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“Sabores e Saberes”: conheça o projeto da UFSM que impulsiona culinária com frutas nativas

Curso forma coletivos, inspira negócios e impulsiona a restauração da Mata Atlântica no centro do estado a partir de receitas culinárias.



No interior da Quarta Colônia, em Restinga Seca, no Quilombo São Miguel dos Carvalhos, um movimento silencioso, mas profundamente transformador, tem brotado de frutos nativos da Pampa e da Mata Atlântica e histórias ancestrais. O projeto Sabores e Saberes, coordenado pela professora Suzane Bevilacqua Marcuzzo, do curso de Gestão Ambiental da UFSM e Pós-Graduação em Geografia, está ressignificando o valor cultural, econômico e ambiental das frutas tradicionais dos biomas, transformando conhecimento em renda, alimento em identidade e floresta em futuro.

Criado em 2017, o projeto tem como propósito incentivar a preservação de frutas nativas da Mata Atlântica e do Pampa — derrubando estigmas de que espécies menos conhecidas seriam incomestíveis ou até venenosas — e transformá-las em uma oportunidade de geração de renda. A iniciativa nasceu da inquietação da professora Suzane diante do desconhecimento generalizado sobre as frutas nativas do Sul do Brasil, abundantes na região, mas ainda pouco presentes no cotidiano.

Entre essas espécies estão o butiá, a jabuticaba, o guabiju, a cereja-do-mato, a uvaia, o araçá e a pitanga, frutos com alto valor nutricional, mas frequentemente tratados apenas como algo que “serve para os bichos”, como relatam muitos moradores do interior. “Ninguém preserva aquilo que não conhece. Se as pessoas não experimentam, não consomem e não criam vínculo com a floresta, nunca vão entender por que ela precisa ser protegida”, comenta a professora.

Idealizadora e coordenadora do projeto, professora Suzane Marcuzzo.

Como tudo começou

A professora,  Engenheira Florestal de formação, lembra que, no início do projeto, chegaram a surgir propostas para trabalhar com sistemas agroflorestais da região. A ideia, porém, despertou uma inquietação: no Sul, boa parte da população ainda tem pouco contato com as frutas nativas, e praticamente não existe uma cadeia de valor consolidada para esses produtos. “Eu ficava pensando: quando chegasse a época da colheita, o que aconteceria com o agricultor? Ele teria uma grande quantidade de frutas, mas não teria para quem vender”, explica.

Além de serem desconhecidas, essas frutas precisam de um certo cuidado. “Frutas nativas são altamente perecíveis. “Você colhe pela manhã e, se não preparar ou congelar no mesmo dia, o fruto já começa a perecer. Não é como a banana, que pode durar até uma semana. No caso dessas espécies, muitas vezes, no fim da tarde ou à noite, já é possível perceber sinais de deterioração”, explica.

Foi então que a professora, também coordenadora do NEAP – Núcleo de Estudos em Áreas Protegidas, tomou uma decisão: testar receitas com frutas nativas, pois, para preservar, as pessoas precisam primeiro conhecer. Ela deu início aos experimentos em Vale Vêneto, em 2017, na Quarta Colônia, com a ajuda da nutricionista irmã Rosa, da Casa de Retiros. “Pensei: as pessoas primeiro precisam conhecer para ter demanda. Para aquele agricultor que está desmatando passar a ver que ele pode manter ou até aumentar sua área de floresta por meio de pomares de espécies nativas ou agrofloresta. Então ele vai enxergar com outro olhar e pensar: ‘Mas se eu produzir aqui, eu vendo lá na feira, na agroindústria, ou eu abro a minha agroindústria’”, relata a professora.

Depois de desenvolver algumas receitas, a professora decidiu organizar um café aberto à comunidade, no qual todos pudessem experimentar pratos preparados com frutas pouco conhecidas na região. Entre eles estavam o queijo com aroeira-vermelha, a geleia de jerivá e o docinho de jaracatiá. São nomes diferentes, mas que despertaram memórias afetivas. Segundo ela, o encontro teve resultados positivos, marcado por comentários como: “Nossa! A minha avó fazia isso!”. Muitos também demonstraram surpresa, dizendo que não imaginavam que aquela fruta, ou até mesmo aquele pedaço da árvore, pudesse ser aproveitado na cozinha.

