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Um ato de resistência na Feira do Livro de Santa Maria



A Feira do Livro de Santa Maria deste ano contou com a participação, diretamente de Porto Alegre, da escritora, poeta, educadora, professora e filósofa Atena Beauvoir Roveda. Atena, além de ser conhecida como a idealizadora da Nemesis Editora — que publica literatura invisível e transantropológica na área da filosofia existencialista, é autora de três livros: “Libertê: poesia, filosofia e transantropologia”, “Phóda: Poesia, filosofia e sexualidade” e “Contos transantropológicos”.

A presença de uma mulher trans em uma feira do livro é um ato de resistência. No entanto, para a escritora, a persona de uma pessoa trans dentro de uma feira do livro por si só não basta, porque é um corpo presente em um evento. “Tem que ter um conhecimento, uma estrutura de saber, um pensamento, uma epistemologia que chegue e adentre as perspectivas existenciais das pessoas, desconstruindo isso literalmente, a ponto, sim, de um garoto de 16 anos poder namorar livremente uma garota trans sem nenhum tipo de rechaço. Temos uma liberdade afetiva, que é direito nosso, e, enquanto isso não acontecer, a gente acaba ainda tendo que lidar com o índice de que, no Brasil, 96% das mulheres trans são prostitutas. Percebam que não é só você escrever um livro, publicar e deixar nas estantes e livrarias, você tem que saber defender essas ideias, tem que saber defender a sua literatura, propor essas discussões. Isso quer dizer que, quando vamos para uma feira do livro, vamos exatamente para isso, para defender nossas ideias. E quem discordar tem todo o direito democrático de expor, exatamente porque auxilia no fortalecimento dessas ideias”, explica.

Segundo Atena, boa parte das pessoas que acabam assistindo suas palestras são atraídas pela imagem. E, depois, ficam mais surpresas quando encontram conteúdo nessa discussão. Por conta disso, elas acabam se sentindo muito mais estranhas nesse contexto, porque não conseguem encontrar um corpo que seja exótico aliado a um conhecimento que seja muito próximo delas. Assim, na maioria das vezes, as pessoas acabam se surpreendendo com o inesperado, porque não esperam que uma “mulher trans, em uma historicidade de prostituição, de venda de carne, se torne uma prostituta não da carne, mas do saber. O saber que eu produzo influencia a estrutura interna de vocês. A minha estética abre toda uma discussão, ela rasga muita coisa interna. E o saber que a gente vem propor recostura tudo isso. Não deixamos ninguém sangrando ao léu. Então é interessante ver as pessoas se surpreendendo”.

Desse modo, a presença de uma mulher em um evento literário também volta-se para uma discussão de políticas públicas como saúde, segurança e educação. “Todo corpo que sai com menos de 13 anos de casa tem como destino o túmulo, ainda mais se for negra, ainda mais se for travesti, se for transgênero. Então, não é uma questão trans, é uma discussão de política pública, porque enquanto cisgêneros têm privilégio de chegar onde estão, de ter tudo o que querem (família, comida em casa, lar, um teto, higiene, vida social), nós vivemos como ‘vampiras existenciais’, evitamos sair na luz do dia, porque as pessoas cisgêneras só nos dão direito ao túmulo, nada mais”, explica a escritora.

Por isso, para Atena, ter uma identidade trans na feira do livro começa, inicialmente, a ser privilégio. “Quantas pessoas trans você tem no seu Whatsapp? Com quantas pessoas trans você se relaciona? Quantas você conhece que são professoras ou técnicas? É esse tipo de questão que temos que relatar, mas não é só relatar por relatar, não basta minha identidade, é preciso conhecimento estruturado para explicar de onde veio, como parou ali. E não se faz isso tudo tirando essas pessoas da esquina, porque essas a gente já perdeu. Não é a prostituição o último destino de todos os corpos trans. Não é só construir esse conhecimento para mostrar que as pessoas trans estão aqui”, frisa Atena. Portanto, através da literatura transantropológica a escritora mostra que as pessoas trans estão na sociedade e que cabe à sociedade cisgênera deixar de vê-las como prostitutas da relação. Então, não é só a presença de Atena que pesa, é a presença de todas as dores de todas essas mulheres que já morreram.

Trajetória de Atena na Literatura

A inserção de Atena no universo da literatura se deu através da sua própria transição de gênero. “A literatura foi um meio de vingança existencial, porque a gente tem muito sofrimento social”, explica. Embora a legislação brasileira seja pró questão trans, ainda há muita discriminação por questões extremamente deficitárias. “As pessoas não entendem, então é melhor você exilar aquilo do que construir uma análise disso. Então a escrita acabou sendo uma forma de eu diminuir minhas dores, reorganizar esse processo interno. Quando alguém diz ‘você não é uma mulher de verdade’, eu olho para todas as outras mulheres cisgênero e digo ‘nenhuma de vocês é de verdade’, nem cientificamente nem biologicamente nem filosoficamente. Vocês não sabem porque vocês são vocês. Nós nos damos um nome, um biotipo, uma bioquímica. Se isso não se chama liberdade, chama-se o que?”, comenta a escritora.

Para Atena, quando recebemos um nome, recebemos toda uma espécie de estrutura psíquica familiar, uma historicidade. “Antes de você ser feto, as pessoas já criam e constituem uma história para aquele feto. Isso é loucura, a gente nem sabe se esse feto vai render um indivíduo. Então a gente tenta desenvolver todas essas questões”. Assim, a literatura é um campo de trabalho, enquanto a filosofia é uma ferramenta para Atena, que ara a terra da literatura com a filosofia e planta ideias que são a estrutura do seu próprio pensamento, os conceitos que cria para produzir esse florescimento de ideias e discussões que acabam se tornando os livros. “A gente tenta articular para que a nossa estrutura literária seja uma estrutura literária que não revolucione, porque a revolução também é um termo cisgênero de retorno ao mesmo. É um ciclo que termina, mas para que?”, questiona. Pode-se dizer que a literatura transantropológica, trabalhada pela escritora, é um ato de autoencontro de existências, pois faz com que as existências das pessoas trans se observem e, assim, sejam sentidas de maneira mais real. A participação de Atena na Feira do Livro de Santa Maria foi apoiada pelo Observatório de Direitos Humanos da UFSM, vinculado a Pró-Reitoria de Extensão.

Texto: Andréa Ortis (MTB 17.642) – Bolsista NDI

 


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