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Trabalhadoras domésticas lutam por direitos há mais de 80 anos

Trabalho doméstico é temática de estudo de pesquisas na América Latina



O quartinho da empregada e o banheiro separado nos fundos da cozinha são retratos arquitetônicos da herança de uma sociedade colonial escravocrata. Além disso, pagamentos em formato de salário indireto, a partir de alimentação, moradia e vestimenta são formas de manifestação sistemática dessa herança. Nair Jane de Castro Lima, 90 anos, trabalhadora doméstica desde os nove e sindicalizada na Associação Profissional das Trabalhadoras Domésticas do Rio de Janeiro – hoje Sindicato dos Trabalhadores Domésticos – desde os anos 1970, conta sobre o período em que foi presidenta da associação: “Eu enfrentei muitos problemas com patroas que traziam meninas do interior e diziam que era para estudar, e de repente não estudavam nada e estavam ‘escravizadas’, trancadas dentro daquelas casas”, conta.


Na categoria do trabalho doméstico remunerado, há um perfil: em geral são mulheres mais velhas, negras, de classe baixa. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad Contínua) de 2020 mostram que as mulheres representam mais de 92% da categoria. Do total de 4,5 milhões de trabalhadoras, três milhões são negras, ou seja, 67% do total. A informalidade também é um dado importante: 75% dessas mulheres não têm carteira assinada. A renda média mensal caiu de R$924,00, em 2019, para R$876,00, em 2020, valor abaixo do salário mínimo na época, que era de R$1045,00. Além disso, a média de horas trabalhadas, que é de 52 horas semanais, tem diferenças entre mulheres negras e não negras: na região Norte, por exemplo, enquanto uma trabalhadora negra tem uma jornada de 51 horas semanais, a de uma trabalhadora não negra é de 49 horas semanais.

Descrição da imagem: Ilustração horizontal e colorida de duas mulheres ao centro. Elas estão com as mãos levantadas e encostadas uma na outra. Estão em plano médio. A mulher da esquerda tem pele negra, rosto angular, olhos escuros, nariz e boca grandes, cabelos curtos e cacheados na cor preta; veste camiseta amarela e jardineira preta. A mulher da direita tem pele branca, rosto redondo, olhos escuros, cabelos loiros, na altura do ombro e lisos; veste regata preta e calça azul clara. No fundo, parede bege com cerca de 15 cartazes na cor creme. Em três deles, há frases em caixa alta e na cor marrom: "Trabalhadoras domésticas em movimento!", "Trabalhadoras domésticas na luta por igualdade" e "Não queremos ser da família!".

Os dados mostram uma intersecção entre raça, classe e gênero que é central no debate do trabalho doméstico. Jurema Brites, docente no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), antropóloga e pesquisadora da temática há 25 anos, afirma que o trabalho doméstico é um dos lugares de maior subalternidade, uma vez que a relação com os patrões acontece em um espaço isolado dentro da casa. “Aí nós temos uma precariedade dos direitos, e elas são sempre sobre gênero e raça, estão sempre interseccionadas com outras precariedades”, salienta.

 

O primeiro Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Brasil nasceu em Santos (SP), em 1936. Desde lá, já são 86 anos de luta pela busca de direitos e pela garantia daqueles já conquistados. A precarização e o desrespeito à categoria também são comuns, mesmo com conquistas importantes como a PEC das Domésticas. Notícias sobre violações de direitos da categoria são frequentes, como a primeira vítima de Covid-19 no Brasil: uma doméstica infectada por sua patroa no Rio de Janeiro. Ou como a morte do menino Miguel, em Recife. Ou como os vários resgates de trabalhadoras domésticas em condições de trabalho análogo à escravidão. De acordo com o Ministério do Trabalho e da Previdência, de 2017 a 2021, 38 trabalhadoras domésticas foram resgatadas nessas condições.

