Estudos que relacionam jornalismo, ciência, política e desinformação vêm apontando para “disputas narrativas” em torno da hegemonia do conhecimento socialmente aceito como verdade. A circulação de informações desencontradas durante a pandemia de Covid-19 escancarou essa realidade, agravando um problema global de saúde pública. No Brasil, fatos inventados, distorcidos e/ou alterados, porém, já não são casos isolados há algum tempo. Instituições que, historicamente, detinham a exclusividade da produção e difusão de informações veem hoje sua credibilidade sendo questionada, perseguida, atacada, ameaçada. A criação e divulgação de conteúdos sem embasamento na factualidade, embora não seja uma prática recente, tem sua disseminação impulsionada em larga escala na internet e faz com que o problema da desinformação constitua-se como um fenômeno complexo, que atravessa diversas esferas sociais.
A série Atingidas pela Desinformação, lançada no fim do mês passado pelos institutos Desinformante e Vladimir Herzog, retrata o impacto das fake news na vida pessoal e política de pessoas públicas. Em um dos episódios divulgados, a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, conta detalhes do momento em que se tornou alvo de difamação e ameaças após o espalhamento de uma informação infundada a seu respeito, que se disseminou pelo país a partir de comentários do presidente Jair Bolsonaro e apoiadores. “Basicamente a minha vida virou um inferno. Tem até hoje memes pornográficos com montagens de mulheres peladas com o meu rosto. Tem mensagens de gente falando que eu devia ser estuprada. É uma coisa horrorosa”, relata em depoimento publicado no site, onde consta ainda que, após processo judicial, Bolsonaro foi condenado e precisou pagar à jornalista uma multa de R$35 mil, por danos morais.
O exemplo reflete a campanha de difamação da reputação de jornalistas em curso no país. Já escrevi aqui sobre estudos recentes que evidenciam a existência de uma crise de credibilidade das instituições produtoras de conhecimento e disseminação de informações. Largamente percebido no Brasil e também em outras partes do mundo, esse fenômeno, segundo Thaiane Oliveira (2020), é atrelado a um processo político e ideológico que incentiva a descrença das chamadas instituições epistêmicas, como as escolas, universidades, instituições de pesquisa científica e o próprio jornalismo, estando relacionado à circulação de desinformação. Uma pesquisa de Gomes e Dourado, publicada em 2019, corrobora essa discussão ao inferir que essa crise epistêmica gira em torno da política, sendo intencionalmente produzida pela ascensão mundial de um movimento conservador de direita, que faz uso extensivo de fake news em benefício próprio, para arbitrar sobre o conhecimento socialmente aceito sobre os fatos (GOMES E DOURADO, 2019, p. 37). Em análise das eleições de 2018, Gomes e Dourado avaliam que “a disputa pela ‘verdade’ e o uso da palavra ‘mentira’ como autodefesa se fazem presentes, uma eleição após a outra, na política contemporânea do Brasil e do mundo” (p. 34), criando uma “crise epistêmica politicamente induzida” (p. 44).
A vinculação da desinformação aos movimentos conservadores de direita, como vimos, é fundamentada em pesquisas que comprovam a relação, mas pode não resumir-se a apenas isso. Peças de desinformação que circularam nesta semana no país, com supostas postagens do presidente Jair Bolsonaro elogiando a maçonaria, checadas e apontadas como montagens pela Agência Lupa, são apenas um simples exemplo de que a direita, em certa medida, também pode ser atacada nesse jogo sujo. A situação atual torna evidente que a prática de produzir narrativas a fim de induzir a opinião pública disseminou-se por diversas esferas sociais. E a discussão sobre a desinformação não se encerra por aí. Há pesquisas que afirmam ainda que os próprios veículos jornalísticos, ao publicarem pautas relacionadas às fake news, mesmo sem ter essa intenção, ajudam a alterar o foco dos debates, dando força à desinformação. É o que aponta estudo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ao mostrar que, quando divulgam notícias envolvendo fake news, nem que seja a fim de informar sobre o fato, os veículos tradicionais contribuem para o processo desinformativo, pois “ainda que a repercussão de informações falsas por meio de veículos de jornalismo tenha sido realizada de forma não intencional (misinformation) […], a discussão na esfera pública acaba afetada por isso” (SOARES et al., 2019, p. 10).
Essa disputa pela visibilidade dos discursos socialmente aceitos alerta para a construção de um “ecossistema de desinformação” (SOARES, 2019, p. 3), complexo e transversal, que constitui-se como um problema para o debate público e uma ameaça à democracia. Se, por um lado, o jornalismo enfrenta uma crise epistêmica da qual movimentos políticos conservadores são apontados como propulsores, as fake news disseminam-se por todos os lados, principalmente na política, atacando também a direita. Pessoas públicas são difamadas e as práticas jornalísticas não estão conseguindo agir de maneira eficiente para amenizar o problema. O cenário torna-se cada vez mais obscuro e merece seguir sendo estudado.
Referências:
OLIVEIRA, Thaiane. Como enfrentar a desinformação científica? Desafios sociais, políticos e jurídicos intensificados no contexto da pandemia. Liinc em Revista. Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, 2020.
SOARES, Felipe B.; VIEGAS, Paula; SUDBRACK Shana; RECUERO, Raquel; HUTTNER, L. R. Desinformação e esfera pública no Twitter: disputas discursivas sobre o assassinato de Marielle Franco. Revista Fronteiras (online), v. 3, p. 1-15, 2019.
GOMES, Wilson da Silva; DOURADO, Tatiana. Fake News, um fenômeno de comunicação política entre jornalismo, política e democracia. Estudos em Jornalismo e Mídia, Vol. 16 Nº 2, 2019.