Por Pesquisadoras do Cuidar_Com – Grupo de Pesquisa Comunicação, Crise e Cultura do Cuidado (CNPq)[1]
No dia 27 de abril de 2024, quando fortes chuvas atingiram o Rio Grande do Sul, para muitos se tratava apenas de um episódio intenso e característico do período: as chuvas de outono. Rapidamente, os números começaram a assustar. Nos primeiros cinco dias foram mais de 500 milímetros. E era só o começo do que se revelou como um desastre histórico que se prolongou por mais de 30 dias. Os rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos e Gravataí não suportaram o volume de água que recebiam, e transbordaram, alcançando cidades, ruas e vidas.
Diante da dimensão dos impactos, o evento foi considerado pelo Governo do Estado como a maior catástrofe climática da história do Rio Grande do Sul. Um ano depois, as feridas desse acontecimento traumático permanecem abertas. Compreender o que aconteceu, organizar as lições que ficam, fazer o inventário de como a sociedade avançou em relação ao tema, mas, principalmente, identificar os desafios que ainda precisam ser enfrentados é pauta social obrigatória.
Para quem estuda ou atua nas perspectivas comunicacionais, é ainda mais urgente (re)pensar o lugar da comunicação diante de riscos e eventos extremos, reconhecendo-a como um aspecto fundamental de tudo que foi vivido e na gestão de risco.
Nosso grupo de pesquisa buscou sistematizar aqui as principais lições, os avanços alcançados e os desafios que ainda persistem. Afinal, essa história não pode, e não deve, ser apagada.
Entre as lições, uma das maiores talvez seja compreender, em caráter definitivo, que vivemos um momento histórico marcado por uma transformação ambiental e social com impactos em todas as dimensões da vida humana. Soma-se a essa reflexão a ideia de que estamos imersos em um estado permanente de crise, em uma sociedade atravessada pela fragilidade e pela instabilidade das relações sociais. Nesse cenário, comunicação e cuidado se apresentam como dimensões indispensáveis, capazes de compor respostas e construir estratégias coletivas diante das incertezas que marcam este tempo.
Olhar para o mundo do risco, a partir da perspectiva do cuidado, significa reconhecer que todos os seres humanos compartilham vulnerabilidades e que os riscos, assim como as formas de enfrentá-los, exigem uma sociedade solidária, capaz de encarar esses desafios como responsabilidades coletivas.
Aprendemos também o que boa parte do mundo sabia desde a década de 80 do século passado. Entendemos – na prática – que é necessário comunicar os riscos, não apenas informar. Quando uma mensagem de alerta ou de orientação para a atitude protetiva faz sentido para quem recebe, as pessoas sabem como agir para se proteger e ajudar quem precisa. Aprendemos que informação, por si só, não basta. É essencial que haja mediação com diálogo, informação, cuidado, compreensão e proteção coletiva. Além de transmitir dados, a comunicação deve ser um processo que busca orientar, mobilizar, sensibilizar e, sobretudo, promover ações capazes de reduzir danos e fortalecer redes de apoio diante de situações de crise. Isso exige, entre outros aspectos, entender as comunidades como parte da comunicação de risco.
Um exemplo disso é a atuação da Defesa Civil, que, além de operar tecnicamente na emissão de alertas, enfrentou desafios na comunicação com a comunidade. Durante as inundações de 2024, muitas pessoas resistiram a deixar suas casas, o que gerou tensões sociais. Faltou credibilidade e confiança naqueles que deveriam cuidar e proteger. Esse cenário evidencia que, no cotidiano, as relações entre os órgãos de proteção e a população nem sempre são permeadas por uma cultura de informação sobre riscos – um tema que, muitas vezes, permanece invisibilizado até que um evento extremo aconteça. Trata-se de compreender a comunicação em nosso tempo, buscando caminhos possíveis e viáveis para ocupar esses espaços e fortalecer nossas práticas.
