência pela doação, pela função social de contribuir para o ensino e a formação de novos profissionais de saúde, ao invés de deixar o corpo lá se decompondo”.  

 

Uma pesquisa da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) aponta que em países como Japão, Estados Unidos e Alemanha, o processo de doação é bem mais difundido que no Brasil. Mais do que isso, na Índia, o governo incentiva doações voluntárias de corpos para assegurar que não exista escassez deste material em instituições médicas. Portugal é outro país que apresenta-se normativamente mais definido que o Brasil, pois tem uma legislação que regulamenta diretamente a doação de corpos e prevê que todos os cidadãos nacionais são potenciais doadores; para caso de oposição, a pessoa que não quer doar seu corpo precisa inscrever-se no Registro Nacional de Não Doador, do Ministério da Saúde. As informações são de uma pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), que faz um estudo comparativo luso-brasileiro sobre o tema.

 

Por que, então, não utilizar material sintético?

 

A utilização de corpos humanos e de animais para estudos anatômicos é motivo de discussões no mundo todo. As análises bioéticas questionam a racionalidade da utilização de seres vivos para estudos e a conduta social em meio aos avanços da ciência. No entanto, para muitos professores, estudantes e cientistas da área da saúde, a utilização de cadáveres é considerada de grande importância, senão essencial.

 

Material sintético do Departamento de Morfologia da UFSM

A estudante de Fonoaudiologia da UFSM, Jainara Medina Teixeira, que têm aulas no Departamento, diz que, embora as empresas se preocupem com a confecção de materiais sintéticos com características muito próximas da realidade, um estudo diretamente no corpo humano e/ou animal prepara melhor o profissional para enfrentar situações adversas. “O material sintético vai ser normalmente um igual ao outro, podendo apresentar pequenas diferenças; já um estudo com cadáveres proporciona maior variedade no aprendizado, porque cada corpo pode apresentar algumas características diferentes, em relação à localização e trajeto de nervos, veias e músculos, por exemplo”, analisa Jainara.

As fotografias utilizadas nesta reportagem foram autorizadas pelo Departamento de Morfologia da UFSM.

 

Reportagem: Claudine Freiberger Friedrich

Fotografia: Rafael Happke

Arte: Giana Bonilla



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