 

Mary Garcia Castro, professora aposentada na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisadora do trabalho doméstico há 33 anos, explica que, desde que investiga o assunto, as mudanças podem ser consideradas paradoxais: “Mudou muita coisa e não mudou nada. Em especial no Brasil, continua a exploração das trabalhadoras domésticas, apesar de elas terem conseguido muitas coisas em nível internacional”, expõe. Mary participou da organização de um livro latino-americano sobre o trabalho doméstico remunerado. ‘Muchachas no more: Household Workers in Latin America and the Caribbean’ (Trabalhadoras domésticas na América Latina e no Caribe, em português), foi lançado em 1991 e é base, até hoje, para os estudos desenvolvidos na área.

A PEC das Domésticas e a criação da figura da diarista

A Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi aprovada durante a Conferência Internacional do Trabalho, em 2011. Para Aguinaldo Maciente, especialista em políticas de emprego e mercado de trabalho da OIT do Brasil, a principal função da Convenção é a de reconhecimento do status dos trabalhadores e trabalhadoras: “Ela veio trazer esses trabalhadores para dentro da legislação e da normativa internacional da garantia de direitos. Em muitos países, até mais que no caso brasileiro, a situação de total informalidade dos vínculos prevalece”, destaca.  Até 2021, a Convenção foi ratificada por 31 países, com destaque para a América Latina, com 16 ratificações. Aguinaldo explica que, uma vez aprovada uma convenção da OIT, o texto segue para apreciação do Poder Executivo de cada país, que inicia um processo de análise para a posterior ratificação, que acontece no Legislativo e é sancionada pelo Executivo. A partir disso, o texto da Convenção é adaptado para a legislação interna. No Brasil, o trâmite ocorreu por meio da Emenda Constitucional nº 72, e foi sancionada pela Lei Complementar nº 150, que ficou conhecida como PEC das Domésticas, aprovada em 2016. “Com certeza foi um marco muito grande para se tornar mais concreta a garantia dos direitos dos empregados domésticos”, reforça.

 

Um dos grandes debates em torno da PEC das Domésticas é a criação da figura das diaristas, que não consta no próprio documento da OIT. A diferença entre uma diarista e uma trabalhadora doméstica está na quantidade de dias trabalhados na casa de um mesmo empregador.

 Diarista: trabalha até dois dias por semana na casa de um mesmo empregador e é considerada como ‘auto-empregadora’;

Trabalhadora doméstica: trabalha mais de dois dias por semana na casa de um mesmo empregador e, em tese, tem a carteira assinada e se beneficia de todos os direitos garantidos pela legislação;

Louisa Acciari, pesquisadora da Universidade de Londres e que fez sua tese sobre a PEC das Domésticas, aponta que a criação da figura da diarista abre uma brecha para a precarização dos direitos. Carteira assinada, salário mínimo, 13º salário e férias remuneradas são direitos básicos garantidos às trabalhadoras domésticas pela Lei Complementar nº 150. Entretanto, a mesma lei assegura aos empregadores a não obrigatoriedade do vínculo quando a trabalhadora vai até a casa do empregador até duas vezes na semana, o que configura a diarista. “Quer dizer que a maioria dos direitos não se aplicam porque a carteira não é assinada. Esse ponto contradiz inclusive a Convenção 189 da OIT e gera um problema que permite que a lei não se aplique”, explica. De acordo com dados da Pnad Contínua de 2021, a contratação de diaristas foi a que mais cresceu no país no ano passado, somando 28,7%.

 

Apesar da criação da figura da diarista, Louisa aponta que o avanço da Lei nº 150 não pode ser diminuído: “Botar na Constituição o princípio de igualdade e uma lista de direitos não é pouca coisa. É uma luta que elas têm há mais de 80 anos. É uma lei que elas pediram. É uma demanda que veio do movimento delas, e é uma conquista gigante: uma das categorias mais exploradas e marginalizadas conseguir essa lei”, reforça. Louisa aponta que o problema está em como a lei é implementada. “Precisa de um governo que realmente queira priorizar a implementação e fiscalização, que coloca recurso para isso e que corra atrás de formalizar e de fazer um sistema fácil de usar, de penalizar empregador que não respeita direitos”, indica. Para a pesquisadora, um dos obstáculos para a implementação da Lei nº 150 também passou pelo momento político na época, com o impeachment de Dilma Rousseff, e com a posterior Reforma Administrativa. 