Já em relação aos avanços, após um ano das inundações, há evidências de algumas mudanças. Uma delas é o reforço do efetivo e das estratégias da própria Defesa Civil do Rio Grande do Sul, sinal do início de uma reestruturação institucional voltada a preparar o estado para os eventos futuros. Nesse processo, a chegada de novos profissionais de comunicação merece especial destaque, pois ela responde à grande expectativa depositada pela sociedade em relação à comunicação de risco.
Observa-se o aumento de pesquisadores e da atuação pública de grupos de pesquisa que passam a olhar para o tema sob a perspectiva comunicacional e de forma interdisciplinar. Também se fortalece a organização de redes comunitárias de prevenção, a partir do diálogo, além da atenção mais cuidadosa a eixos macros, como sustentabilidade e cultura ambiental. Ainda assim, há muito a avançar, como na estruturação de políticas públicas e na reconfiguração de planos, a exemplo dos de contingência, entre tantas outras frentes.
Entre os desafios que persistem, estão temas estruturais como a construção de uma política de cuidado de longo prazo, sólida e eficaz, capaz de superar as limitações das atuais propostas de Redução de Riscos de Desastres (RRD), que têm se mostrado insuficientes para garantir a proteção das pessoas.
Também é preciso enfrentar de forma institucional e estratégica, as práticas de desinformação que seguem sendo um obstáculo para todos enquanto sociedade. A circulação de informações imprecisas, descontextualizadas ou falsas pode comprometer a segurança das pessoas, gerar pânico ou, ao contrário, induzir à inação diante de riscos iminentes. Esse fenômeno evidencia a necessidade de fortalecer práticas de comunicação responsáveis, baseadas na credibilidade e, principalmente, na articulação entre órgãos oficiais, mídia e comunidades.
Embora muitas iniciativas tenham despontado, especialmente ações voluntárias envolvendo profissionais da comunicação e pesquisadores do tema, os esforços de enfrentamento esbarram na complexidade do próprio ecossistema comunicacional. Inseridos em um ambiente digital dinâmico, constantemente atualizado por novas plataformas, linguagens e formas de circulação da informação, lidamos com um fenômeno que se reinventa continuamente. Combater a desinformação, nesse contexto, exige constante revisão de estratégias, ao mesmo tempo em que tentamos compreender as dinâmicas que estruturam esse cenário em transformação.
No tema específico da comunicação preventiva, mesmo que tenha havido avanços e haja uma nova percepção em relação aos riscos e à importância das práticas comunicacionais, a sociedade ainda tem dúvidas, especialmente quanto aos alertas emitidos, sua linguagem e seus significados. Persistem dificuldades na compreensão das orientações, o que pode comprometer a efetividade das ações de proteção. Por isso, o fortalecimento da percepção de risco deve vir acompanhado do aprimoramento contínuo das estratégias de alerta, com atenção à clareza, acessibilidade e adequação cultural, de modo a tornar a comunicação mais assertiva e, consequentemente, promover maior proteção coletiva diante de eventos críticos.
A verdade é que o medo de ter de sair correndo de casa sem saber para onde ir, deixando suas coisas para trás, ainda assombra muitos gaúchos. A incerteza persiste. Mas, enquanto pesquisadores da comunicação, seguiremos evitando as simplificações, as generalizações e as abstrações baseadas na redução e na separação. De forma coletiva e interdisciplinar, buscaremos reconectar estratégias comunicacionais, caminhando em direção a dimensões de cuidado. Afinal, é cuidando das pessoas que talvez possamos contribuir para a mitigação dos riscos e para o fortalecimento da comunicação em contextos de crise.
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[1] Pesquisadores: Rosângela Florczak, Thaise Shaiane Ribeiro de Chaves, Abner Freitas, Aidil Brites, Carolina Reverbel, Érick Nogueira Becker, Franciele Falavigna, Janis Loureiro, Julia Machado, Leonardo Tomé, Luana Chinazzo, Patrícia Strelow, Rafaela Redin e Silvia Marcuzzo.