A Reforma Psiquiátrica Brasileira mudou a forma de compreender os pacientes de clínicas psiquiátricas, que se encontravam em uma perspectiva excludente. Desde a década de 1970, as mudanças de concepção sobre pacientes psiquiátricos e tratamentos foram a porta de entrada para novas possibilidades de atuação no âmbito da saúde mental. Dentre essas novas dinâmicas metodológicas, existe a musicoterapia.
Uma das referências nacionais em atuação com a música na terapia psiquiátrica se localiza no bairro Gamboa, zona portuária de Rio de Janeiro. Em 1998, no Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro (CPRJ), foi oferecida aos pacientes uma oficina chamada “Convivendo com a música”. A partir de então, alguns pacientes sentiram a necessidade de ampliar sua relação com a arte e começaram a compor.
Formou-se o grupo Harmonia Enlouquece, que teve sua estreia em 7 de abril de 2001, no “Dia Mundial da Saúde”. O grupo retrata uma realidade dos pacientes de clínicas psiquiátricas, e suas músicas servem como reflexo de um contexto estigmatizado e pouco explorado. Essa iniciativa propiciou uma expressão artística que resultou em uma metamorfose paciente-músico.
“Estou vivendo
No mundo do hospital
Tomando remédios
De psiquiatria mental
Haldol, Diazepam
Rohypnol, Prometazina
Meu médico não sabe
Como me tornar
Um cara normal”
Trecho de “Sufoco da Vida” – Harmonia Enlouquece
Desde o início das atividades do Harmonia Enlouquece, já passaram pelo grupo mais de 42 pacientes, muitos dos quais não mais integram o conjunto, mas em algum momento precisaram do espaço em suas vidas. Para alguns deles, os resultados do processo terapêutico e artístico apareceram também na redução do número de internações e na melhora na adesão ao tratamento.
A musicoterapia tem sido adotada como parte do tratamento psiquiátrico em diferentes regiões do país. Para nos contar um pouco mais sobre a dinâmica terapêutica, entrevistamos o psicólogo Vinicius Geissler, formado pelo Centro Universitário Franciscano de Santa Maria e coaching graduado pela Sociedade Latino Americana de Coaching. Semelhante ao trabalho desenvolvido no CPRJ, Geissler vê na musicoterapia um grande potencial de integração e fomento às habilidades musicais e artísticas de pacientes em tratamento.
Como funciona a musicoterapia?
A musicoterapia é a técnica que utiliza os elementos musicais com fins de promoção de saúde. A utilização dos elementos musicais – som, ritmo, melodia e harmonia – para a reabilitação física, mental e social é o foco do trabalho do musicoterapeuta. Ele pode ser oferecido de forma individual ou para grupos. O emprego de instrumentos musicais, canto e ruídos são ferramentas comuns e muito utilizadas no tratamento de pessoas com distúrbios da fala e audição, ou deficiência mental. O trabalho também pode ser aplicado em estudantes que buscam maior aproveitamento, e no trabalho com dependentes químicos e menores infratores. O trabalho pode ser exercido em diversos ambientes, tanto em hospitais quanto com equipes esportivas, empresas e escolas.
“Em uma cultura cada vez mais isolacionista, descobrir como a pessoa se expressa é primordial para aliviar a ansiedade do paciente”.
Como você começou a trabalhar com musicoterapia?
Desde meu primeiro trabalho com atletas de voleibol, na Associação Voleibol Futuro, me valho da influência que a música exerce sobre as pessoas. Em dias de jogos, era comum as atletas reunirem-se para se concentrar para o confronto escutando música, cantando junto e dando risada. Essa técnica é amplamente apoiada na redução da ansiedade antes de eventos críticos. A música sempre esteve presente no meu trabalho oferecendo o seu caráter terapêutico aos pacientes.
Qual a sua experiência com musicoterapia?
Não fosse a música, eu não teria me graduado como psicólogo, não teria aprendido a tocar violão, nem a falar inglês, e isso me levou a escrever contos e livros. Eu inicio a resposta desta forma porque, sem testar na gente, o método fica pela metade. Com a minha experiência de vida, sinto-me à vontade para dialogar com os pacientes sobre sua maneira de expressar a criatividade. Eles tocam instrumentos? Tem vontade de aprender mais? Escrevem poemas, poesias, canções, histórias? Relaxam escutando música, ou preferem o silêncio? Em uma cultura cada vez mais isolacionista, descobrir como a pessoa se expressa é primordial para aliviar a ansiedade do paciente que busca o serviço.
Como foi realizado o teu trabalho com o DTG Noel Guarany?
Apresentei, em abril de 2015, junto com o Marcelo Dias, treinador das equipes de voleibol da UFSM, um workshop sobre a prática da Psicologia no voleibol na semana acadêmica do curso de Educação Física da UFSM. Um dos integrantes do DTG Noel Guarany da UFSM estava no público e entrou em contato comigo após o evento. Uma semana depois, eu iniciei a consultoria com a equipe de dança.
Como ocorreu o exercício da musicoterapia nestas atividades?
