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Dependência, questão agrária e globalização: interpretações econômico-políticas e jurídicas da estrangeirização da terra no Brasil

Aluno: Igor Mendes Bueno

igormendesbueno@outlook.com.br

Orientadora: Profa. Dra. Maria Beatriz Oliveira da Silva

 

Desde alguns anos tem se intensificado o debate na mídia sobre uma questão juridicamente bastante controversa: trata-se da possibilidade de venda de terras brasileiras para pessoas física e jurídicas estrangeiras ou das limitações quantitativa para esse tipo de aquisições. Em meados de 2017 diversos veículos de imprensa noticiaram as intenções do então governo de Michel Temer em liberalizar no País essas aquisições sem limitações de área. Essas notícias reascenderam de pronto o debate sobre a chamada “estrangeirização da terra” no Brasil, como é chamado o processo de transferência de grandes áreas do capital nacional ao capital estrangeiro.

Muito embora tenha retornado à pauta dos noticiários e do debate nacional, este não se trata de um tema propriamente novo em nosso cenário jurídico e político, tampouco no meio acadêmico ou ainda entre as pautas de debates tanto de entidades representativas das classes ruralistas como também de movimentos sociais e populares. Ainda entre as décadas de 1960 e 1970, no cenário da ditadura civil-militar, surgiram as primeiras grandes polêmicas e também os primeiros marcos legais sobre a matéria, que passaram a regular e limitar a aquisição de imóveis rurais por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras. Anos mais tarde, já contexto da redemocratização, a questão foi retomada, na esfera jurídica, pela Constituição da República de 1988, em dispositivo que prevê a regulação da matéria em lei, determinando a limitação da venda e arrendamento de terras para pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras. Desde os anos 1990, entretanto, com a chegada do neoliberalismo no Brasil, o tema da possibilidade de aquisição de terras por estrangeiros e da flexibilização das normas que regulam a matéria tem sido foco de intensos debates e disputas na esfera institucional, contando com interpretações variadas de órgãos administrativos, e também de pressões de diversos atores sociais das esferas pública e privada. Tais disputas tem se intensificado nos últimos anos, o que é também evidenciado pela propositura de diversos projetos de lei que tramitam conjuntamente no Congresso Nacional, a maioria no sentido da flexibilização das normas sobre a matéria.

Assim, o “manto” oferecido pelo direito recobre importantes disputas que transcendem ao campo jurídico, estritamente. Se, de um lado, os princípios da liberdade econômica e do mercado se colocam como um fator para a defesa da flexibilização da venda de terras, de outro lado existem também diversas críticas de ativistas e pesquisadores das áreas socioambiental e econômica, em vista de possíveis impactos sobre a soberania nacional, a proteção de fronteiras, a ameaça a gestão estratégica da biodiversidade nacional, a pressão sobre camponeses e povos originários, os impactos sobre a dinâmica do preço de terras e sua concentração, e a perpetuação da desigualdade social no campo.

Dessa forma, se pode desconsiderar a questão em sua relação com todo o histórico da chamada “questão agrária” brasileira, entendida também como um componente estrutural de máxima importância no contexto de uma economia periférica, marcada pelas condições de subdesenvolvimento e da “dependência”, como já apontaram diversos intérpretes da realidade brasileira e latino-americana. Ademais, a questão ainda toma grande relevância se considerada no atual cenário da globalização nos moldes neoliberais. Nesse sentido, merecem destaque os recentes estudos que relacionam esse processo de estrangeirização de terras no Brasil com o fenômeno que tem sido denominado land grabbing, ou, em português, “corrida mundial por terras”. Trata-se de um fenômeno que tem se intensificado, sobretudo após a crise econômica global iniciada em 2008, a que muitos pesquisadores associam a novas formas de manifestação do imperialismo.

Conforme apontam as pesquisas recentes, os países subdesenvolvidos, como é o caso do Brasil, tem sido os principais alvos de uma verdadeira corrida global por terras em razão de suas riquezas naturais abundantes, das vastas extensões territoriais e terras agricultáveis. Tais fenômenos, como têm indicado alguns autores, se colocam como uma nova formatação da acumulação capitalista nos moldes imperialistas. Portanto, para se compreender esse quadro de debates e disputas em torno da estrangeirização da terra no Brasil – da qual o debate sobre a flexibilização das normas legais em relação ao tema é um de seus aspectos cruciais –, não pode perder de vista tanto as condicionantes estruturais de conformação da nossa questão agrária, bem como de seus atuais aspectos no cenário da globalização neoliberal e seus efeitos sobre uma economia periférica dependente, como a brasileira.

Assim, esse trabalho objetiva exatamente compreender como o atual processo de estrangeirização de terras no Brasil – consubstanciado juridicamente na tendência à flexibilização dos marcos normativos acerca da aquisição de terras por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras – se relaciona com a nova fase da dependência e a questão agrária na América Latina e, mais especificamente no País, no cenário da globalização neoliberal.

Mas o que seria essa “dependência”? Um olhar mais atento sobre o desenvolvimento do capitalismo ao longo da história evidencia que sua dinâmica global de funcionamento estrutura uma rede de relações profundamente desiguais entre as nações: enquanto algumas despontam na liderança do processo global de acumulação, sustentadas numa maior difusão e desenvolvimento do progresso técnico (centro), outras se mantêm numa condição de subordinação, tendo seu desenvolvimento condicionado pelo desenvolvimento das primeiras (periferia). Essas relações desiguais se fundam e, ao mesmo tempo, se reproduzem em função do papel cumprido por cada uma no processo de acumulação e reprodução do capital em nível global. Enquanto às economias centrais cumpre o papel primordial de produção de bens de alto valor agregado e de exportação de capitais, as economias periféricas são em geral relegadas à produção e exportação de bens primários e de baixo valor para a sustentação das primeiras. Tais são os contornos mais básicos que definem a condição de dependência dos países periféricos e que os condicionam à situação de subdesenvolvimento.

