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JUSTIÇA GLOBAL E EPIDEMIA HIV/AIDS: DOS LIMITES DA CAPACIDADE ESTATAL DE VIABILIZAR O ACESSO A MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS FARMACÊUTICAS

Lucas Silva de Souza – adv.lucasdesouza@gmail.com

Injustiças sanitárias, como a desigual propagação da epidemia de HIV/AIDS entre o norte e o sul social,  espelham  o caráter dual  do direito internacional que de um lado promove a universalização e proteção global dos direitos humanos, fornecendo ferramentas jurídicas para que os estados os tornem efetivos, mas do outro propulsiona a violação desses mesmos direitos, ao tutelar determinados preceitos liberais.

Com a prevalência dos atores hegemônicos  na governança global, passam a ser adotadas soluções homogêneas pelas instituições internacionais com o intuito de resguardar seus interesses. Consequentemente, são potencializadas as desigualdades, tal como se verificou com a padronização  global do regime de propriedade intelectual pelo acordo TRIPs que, com o intuito de resguardar os interesses das empresas inovadoras, dentre elas a do setor de fármacos, não levou em consideração o desenvolvimento global desigual e as preocupações sanitárias  das populações do sul social.

Desse modo, no que tange a relação entre direitos humanos e empresas, o direito internacional  possui um papel  criador de justiça e/ou injustiças, pois, do mesmo modo que esse direito pode auxiliar na construção da capacidade dos Estados de agir internamente no combate a práticas empresariais abusivas, ele pode potencializar injustiças, ao  ignorar a realidade material das comunidades locais em que ele incidirá em prol de interesses meramente econômicos.

Ante a esse caráter paradoxal inerente ao direito internacional, emerge a seguinte problemática: como equilibrar os interesses das empresas inovadoras na produção de fármacos com o das populações dos países periféricos, no pós TRIPs? Para enfrentá-la,  a dissertação  foi dividida em  duas partes, na primeira, almejou-se averiguar quais as causas institucionais do acesso desigual aos medicamentos anti-HIV/AIDS entre o norte e o sul sociais, na segunda parte, investigou-se  os  limites e possibilidades da responsabilização social das empresas farmacêuticas transnacionais por essa desigualdade.

Na primeira parte do trabalho, foram investigadas as estruturas institucionais responsáveis pelo aprofundamento de injustiças sanitárias a nível global  e o seu diálogo com o âmbito doméstico. Para tanto, investigou-se os limites das tentativas do Brasil e Índia de  conciliar os seus interesses locais com a padronização global do regime de propriedade intelectual realizada pelo TRIPs. Nesse momento, entendeu-se que, a despeito do reconhecimento mundial do programa brasileiro de combate ao HIV/AIDS, não podem ser obscurecidos os grandes desafios que obstaculizam a sua sustentabilidade.  Do mesmo modo, a Índia, considerada a “farmácia do sul global”, apresenta grandes desafios  para a manutenção de  sua solidez e independência na produção de fármacos necessários tanto para a saúde de sua população, como a  de outros países periféricos desprovidos dos recursos técnicos e econômicos necessários para produzi-los.

Na segunda parte do trabalho, com o objetivo de investigar os  limites e possibilidades da responsabilização social das empresas farmacêuticas pelo desigual acesso a medicamentos essenciais, de início, refletiu-se acerca dos fatores que propulsionam a irresponsabilização desses atores privados. Visou-se, assim, realizar uma análise crítica do ideário que considera a única responsabilidade das empresas a de gerar lucro e torna  o setor público  o único responsável pela resolução dos problemas sanitários, ainda que,  no contexto atual,  o papel do estado soberano seja, cada vez mais, relativizado face a multiplicação das fontes, das normas, dos operadores e dos utilizadores do direito internacional contemporâneo.

Posteriormente, foram investigadas as medidas tomadas pela comunidade internacional em prol do acesso a medicamentos essenciais e  do combate ao HIV/AIDS.  Concluiu-se que essas iniciativas,  fundadas no uso intensivo da soft law , foram insuficientes para a contraposição da hard law dos instrumentos protetivos da propriedade intelectual. Por não promoverem a conciliação entre os interesses econômicos e a responsabilidade social dos atores privados, essas medidas mantiveram o ambiente de negócios e o sistema global de governança da saúde adequado às necessidades do capital transnacional, mas desvantajoso para os países periféricos.

Destarte, aos moldes atuais, as  instituições globais promovem injustiça e não justiça, urge-se, portanto, do incentivo de boas práticas e  ações empresarias, o que torna premente a urgência de se refletir acerca do papel do direito internacional na responsabilização das ETNs farmacêuticas como forma de se contrapor ao recrudescimento exacerbado decorrente do monopólio patentário  resguardado pelo acordo TRIPs. Partindo dessa premissa, defendeu-se, com fulcro nas estudos dos pesquisadores da RSE, a  combinação de esforços públicos e privados para alcançar objetivos claros e compartilhados em prol do direito humano à saúde e se investigou o Fundo de  impacto na saúde de  Thomas Pogge, como uma possível forma de conciliar os interesses empresariais com a RSE.

