Adelmo Genro Filho nasceu em São Borja. Quando ele tinha dois anos de idade, sua família se mudou para Santa Maria, onde ele teve seu primeiro contato com movimentos sociais, sendo líder estudantil de organizações clandestinas de resistência à ditadura militar, por exemplo. Adelmo formou-se em jornalismo pela UFSM em 1975 e trabalhou em jornais como A razão (Santa Maria), Seminário de Informação Política (Ijuí) e Jornal da Informação (Porto Alegre).
Em 1982, através de concurso público, Adelmo tornou-se docente do curso de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, local também onde cursou seu mestrado em Ciências Sociais, apresentando como dissertação um trabalho que resultou na publicação do seu livro “O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo”, sendo este até hoje uma das principais referências sobre teoria do jornalismo na América Latina. A morte prematura do pesquisador, em 1988, contribuiu para a consolidação de uma visão mítica sobre Adelmo, que está amplamente representada nas falas sobre o autor ditas por quem militou ou trabalhou com ele. As questões propostas por Adelmo no livro “O segredo da pirâmide”, também de 1988, permanecem bastante atuais para se pensar o momento que vive o jornalismo no país.
A revista Arco conversou com o professor de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Felipe Pontes, que escreveu o livro “Adelmo Genro Filho e a Teoria do Jornalismo” sobre a obra de Adelmo, sua formação política e intelectual e de que modo seu texto foi utilizado por pesquisadores do Jornalismo.
Felipe esteve em Santa Maria para lançar o livro na Feira do Livro de Santa Maria além de participar do lançamento do documentário “Um gesto que se fez: A luta e a obra de Adelmo Genro Filho”, produzido por um grupo de estudantes do 6º semestre de Jornalismo da UFSM na disciplina Documentário.
Essa é a primeira vez que ele vem à Santa Maria, mesmo que as descrições de lugares da cidade e as inúmeras entrevistas que fez para sua pesquisa de doutorado com pessoas que conviveram com Adelmo Genro Filho na época em que residia na cidade indiquem o contrário.
O que te motivou a pesquisar sobre Adelmo Genro Filho e as concepções teóricas dele?
Eu estava no doutorado de Sociologia Política da UFSC, que era o curso que o Adelmo tinha feito, e no qual tinha escrito a dissertação de “O Segredo da Pirâmide”. Meu tema de projeto era sobre as Teorias do Jornalismo. Eu tinha uma pergunta central: Por que o Jornalismo nos últimos 20 anos passou a defender a existência de Teorias do Jornalismo e a se defender como campo acadêmico específico? Era essa minha preocupação principal.
Depois fazendo uma revisão eu percebi que o projeto estava muito amplo e eu já vinha conversando com um professor da UFSC, chamado Francisco Karam, que foi meu professor no mestrado. Ele me disse: “Felipe, por que você não estuda o Adelmo?”. Eu já estava fazendo um grupo de estudos no mestrado sobre “O segredo da pirâmide”, já tinha sido convidado pelo pessoal do Diretório Estudantil de Jornalismo da UFSC para dar um curso sobre “O Segredo da Pirâmide” para eles. Então eu pensei: “Por que não o Adelmo?”.
Eu sempre tinha uma percepção de que eu não poderia mexer com o livro “O Segredo da Pirâmide”, com a história do Adelmo, uma vez que isso seria uma herança daqueles que viveram com o Adelmo. Eu tinha essa visão e achava que não tinha direito de entrar na História. Posteriormente, conversando com essas pessoas fui percebendo que a aura que construíram em torno do Adelmo era tão densa que as próprias pessoas não conseguiriam limpar essa aura para estudar de uma maneira tranquila, crítica, sem paixões, sem reminiscências, sem memória, estudar o livro como ele merecia academicamente. Então eu me incumbi da tarefa.
“Eu queria que as pessoas entendessem que a história do Adelmo precisa ser contada a partir do seu contexto de formação política e intelectual. Em nenhum momento ele negou a teoria marxista que ele coloca no subtítulo”.
O livro que você está lançando é a sua tese ou uma adaptação dela?