Primeiro banner expositivo do projeto, com receitas desenvolvidas para degustação no café.

Para Suzane, esse era justamente o objetivo do experimento: recuperar saberes que foram se perdendo com o tempo, já que muitas dessas preparações fazem parte da história local. O jaracatiá, por exemplo, conhecido como “mamãozinho do mato”, tem uma tradição antiga. Ela explica: “Esse docinho não é feito do fruto que você come, mas do galho ralado. Ele fica parecido com coco e tem um sabor entre coco e abacaxi. Essa receita tem forte ligação com a imigração italiana. Quando os colonos chegaram na região, provavelmente aprenderam com os indígenas. A partir disso, começaram a fazer uma espécie de cocada, chamada de ‘pau-doce’, usando os galhos dessa árvore nativa da Mata Atlântica”.

Alguns anos após o primeiro experimento, a professora foi convidada pela PRE para participar do edital dos Geoparques e ministrar um curso no Projeto Progredir — realizado nos geoparques Quarta Colônia e Caçapava —, já que o trabalho de Suzane dialogava diretamente com o desenvolvimento territorial. Nesse contexto, ela desenvolveu duas edições do Progredir, uma com 52 horas e outra com 72 horas. Assim como no primeiro experimento, os resultados foram extremamente positivos: o público adorou.

Segundo Suzane, no último curso ela ofertou 15 receitas, uma para cada fruta utilizada. No entanto, o engajamento das participantes foi tão grande que elas criaram mais de 50 novas receitas a partir dos mesmos ingredientes. As criações foram diversas e inventivas, como bala de bergamota com aroeira, bala de jaboticaba, geleia de laranja com aroeira vermelha, além de várias outras combinações que incorporavam aroeira de diferentes formas.

Feira com os produtos desenvolvidos pelas participantes do Progredir Caçapava.

Como o projeto acontece 

A partir de oficinas participativas que iniciam com a apresentação da professora Suzane, é introduzido o tema com falas de abertura, exibição de materiais e vídeos sobre a espécie trabalhada, sobre a floresta e sobre a proposta de desenvolvimento sustentável baseada na manutenção da mata como fonte de geração de renda. Para contextualizar, Suzane também apresenta vídeos de outras regiões do país, onde chefs de cozinha já atuam com iniciativas semelhantes, demonstrando que a prática é uma realidade consolidada em vários lugares do Brasil.

Uma grande característica do projeto é a participação ativa apenas de mulheres, pois, embora os encontros sejam abertos a todos os públicos, a presença masculina é mínima. “Os homens até participam, mas são poucos, não chega a 1%. Quem realmente comparece e leva as ideias adiante são as mulheres”, explica.

Após a introdução, a oficina segue para a parte prática, “quando partimos para as panelas”, como descreve a professora. Todos os participantes trabalham juntos na preparação das receitas. Suzane leva as frutas que guarda em sua casa e no Politécnico– armazenadas em diversos freezers —, colhidas com apoio de amigas, familiares e moradoras das comunidades, sempre com o cuidado de preservar as espécies e incentivar seu plantio. Em algumas edições, ao final do curso, as agricultoras recebem um kit de mudas, reforçando o compromisso com a conservação e a ampliação das áreas cultivadas.

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Suzane e participantes no momento de preparação dos alimentos.

A professora Suzane trabalha com uma fruta específica em cada encontro, como a uvaia, por exemplo. A fruta, já descongelada, é distribuída entre os participantes, que aprendem o processo de despolpa e manejo: retirada do caroço, separação da polpa e identificação das particularidades de cada espécie. “Cada fruta exige um tipo de cuidado. Algumas têm a semente aderida à polpa, outras não. Nada é tão simples, e cada uma precisa ser apresentada do jeito certo”, explica.

Na sequência, o grupo parte para a elaboração da receita do dia, que pode ser uma geleia, cuca, bolacha ou broa. Após o preparo, vem o momento da degustação, seguido da análise sensorial. Ao final de cada oficina, os participantes preenchem uma ficha avaliando sabor, textura e aroma do produto, utilizando uma escala Likert.

Onde encontrar o projeto 

O curso é realizado onde houver demanda. Segundo a professora Suzane, a iniciativa conta com o apoio da Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) e das prefeituras da região. Sempre que surge a oportunidade de ministrar oficinas financiadas por algum município, ela segue para a comunidade, levando suas frutas e seu livro de receitas.