Nesse trabalho sustentamos que a condição de dependência é uma constante histórica em economias como o Brasil, de maneira que as formas pelas quais a dependência se manifesta se alteram com o passar do tempo, mas suas características fundamentais permanecem. Desde a era colonial, a exploração das colônias (que seriam as futuras “nações periféricas”) estaria fundada na expropriação, na concentração e na exploração da terra e dos recursos a ela associados. A apropriação da terra seria, portanto, fundamental para a gestação e a consolidação do capitalismo e a conformação de sua dinâmica global de funcionamento. Mais além, esses processos de exploração baseados na extração das riquezas da terra se tornariam uma constante na história das economias periféricas, tudo em função do seu papel na divisão internacional do trabalho. Da era da exploração colonial até os dias atuais, portanto, terra e trabalho são elementos centrais para a exploração das nações periféricas.

A exploração agromercantil voltada para o abastecimento dos mercados externos atravessa de lado a lado a história das “periferias”, e em específico da América Latina. Essa condição de exploração da periferia, baseada na expropriação e concentração da terra e na consequente liberação de um grande volume de força de trabalho, impedida de ter acesso a ela senão pela proletarização, está no núcleo daquilo que se chama de “questão agrária”. Em decorrência disso, massas de populações trabalhadoras do campo, camponeses, povos originários são despojados de seu território, no mais das vezes de forma brutal, submetidos a toda sorte de violências, e condicionados à venda de sua força de trabalho em condições de superexploração e de miserabilidade.

Por trás de todos esses processos se encontra, enfim, a busca pela apropriação das rendas fundiárias; ou seja, da parcela do valor extraído e fundado exclusivamente na propriedade privada da terra, sob as mais diversas formas. O desenrolar histórico da questão agrária na periferia também narra a história do desenvolvimento do capitalismo e de sua penetração sobre o campo no intuito de extrair as riquezas e valores fundados na propriedade da terra. Numa breve expressão: a história da questão agrária é a história da perseguição e da distribuição das rendas fundiárias pelo capital.

Com esse estudo, afirmamos que a terra continua sendo um elemento-chave para a compreensão da dinâmica capitalista contemporânea. Na nova fase da dependência, que se apresenta no bojo da crise estrutural do capitalismo e do processo de globalização nos moldes neoliberais, os países periféricos passam por um processo de “reversão neocolonial”. A desindustrialização e a reprimarização dessas economias periféricas, das quais o Brasil é um claro exemplo, se colocam nesse contexto como elementos centrais do restabelecimento de antigas amarras de dependência, que remontam ao período das economias baseadas na agromineração. Como consequência, as riquezas e valores extraídos da terra acentuam sua importância para a dinâmica da acumulação global do capital.

É diante desse cenário que o capital mundializado, financeirizado e em crise estrutural promove atualmente uma nova ofensiva em nível global sobre as terras e os recursos naturais a ela associados nos países periféricos (o processo que é chamado de land grabbing ou “corrida mundial por terras”). Essa ofensiva é, enfim, um novo ingrediente que se soma ao contexto da nova dependência e que, ao mesmo tempo, faz relembrar os antigos vínculos colonialistas. Mais uma vez, portanto, a terra se apresenta como um elemento fundamental para a acumulação capitalista: se lá, na era colonial, a terra e a estrutura agrária montada na periferia contribuíram para a própria gestação da sociedade burguesa, hoje esse “novo colonialismo” em curso e o avanço do capital mundializado sobre a propriedade fundiária se constituem como alguns dos elementos que garantem sua reprodução (senão mesmo sua sobrevida) em um cenário de crise.

Mas, para tanto, o capital precisa de plena liberdade para avançar sobre o espaço territorial dos Estados nacionais. Ele precisa de mecanismos e de uma “infraestrutura” de normas capaz de permitir, senão mesmo instigar, a sua penetração. O mecanismo fundamental nesse sentido é o neoliberalismo, como doutrina político-econômica que, sob o signo das flexibilizações, desregulamentações e das aberturas comerciais, e da privatização de tudo quanto puder ser privatizado, tem como fim último a abertura de novas fronteiras e espaços à acumulação e reprodução do capital, antes impedidos pelos monopólios ou pela ação/intervenção estatal.

Especificamente quanto à questão da propriedade da terra e sua estrangeirização, nos parece claro o sentido dado pelo avanço do neoliberalismo no País. Desde a sua chegada, a legislação que regula a matéria tem sofrido fortes investidas no sentido da flexibilização quase que total das normas que restringem a aquisição de parcelas do território nacional pelo capital estrangeiro. A se concretizarem as perspectivas sob a nova ofensiva neoliberal vivida no atual contexto político, consideraremos enfim construídos os alicerces básicos da “infraestrutura” necessária para que o capital estrangeiro avance livremente sobre o território nacional. Com isso, se fortalece e se consolida um verdadeiro modelo de subdesenvolvimento, baseado na agroexportação e no modelo do agronegócio, mas que ao mesmo tempo constitui novas e importantes amarras da dependência externa. Assim, não só se perpetuam, mas também se aprofundam os aspectos centrais de uma questão agrária jamais resolvida, marcada pela expropriação, pela exclusão, pela opressão e pela violência.