O livro é a tese. Até pediram para reduzir, e tirar um pouco do peso acadêmico dela. Mas é um texto que precisa ser acadêmico. Alguém precisa discutir o texto do Adelmo de maneira profunda e acadêmica. E se isso não vender editorialmente, não precisa publicar o livro. Mas eu não quero tirar nada. Até me fizeram a proposta de eu publicar somente o segundo capítulo, que é o capitulo biográfico sobre o Adelmo. Eu também neguei. Eu falei “se eu publicar o capítulo biográfico eu vou vender muito livrinho de 100 páginas e pouquíssimos livros de 250, 300 páginas, que é o restante da tese”.
Eu queria que as pessoas entendessem que, para estudar a história do “Segredo da pirâmide”, a história do Adelmo precisa ser contada a partir do seu contexto de formação política e intelectual. E para isso é necessário o sujeito entender o que é práxis, o que é dialética, o que é forma, o que é conteúdo, o que é conhecimento – que é a intenção do autor mesmo. Em nenhum momento ele negou a teoria marxista que ele coloca no subtítulo.
Essa relação com a práxis me parece fundamental para compreender a proposta de Adelmo…
O texto tinha um caráter prático muito direto. Ele queria responder uma demanda dos estudantes da UFSC que [o Adelmo] percebia – e que era uma demanda dos estudantes de Jornalismo de modo geral – : “Eu sou um sujeito de esquerda, tenho formação marxista, tenho uma formação consolidada. Mas a minha base teórica marxista diz que o Jornalismo não deveria existir. Que no socialismo o jornalismo deveria acabar ou que o Jornalismo é um tipo de mercadoria somente”. Por outro lado, um grupo dizendo: “Não, o marxismo não explica nada do Jornalismo. Você vai chegar na redação, vai passar quatro ou cinco meses sendo burilado por um jornalista mais velho e vai se tornar um jornalista da prática”.
Adelmo tinha que tentar resolver esse problema. Como pensar sujeitos que sejam críticos, que tenham uma formação marxista crítica e que vão entrar no mercado profissional e fazer Jornalismo a partir da notícia – que é aquilo que é mais raso, mais explorado. E é aquilo que os jornalistas menos consideram como forma de conhecimento, que os jornalistas menos veem potencial revolucionário.
O que ele tentou propor foi que não se podia abandonar a notícia diária porque é o produto jornalístico mais consumido, que mais chega para as pessoas. Existe um potencial revolucionário dentro da notícia. Se você faz uma notícia crítica, se você demonstra que a realidade é muito mais complexa, crítica e problemática do que aparenta, você consegue seguir todas as regras dos manuais de redação e fazer jornalismo de notícias, sem deixar de ser crítico e propor uma transformação da sociedade. A grande meta dele era essa.
Mas essa ainda é uma visão recorrente na academia, do valor transformador do texto longo em detrimento da notícia.
Tem um conjunto de pesquisadores que eu vejo dizendo “por que o Adelmo valoriza a notícia e não a reportagem? A reportagem gera muito mais conhecimento do que a notícia”. Mas a maioria dos jornalistas não trabalha com reportagem, trabalha com notícia. [E] a maioria das pessoas não leem reportagem, elas leem notícia. É com todas as pessoas que é possível transformar uma realidade, e não com meia dúzia de intelectuais. O jornalista precisa atuar onde as pessoas e como as pessoas leem.
O livro dele era um manual teórico. Tanto que ele discutia com o Daniel Hertz, que era o primo dele, que o passo seguinte, se ele fosse seguir no Jornalismo, seria fazer um manual prático – assim como o manual da Folha, o manual do Globo. Pegar exemplos práticos de notícias, demonstrar notícias excelentes, que [mostram] a contraditoriedade do real, fazendo um lead e sub lead, para que pudesse ser demonstrado na prática, com o manual, como reverter a pirâmide.
Você coloca que a maioria dos pesquisadores que defendem uma especificidade da pesquisa em Jornalismo são da região sul. Ao que você acha que se deve isso?