 

Nair Jane resume a legislação brasileira sobre o trabalho doméstico: “É uma colcha de retalhos”. Para a trabalhadora, fica o questionamento: “O Brasil assinou [a Convenção 189 da OIT], mas cadê a prática?”. Ela afirma que a luta não acaba por essa razão: “Cada hora a gente pensa que vamos usufruir dos ganhos, mas tem que continuar lutando para fazer valer esses ganhos e não vê-los escoar ralo abaixo”.

A sindicalização como ferramenta emancipatória

Ernestina Pereira, 65, é remanescente do Quilombo do Algodão, que fica em Pelotas, no Rio Grande do Sul. Quando tinha 13 anos, começou a trabalhar com sua mãe: ela buscava trouxas de roupas e lavava para outras pessoas. Aos 14, ela assumiu uma casa de família em que passou a fazer todo o trabalho doméstico, entre cozinhar, limpar e cuidar dos netos da patroa. Foi só com a mudança do interior para a cidade que Ernestina conseguiu estudar. Na comunidade em que morava, o racismo impedia que crianças negras pudessem ir à escola. “A dívida da sociedade é muito grande com as mulheres negras. Quando eu penso na questão da educação e penso em mim – eu não gosto de ser egoísta, mas eu sou exemplo disso – os meus parentes brancos foram pra escola e estudaram, e os meus parentes negros, a maioria não foi”, relembra.

 

Foi por meio da religião, com o envolvimento em comunidades de base e na atuação como agente pastoral negra, que Ernestina descobriu o sindicato. “Quando eu tomei consciência da minha negritude, eu entrei pra Associação das Empregadas Domésticas”. A entidade foi transformada em Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Pelotas em janeiro de 1987, após Ernestina participar do Congresso Nacional das Trabalhadoras Domésticas e conhecer duas lideranças negras da categoria: Laudelina Campos Melo, que fundou o primeiro sindicato das domésticas, e Benedita da Silva, liderança política que já atuou como trabalhadora doméstica. “Eu me senti bastante provocada e incentivada a fazer minha parte”, diz. Para Ernestina, o trabalho desenvolvido no sindicato é fundamental: “É que nem um posto de gasolina: os carros se abastecem de gasolina e a trabalhadora se abastece de informação e de empoderamento, e também passa informação da situação que ela vive”, explica. Aposentada por questões de saúde, Ernestina atende no sindicato três vezes por semana, em que recebe trabalhadoras em busca de informação e combate situações de desrespeito aos direitos delas. 

 

Ernestina também concorreu a deputada federal em 1990 pelo Partido dos Trabalhadores (PT), e a vereadora da cidade de Pelotas em 1992 e em 2000. Não se elegeu mas, para ela, concorrer a um cargo político era uma forma de marcar posição. “Era para questionar a sociedade. Com a preparação da Campanha da Fraternidade em 1997, que celebrava cem anos da abolição e teve um grande movimento de consciência negra, eu tomei consciência da minha negritude e vi que teria que assumir também a questão de raça e classe”, relata. Para Ernestina, a categoria não deve sentir-se inferior: “Nós temos que valorizar a profissão que temos e cobrar respeito por este trabalho que fizemos. A trabalhadora doméstica e a sociedade em geral tem que reconhecer. A trabalhadora doméstica é um ser humano que merece o mesmo respeito que qualquer outra pessoa precisa”, reitera.

 