Face as investigações realizadas, tornou-se evidente que, para a transformação sistêmica da governança global da saúde e a redução da desigualdade no acesso a medicamentos essenciais, dentre eles os ARVs, são necessárias reformas estruturais. Isto posto, novas propostas institucionais, como a idealizada por Pogge, apesar de vulneráveis a críticas, tem a capacidade de promover  a reflexão acerca do potencial transformador do direito. Nesse sentido, elas consistem em um primeiro passo para  se reconhecer que, cada setor da sociedade e cada indivíduo com potencial para promover a saúde global  detém um papel importante e uma responsabilidade social.

Isto posto, para que sejam alcançados os maiores e mais equitativos padrões de melhora na saúde resguardados pela tutela internacional do  direito humanos,  é necessário repensar as instituições globais, de modo a unir um pluralismo de atores em prol da redução de injustiças e do combate de  ameaças sanitárias globais como a epidemia HIV/AIDS. Caso mantida a estrutura jurídico-institucional atual, a proteção efetiva do direito à saúde,  dificilmente será atingida, pois, para que os agentes jurídicos e políticos domésticos sejam capazes de cumprir com as suas obrigações jurídicas internacionais relacionadas ao direito humano à saúde é necessário que não sejam ignoradas as responsabilidades sociais das empresas farmacêuticas.

Por fim, conclui-se que, em relação as crises sanitárias globais, o grande questionamento não é quanto a  necessidade de se  modificar as leis e instituições para enfrenta-las, mas acerca de qual combinação de reformas aliviaria os problemas delas decorrentes de maneira mais justa e eficiente, por meio da colaboração entre os setores público e privado do mundo, operacionalizada por meio de  agências internacionais (como na proposta de Pogge), fundações,  organizações sem fins lucrativos ou, até mesmo, pessoas físicas.

A junção de esforços públicos e privados, com o intuito de alcançar objetivos claros e compartilhados em prol do direito humano à saúde, fornece uma força poderosa que excede a soma de seus esforços separados. Assim sendo,  para a redução das desigualdades globais, deve-se ter em mente que, do mesmo modo  que mercado não pode resolver todos os problemas sociais, o setor público não deve ser visto como a  única  resposta. Como bem destaca Koskenniemi [1], ninguém deve “ter a última palavra – em termos absolutos do antigo debate. Ao invés disso, deve-se escolher vocabulários, e instituições alternativas, com um olhar aguçado sobre os efeitos previsíveis que isso terá nos jogos globais de poder no século XXI.”[2]

O caminho para a reestruturação institucional e a criação dos novos vocabulários necessários para a resolução dos problemas relacionados à governança global sanitária, especialmente a desigualdade no acesso à medicamentos essenciais, ainda é obscuro e carece para sua construção de uma atuação conjunta entre Estados, ONGs, instituições e corporações transnacionais. Nussbaum[3], no entanto, destaca uma verdade inconteste: “reis não tem pena dos sujeitos porque eles pensam que nunca serão reduzidos a meros sujeitos. Porém isso é um estratagema frágil, falso e autodestrutivo. Todos nascem nus e pobres, sujeitos a doenças e infortúnios de quaisquer tipos e, finalmente, condenados à morte.[4]” Ante a  essas misérias comuns, os “reis” da atualidade que dominam os “feudos” formados pelas redes que conectam os diversos atores que lideram as políticas sanitárias globais deveriam se desvencilhar da falaciosa premissa de que a produção de riqueza é um fim por si só e o desenvolvimento econômico, ainda que desigual, sinônimo de justiça.

 

 

[1] KOSKENNIEMI, Martti. The Function of Law in the International Community: 75 Years After. In: British Yearbook of International Law, p. 355-366, 2009. Disponível em: <https://academic.oup.com/bybil/article/79/1/353/498979> Acesso em: 20 dez. 2019, p.366.

[2] We know now that neither lawyers nor diplomats should be bosses—should have the final say—in the absolute terms of the old debate. Instead, we should choose the available vocabularies, and institutional alternatives, with a keen eye on the foreseeable effects that this will have in the global games of power in the 21st century.(KOSKENNIEMI, 2009, p. 366)

[3] NUSSBAUM, Martha. For love of country? Boston: Beacon Press, 2002, p. 132.

[4] Kings don’t pity subjects because they think they never will be subjects. But this is a fragile strategem, both false and self-deceptive.1 We are all born naked and poor; we are all subject to disease and misery of all kinds; finally, we are all condemned to death. (NUSSBAUM, 2002, p.132)