Eu tenho uma hipótese. Que teoria do jornalismo no Brasil é coisa de sulista e mais especificamente coisa de gaúcho. Há alguns dados que acabam me ajudando nessa hipótese, que tem tudo pra ser derrubada. Mas pegando quem cita o Adelmo “existe” (entre aspas) um certo bairrismo. Grande parte das pessoas que citam o Adelmo são da região sul. A maior parte dos pesquisadores que citam o Adelmo, na pesquisa que eu realizei com mais de 400 textos, são formados em Santa Maria ou pessoas que em algum momento passaram pela UFSC [onde ele trabalhava quando morreu]. É interessante tentar perceber quais são os desenhos de percurso desses sujeitos, mesmo que não possa se confirmar essa hipótese. Você vai percebendo que as pessoas que falam de Adelmo foram formados por sujeitos aqui do sul.
E como você avalia a repercussão do trabalho marxista de Adelmo na posterior formação dos estudos em Jornalismo no Brasil?
Boa parte das interpretações que vieram depois do Adelmo são interpretações que colocam a teoria do Jornalismo que ele propõe dentro de uma base construcionista. Há uma espécie de ajustamento do texto à uma base que se tornou hegemônica nos estudos de jornalismo, que é a base construcionista, e se faz uma adaptação mas não se discute conceitos. No jornalismo, como o texto do Adelmo é muito forte teoricamente, esse texto acabou sendo um artifício teórico-retórico-político. [É como se os pesquisadores dissessem:] “Eu digo que o jornalismo é uma forma de conhecimento porque justifica a academia, justifica a profissão, mas eu tiro a roupagem marxista porque ela não me serve mais”. E ai o texto do Adelmo se transforma em uma espécie de pedágio, vários autores citam o Adelmo de forma protocolar.
“É com todas as pessoas que é possível transformar uma realidade, e não com meia dúzia de intelectuais. Então o jornalista precisa atuar onde as pessoas e como as pessoas leem.”
Algumas questões que estavam postas para o Jornalismo há quase 30 anos, quando o Adelmo lançou “O Segredo”, ainda estão postas hoje?
O Jornalismo é uma forma de conhecimento? Se é uma forma de conhecimento, que tipo de conhecimento é esse? Ele deturpa a realidade ou ele ajuda a construir a realidade? Como o jornalismo participa da esfera pública? O jornalismo é algum tipo de indústria cultural somente ou há algo mais no jornalismo como projeto de modernidade. Com a descrença da modernidade é possível ainda pensar em Jornalismo? É possível pensar um horizonte político socialista, comunista, mantendo o jornalismo?
Essas são perguntas de fundo político, e que se colocam hoje em uma atualidade imensa quando se percebe que estamos vivendo um momento de demissões em massa, de jornais fechando, de grandes grupos empresariais ditos tradicionais fechando um conjunto de títulos, de muitos jornalistas desistindo da profissão.
Que outros pontos você considera que estejam atuais em relação a obra do Adelmo?
Em uma conjuntura em que 90% da categoria é formada em Jornalismo: como perceber, por exemplo, alunos formados em jornalismo fazendo um jornalismo tão ruim? Isso demonstra certa falência da teoria e da academia em reverter a prática mecânica em práxis, que é o projeto do livro. Tentar colocar o jornalista como um ser pensante, como um sujeito crítico que possa enfrentar a realidade e não somente absorver a realidade como se ela fosse inerte. Então no ambiente político atual isso é de uma atualidade absurda.
É interessante porque o Adelmo começa “O Segredo da Pirâmide” criticando alguns jornalistas, e é uma crítica bem direcionada ao eixo São Paulo/Rio de Janeiro, que defendia o fim da obrigatoriedade do diploma naquele momento. Essa era uma campanha especialmente da Folha [de São Paulo], no final dos anos 1980, pelo fim da obrigatoriedade do diploma.
O Adelmo fala isso, ele vai dizer: “A crítica à formação acadêmica é algo descabido”. Ele não disse que deve ser obrigatório o diploma, mas o livro acaba servindo como uma forma de os jornalistas demarcarem um certo terreno, dizendo: “O jornalismo produz um certo tipo de conhecimento, então nós temos que ter formação específica em Jornalismo, teorias específicas em Jornalismo”. Então começa todo um movimento político-acadêmico, político-profissional, pra defender a profissão, no qual o livro do Adelmo participa como um tipo de reforço.
Reportagem: Gabriele Wagner de Moura
Fotografias: Rafael Happke