Os exercícios oferecidos visavam à dança castanhola, em que o casal não se toca durante sua execução. O desafio era estabelecer uma maior intimidade e confiança entre as duplas, assim montei, em conjunto com os responsáveis do DTG, uma sequência de dinâmicas em que os integrantes deveriam conduzir uns aos outros sem se tocar, apenas com o olhar e a própria respiração como auxiliares. Em alguns exercícios a canção a ser apresentada era a trilha sonora, em outros o silêncio total indicava a atmosfera do trabalho. E, mesmo sendo exigidos a todo o momento, os integrantes apoiaram a execução do trabalho.
Qual a dinâmica da prática musicoterápica num ambiente tradicionalista, com a música nativista?
O ambiente tradicionalista visto à distância talvez aparente a necessidade de rigidez e de respeito à cultura. Tudo muito diferente do que ocorreu no trabalho feito no DTG Noel Guarany. Mesmo com a temática do local, que exige concentração e respeito, todos os envolvidos aderiram ao trabalho, mesmo os mais distantes.Como gosto de parceiros de trabalho, a todo momento convidava os integrantes para assumir a regência do exercício. Contei com a ajuda de uma aluna do curso de Dança, integrante do DTG, que foi de extrema importância. O seu conhecimento aliado à intimidade do convívio estabelecida com os colegas acelerou o processo de absorção do que foi trabalhado.
“A arte sempre será auxiliar na reabilitação emocional do paciente, porque oferece canais muito mais suaves para a expressão do sujeito que se encontra em desequilíbrio”.
Você está envolvido em algum projeto atualmente?
Hoje meu envolvimento com a prática pode ser ilustrado no trabalho que exerço com as equipes masculinas de futsal e voleibol da UFSM. As dinâmicas de grupo trabalhadas foram todas criadas a partir dos princípios de ritmo como fator socializador, oportunizando canais de expressão para os atletas, que, muitas vezes, durante os jogos, não dispõem do tempo necessário para um diálogo reorganizador da tática proposta. Na prática clínica, utilizo seguidamente a relação do paciente com a música como uma ferramenta de auxílio. Sou muito interessado no potencial criativo dos meus pacientes, e confio na música como um forte canal para estimular suas qualidades.
Como esse método fez parte da Reforma Psiquiátrica Brasileira?
Hoje em dia é comum encontrar nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) projetos que acolhem sujeitos através da música, com oficinas de instrumentos, de técnicas vocais, ou com o caráter de socialização e criação coletiva. Aos poucos as antigas práticas chocantes nos hospitais psiquiátricos vão ficando no passado e práticas como a da musicoterapia avançam. As artes de forma geral sempre serão auxiliares na reabilitação emocional do paciente, uma vez que são canais muito mais suaves para a expressão do sujeito que se encontra em desequilíbrio do que empanturrá-lo de remédios ou excluí-lo da sociedade.
Esse método terapêutico é estudado na faculdade, ou em cursos de especialização?
Na minha graduação o tema foi pouco abordado, porém as poucas aulas que tive foram marcantes e essa ferramenta sempre foi mais indicada para trabalhos em grupos. Para quem estiver interessado em fazer algum dos inúmeros cursos de Musicoterapia oferecidos no país, pode acessar ao site: http://www.musicoterapia.mus.br/ondeestudar.php .
Como se dá essa relação de transformação do paciente através da música?
O poder de transformação do sujeito está sempre ativo e pronto para florescer, uma vez que a musicoterapia busca a comunicação com o “músico” dentro de cada um, seja ele apenas um simpatizante da música, ou um músico com um gênio das composições elaboradas e poéticas dentro de si. O que realmente importa é o potencial criativo do sujeito e as oportunidades de se manifestar.
Todos podemos ser músicos e usuários da musicoterapia ao mesmo tempo, não se trata de uma fórmula onde um exclui o outro, pelo contrário, a música sempre foi terapêutica. Ícones da cultura musical, como Kurt Cobain e Renato Russo, por exemplo, utilizaram suas famosas composições para aliviar seus sintomas de tristeza e expressar suas dúvidas sobre a vida e o amor. Sentimentos muito comuns para eu e você, não é mesmo? A diferença inicial é de que eles insistiram até a dor virar arte. E essa arte pode chegar até nós.
Quais são os principais beneficios da musicoterapia?
O ritmo musical tem total influência na vida do paciente e é um dos maiores benefícios oferecido pela musicoterapia, já que as pessoas normalmente possuem desordem nos ritmos de sono, alimentação, lazer e trabalho. A musicoterapia oferece uma saída para isto. O sujeito envolvido pode adquirir novas habilidades, como aprender a tocar um instrumento, desenvolver habilidades vocais, aprender novos estilos de dança. Com o passar do tempo, isto acabará por influenciar o sujeito, trazendo uma sólida relação com seus próprios ritmos. Lembrando também que a musicoterapia sempre será uma ferramenta auxiliar do terapeuta em busca da promoção de saúde mental e bem estar do paciente, tendo tanta eficácia e encontrando um desafio tão amplo quanto todas as outras técnicas oferecidas pela Psicologia e terapias em geral. O importante mesmo é que o paciente/grupo encontre o seu profissional/meio ideal para se entregar à experiência. Lembrando que o ditado “quem canta os males espanta” pode ser um bom exemplo do que a musicoterapia pode oferecer à sociedade.
Reportagem: Lenon Martins de Paula e Julia Nadine Schapowal
Fotografia de capa: Rafael Happke