Nair Jane de Castro Lima também conheceu a militância por meio da religião. Quando tinha 37 anos, após quase 30 anos no trabalho doméstico, ela participava de encontros supletivos em uma escola no Rio de Janeiro em que a igreja atuava. “Lá a gente também tinha essas aulas sobre direitos e sobre deveres. Aprendemos o seguinte: direitos implicam deveres. E tem que saber quais são. E foi nesse período que eu descobri que existia uma associação de empregadas domésticas”, relembra. Depois, Nair Jane se tornou presidenta da Associação Profissional dos Trabalhadores Domésticos no Rio de Janeiro. Segundo ela, a responsabilidade era triplicada: além do trabalho na casa dos patrões, tinha o trabalho na associação e a formação de projetos para conscientização de outras trabalhadoras. “Esse foi um período muito importante para a conscientização da gente, de ter os mesmos direitos e de que precisávamos nos considerar trabalhadoras. Os patrões diziam que o nosso trabalho não dava lucro. E aí eu dizia para a minha patroa: como é que a senhora pode ir para o seu escritório? Como é que a senhora pode viajar? Como é que a senhora pode ter uma comida gostosa?”, descreve Nair Jane. Ela relembra que descobriu a importância de se afirmar enquanto trabalhadora. “Nós somos trabalhadoras e temos que provar que nós produzimos sim. Nós produzimos a riqueza: crianças que a gente educa, a alimentação sadia, a casa limpa, o telefone com todos os recados anotados. Podem me dizer o que quiserem, como quiserem, eu vou sempre afirmar: trabalho doméstico produz riqueza, trabalho doméstico produz saúde, trabalho doméstico produz educação”, evidencia. Nair Jane está afastada do sindicato há dois anos por conta da pandemia, mas ainda participa de reuniões online e, com o arrefecimento da contaminação da doença, de vez em quando vai até o sindicato para conversar e participar de alguma reunião.

 

Para Jurema Brites, a sindicalização não beneficia somente as trabalhadoras sindicalizadas, mas todas as mulheres do Brasil. “Nas conquistas de direitos, elas foram decisivas. A partir das parcerias, primeiro com a igreja católica nos anos 1970 e 1980, depois, na década de 1990, começa uma aliança com as feministas e com ONGs que conseguiam trabalhar diretamente com os parlamentares. Elas iam para o parlamento pressionar para votar. A PEC foi aprovada por isso. Na centésima reunião da Organização Internacional do Trabalho, as trabalhadoras brasileiras foram decisivas”, afirma. A importância do sindicato também está nas nuances das relações de trabalho: “Ter um sindicato que te defenda, ter um lugar para chegar e falar de abuso, é um lugar que pode denunciar trabalho escravo. Às vezes a mulher chega lá despedaçada e é atendida na questão emocional e na questão trabalhista. A sindicalização é muito importante, mas é bem difícil conquistar essa categoria para a sindicalização”, sustenta Jurema.

 

Na pandemia, o trabalho do sindicato foi fundamental, entre promoção de lives e formações online, a categoria conseguiu uma visibilidade grande, principalmente por meio das redes sociais da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). Além disso, elas atuaram no enfrentamento da Covid-19, com distribuição de álcool em gel, confecção de máscaras e distribuição de cestas básicas, uma vez que o desemprego na área cresceu. De acordo com levantamento da Pnad Contínua de 2020, cerca de 1,5 milhão de trabalhadoras domésticas perderam seu emprego no período.

Para saber mais:

Rithal: Red de Investigación sobre Trabajo del Hogar en América Latina (Rede de Investigação sobre Trabalho Doméstico na América Latina, em português), é uma rede de pesquisadores que nasceu em 2017 por meio de uma lista de e-mails. O objetivo é a criação e estabelecimento de espaços de diálogo sobre a temática do trabalho doméstico nos países da América Latina. A rede tem a integração de trabalhadoras domésticas e pesquisadoras como uma metodologia de trabalho. Atualmente a rede conta com 125 participantes. Em março de 2021, aconteceu o 1º Congresso da Rithal, sediado na UFSM  em formato online.


Podcast Nossos passos vêm de longe: Desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Políticas da Intimidade e pelo Laboratório de Experimentação em Jornalismo (LEX) da UFSM, com apoio da ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, o podcast conta as histórias de trabalhadoras domésticas do Brasil. O primeiro episódio já está disponível aqui.

Expediente: 

Reportagem: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;

Design gráfico: Cristielle Luise, acadêmica de Desenho Industrial e bolsista;

Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Ludmilla Naiva, acadêmica de Relações Públicas e bolsista; Ana Carolina Cipriani, acadêmica de Produção Editorial e bolsista; Alice dos Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária; e  Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário;

Relações Públicas: Carla Isa Costa;

Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;

Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.

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