Por Tânia Teixeira Pinto, PhD. | Professora de Gerenciamento de Crise e Reputação da Faculdade Cásper Líbero
Após assistir ao documentário “Lively vs Baldoni: Escândalo em Hollywood”, disponível no Brasil pela HBO Max desde 26 de julho de 2025, fica impossível não refletir sobre como se formam hoje as opiniões sobre artistas e celebridades. O filme reconstrói um conflito que extrapola os limites de um set de filmagem e expõe algo maior: a guerra invisível das narrativas digitais.
Essa produção mostra, em detalhes, como estratégias contemporâneas de comunicação; incluindo manipulação social e campanhas coordenadas de astroturfing; foram utilizadas para moldar a imagem pública de Blake Lively e Justin Baldoni, protagonistas do filme It Ends With Us (É Assim Que Acaba), lançado em 2024.
Reportagens de veículos como Axios (2025) e The Guardian (2025) acompanharam esse processo e suscitaram uma reflexão: até que ponto a gestão de reputação, quando conduzida de forma opaca, influencia a opinião pública? Ao mesmo tempo, o caso escancara como o uso de astroturfing se torna cada vez mais frequente na era digital, transformando-se em ferramenta para forjar apoio popular e direcionar o debate nas redes.
Dentro desse contexto, compreender o conceito de astroturfing é fundamental. Essa prática, central no episódio retratado, mostra que ações digitais aparentemente espontâneas podem ser cuidadosamente fabricadas para influenciar a percepção coletiva. Reconhecer essas estratégias ajuda a revelar as dinâmicas de poder por trás das campanhas de comunicação e reforça a importância da transparência e do pensamento crítico ao interagir com conteúdos online.
Astroturfing: quando a base não é popular
Astroturfing é um termo usado para descrever ações planejadas que simulam movimentos espontâneos da opinião pública. No ambiente das redes sociais, perfis falsos, robôs (bots) e campanhas coordenadas criam a aparência de que uma ideia ou opinião tem apoio genuíno. Segundo a Axios (2025), os algoritmos favorecem esse tipo de conteúdo porque reagem a números de engajamento, e não à origem legítima das mensagens.
Nos últimos anos, essa prática deixou de ser restrita à política ou ao consumo e passou a se tornar uma estratégia recorrente em disputas de reputação de celebridades e grandes marcas. O caso Lively vs Baldoni é um exemplo emblemático de como o astroturfing pode ser mobilizado para construir narrativas artificiais, deslocar o debate e influenciar a percepção pública.
O conflito começou quando Blake Lively apresentou, em 20 de dezembro de 2024, uma queixa formal ao Departamento de Direitos Civis da Califórnia, acusando Justin Baldoni de assédio sexual e ambiente hostil durante a produção de It Ends With Us. No dia seguinte, o jornal The New York Times publicou uma reportagem investigativa sob o título “We Can Bury Anyone: Inside a Hollywood Smear Machine”, revelando que Baldoni teria contratado uma equipe de gestão de crise para ‘enterrar’ Lively após a denúncia. O artigo destacou o uso de mensagens, textos e e-mails coordenados com publicitários para plantar narrativas e manipular a opinião pública.
Pouco depois, documentos judiciais revelaram que Baldoni, com suporte de sua equipe de RP, teria montado o que veio a ser chamado de “plano de combate social”: uma estratégia articulada para desacreditar publicamente Blake Lively utilizando perfis falsos, influenciadores digitais e impulsionamento de conteúdo negativo. Mensagens reveladas no processo mostram expressões como:
“We can bury anyone” (temos meios para arruinar a reputação de qualquer um) e “Social manipulation plan” (plano de manipulação social) foram utilizados entre cliente e assessoras.
