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Sobre espelhos

Por Nikelen Witter*



O menino entrou na sala de espelhos numa tarde branca de inverno. Perseguia uma bola multicor e os guardas o acharam tão gracioso que não puderam evitar um pouco de sorriso. A sala de espelhos é enorme. Quase um salão, mas não tão grande. Quase uma galeria, mas não tão comprida. É coberta de espelhos em três paredes. Naquela em que é possível olhar para fora, para os jardins, há um espelho entre cada vão de janela. É uma sala linda de se ver, mas poucos gostam de entrar nela, menos ainda de entrar sozinhos. Só as crianças pequenas não têm essas
inquietações. É sinal de estar crescendo recear ir à sala de espelhos e de amadurecimento esconder isso de todos os outros.

Só quando a luz começou a diminuir foi que os guardas lembraram. Ninguém vira o menino voltar pela porta em que entrou. Não, com toda a certeza, o menino não saíra da sala de espelhos. Os guardas procuraram, por lá e por toda parte. Nada, nem de menino, nem de bola colorida. A brincadeira virou susto, que virou desespero e, depois, tristeza. Nunca mais se soube do menino. Um riso seu talvez tenha ficado dentro da sala. Sei de muitas pessoas que disseram ter ouvido o menino por lá. Alguém, numa festa, jurou ver o menino refletido, olhando os homens de
peruca e as mulheres de saia quadrada com um riso nos lábios. Divertia-se o menino. O que era aquela criança no meio dos adultos, perguntou uma dama que ignorava o ocorrido. Mas não havia criança. Não na sala, como ela julgara. Só nos espelhos.

Então, quando não era festa, já ninguém entrava na sala, fosse sozinho ou acompanhado. Até mesmo cortesãos, que nunca admitiram o pânico que as festas entre os espelhos começavam a causar, resolveram que os jardins seriam melhores no verão e as salas com altos lambris de madeira muito mais quentes nas noites de inverno.

A sala de espelhos foi ficando sozinha. Há quem diga que foi o abandono que transformou o menino em peixe. Porque peixes de cauda longa podem nadar sob a superfície dos espelhos d’água e o menino já não se satisfazia apenas com a sala de espelhos. Nem mesmo a revolução conseguiu voltar a encher a sala. Porém, foi nesse dia que o peixe-menino fugiu.

Ele se grudou no espelho de uma espada e saiu para o mundo. Foi navegando de reflexo em reflexo, indo a todo lugar, ficando mais nuns que em outros. O melhor de tudo é que os peixes são muito mais difíceis de ver do que os meninos. O ruim é que alma de menino não pode virar peixe e disso se pode saber com certeza.

Há quem diga que quando os espelhos bruxuleiam como a superfície dos lagos, fingindo que é a luz que falha sobre eles, é o peixe-menino vindo à tona em busca de um amigo. Sob a superfície, dizem, é possível ver o olhar do menino-peixe convidando para brincar.

*Nikelen Witter é escritora e professora do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria

Ilustração e diagramação: Noam Wurzel

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