A divulgação dos encontros fica a cargo das prefeituras e da Emater, responsáveis por mobilizar os participantes. “Eles nos trazem as pessoas. Chegamos até a Emater, que é nossa parceira, e à prefeitura, conversamos sobre a proposta e, a partir daí, eles iniciam a chamada. A divulgação é feita principalmente pelos grupos de WhatsApp que eles mantêm”, explica Suzane.

Mulheres que viram protagonistas

Nas últimas edições do curso, a professora Suzane percebeu que estava fortalecendo o empreendedorismo feminino, pois ajudava as mulheres a encontrar nas receitas uma forma de sustento. Segundo ela, nessa edição participaram 30 mulheres, e quatro delas decidiram empreender, entre elas dona Celi, que hoje integra a Polifeira. “Nas quintas-feiras, ali na Polifeira, tem a banca Mata Atlântica, e esse é um dos resultados do projeto: a Celi vende geleias de pitanga, cereja, jacarandá, butiá, uvaia, guabiroba e guabiju. Ela já está ali há dois anos, desde que participou do curso”, ressalta.

Banca “Mata Atlântica” na Polifeira da UFSM.

Suzane iniciou uma nova etapa de trabalho ao levar suas receitas para as mulheres do Quilombo de São Miguel dos Carvalhos, em Restinga Sêca, na região da Quarta Colônia, onde atua atualmente. Diferente das oficinas pontuais, o curso oferecido no quilombo segue o formato do Progredir (sem ser do Progredir), com encontros semanais e conteúdo continuado. As participantes também ganharam uma apostila com dicas e receitas. Sem grandes financiamentos, a professora viaja aos fins de semana levando seu acervo de frutas para as atividades práticas. Durante a semana, mantém contato constante com as participantes por meio de um grupo de WhatsApp, no qual circulam fotos de novos pratos, ideias de receitas e até novidades da comunidade.

Participantes durante preparação dos alimentos na cozinha do Quilombo.

Hoje, o projeto também se estrutura como curso de formação, com apostilas, oficinas práticas e articulação para futuros financiamentos. Segundo a professora, “experimentar uma fruta nativa é um ato político. É conhecer para preservar”. As oficinas se tornam um espaço não apenas de aprendizado técnico, mas também de fortalecimento comunitário, troca de memórias e construção de autoestima. “Elas descobrem que aquilo que estava ali do lado de casa, caindo no chão, pode virar renda. E, quando percebem isso, olham para a floresta com outros olhos”, ressalta.

No evento “Caminhada da Natureza” , que reúne de 100 a 200 pessoas, a professora conta que o grupo produziu diversos produtos e vendeu tudo, arrecadando cerca de 800 reais em um único dia. As participantes ficaram surpresas e relataram a Suzane que essa é uma  oportunidade real de autonomia financeira. “A caminhada deu uma injeção de entusiasmo. Elas voltaram dizendo: ‘Professora, dá certo! Nós conseguimos!’”, comentou Suzane.

Uma semente que continua crescendo

Os resultados confirmam que o esforço vale a pena: mulheres que antes duvidavam de suas próprias habilidades agora desenvolvem receitas autorais, formam coletivos e comercializam seus produtos por toda a região. No quilombo, a cozinha tornou-se um espaço de protagonismo e resistência.

A professora conduz praticamente todo o trabalho sozinha, contando apenas com o apoio de uma bolsista na parte administrativa. Quando surgem oportunidades, ela busca financiamentos por meio de editais e, no momento, aprovou o projeto no edital Fapergs (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul). “É um projeto pessoal, um sonho. Às vezes a gente precisa apostar no que acredita, mesmo sem recursos”, afirma Suzane.

Segundo Suzane, “a cereja do bolo é a restauração ecológica. É quando as próprias participantes pedem árvores para plantar. É recuperar a Mata Atlântica e o Pampa com sentido e com pertencimento”. 

Alguns dos produtos desenvolvidos no projeto: 

Texto: Maria Lúcia Homrich Gotuzzo, bolsista da Subdivisão de Divulgação e Editoração (PRE/UFSM).

Revisão: Valéria Luzardo, bolsista da Subdivisão de Divulgação e Editoração (PRE/UFSM).

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