Essas trocas de mensagens mostradas no documentário descrevem um padrão recorrente em campanhas de astroturfing: articuladores criam discussões em fóruns, mobilizam influenciadores e perfis falsos e amplificam conteúdos negativos até que esses temas sejam repercutidos pela imprensa como se fossem manifestações espontâneas. Essa lógica foi vista em diversos casos. Em 2013, por exemplo, a Samsung foi multada pela Comissão de Comércio de Taiwan após pagar estudantes para publicar cerca de 4 000 comentários falsos atacando o smartphone HTC One e elogiando aparelhos da própria marca; a prática resultou em multa de US$ 340 000. Já nas eleições alemãs de fevereiro de 2025, uma análise da plataforma Visibrain detectou uma operação coordenada em que 33 000 contas extremamente ativas e outras 6 398 contas que postavam mais de 100 mensagens por dia disseminavam mensagens alinhadas ao partido AfD (Alternativa para a Alemanha é um partido político alemão populista de extrema-direita) e a perfis como o de Elon Musk. Esses números fugiam completamente do comportamento de usuários comuns e foram interpretados como indício de astroturfing destinado a influenciar o debate eleitoral. Esses exemplos ilustram como esse tipo de campanha cria uma falsa impressão de apoio ou rejeição e reforçam a necessidade de olhar criticamente para narrativas que se espalham de forma súbita nas redes sociais.
Todo esse processo, que poderia passar despercebido pelo público leigo, é detalhado e exposto pelo documentário da HBO, transformando o caso em um verdadeiro estudo de como a manipulação digital opera nos bastidores. É a partir dessa investigação audiovisual que se torna possível compreender a amplitude e as consequências dessas estratégias estruturada no documentário em três dimensões:
1. O conflito jurídico: denúncia de assédio e a defesa de Baldoni;
2. O campo da comunicação: como o “plano de combate social” foi colocado em prática;
3. O impacto na opinião pública: a amplificação do caso por veículos e redes sociais, muitas vezes sem transparência sobre a origem das narrativas.
A Crise da Comunicação Digital e o Desafio da Esfera Pública
O conflito entre Blake Lively e Justin Baldoni ultrapassou o âmbito profissional e virou combustível para uma guerra cultural nos Estados Unidos. Comentadoras conservadoras como Candace Owens passaram a atacar Lively publicamente, enquanto perfis de direita nas redes sociais inundaram as plataformas com hashtags anti‑Lively e pró‑Baldoni. Análises do especialista Zhouhan Chen mostram que mais de 80 % das postagens em apoio a Baldoni foram geradas por contas inorgânicas, evidenciando uma campanha artificial de apoio.
Esse episódio expõe uma transformação mais ampla na comunicação. Além de assessorias tradicionais, atores recorrem hoje a monitoramento contínuo de redes, inteligência artificial para prever crises e campanhas multiplataforma que buscam não só defender reputações, mas construir narrativas. Táticas como o astroturfing, que simulam apoio popular, distorcem a esfera pública: o que deveria ser debate espontâneo torna‑se um produto planejado, capaz de influenciar algoritmos e pautar o jornalismo.
As consequências são particularmente graves para os jovens, que se informam quase exclusivamente por TikTok, Instagram ou YouTube. Nesses ambientes, conteúdos curtos e fragmentados, impulsionados por algoritmos opacos, deixam pouco espaço para contexto ou verificação. Sem letramento digital, esse público torna‑se vulnerável a campanhas coordenadas que mascaram propaganda como opinião.
Para mitigar esses riscos, é imprescindível promover educação midiática e exigir ética dos profissionais de comunicação. Usuários precisam entender como funcionam as plataformas e distinguir informação de propaganda; publicitários, marqueteiros e assessores precisam estabelecer limites claros entre estratégias legítimas e manipulação. Nesse cenário, o jornalismo profissional assume um papel central: investigar, contextualizar e verificar fatos para desmascarar narrativas fabricadas e fornecer ao público uma base confiável para formar suas opiniões.
O caso Lively × Baldoni, portanto, é um alerta. A defesa de uma esfera pública plural exige uma combinação de ética profissional, letramento digital e jornalismo responsável. Só assim será possível garantir que a comunicação sirva para esclarecer e não para manipular.
Referências
AXIOS. The PR astroturfing strategy explained. 9 jan. 2025.
HBO. Lively vs Baldoni: The Hollywood Feud. Documentário. HBO Max, 2025.
THE GUARDIAN. ‘It’s the misogyny slop ecosystem!’ How Candace Owens and the American right declared war on Blake Lively. 6 maio 2025.
THE NEW YORK TIMES. “We Can Bury Anyone: Inside a Hollywood Smear Machine”. 21 dez. 2024.
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