Você se lembra do que estava fazendo há um ano atrás, quando o Rio Grande do Sul enfrentava a maior catástrofe climática de sua história? A Subdivisão de Comunicação preparou uma série de reportagens intitulada #CTnaReconstrução, na qual você vai relembrar ou conhecer os projetos, servidores e estudantes do CT que atuaram na linha de frente, seja com iniciativas de apoio imediato à população, seja com projetos de recuperação e prevenção a médio e longo prazo de áreas atingidas pela tragédia climática no RS. Na quarta e última reportagem, destacamos como a ciência produzida pelos pesquisadores e especialistas do CT auxiliaram na emergência e apontam formas de prevenir danos futuros.
O diretor do Centro de Tecnologia, professor Tiago Marchesan, ao comentar as ações realizadas pela Unidade durante as enchentes, relembra que, em situações de tragédia, a primeira medida essencial é acolher. E foi justamente o que fez a comunidade acadêmica: professores, técnicos e estudantes organizaram mutirões para limpeza de casas, arrecadação de alimentos, de utensílios domésticos e construção de móveis para doação. Em meio aos primeiros momentos de acolhimento, a formação técnica e científica dos estudantes e docentes foi colocada em prática: professores especialistas em geotecnia foram chamados para ações cruciais como vistoriar áreas de risco em morros de Santa Maria e Quarta Colônia e avaliar a segurança de permanência dos moradores.
Depois, com a situação emergencial amenizada, o foco dos pesquisadores começou a se voltar para a engenharia preventiva. Projetos que refletem sobre o impacto das chuvas nas estruturas urbanas e na sociedade ganharam espaço e protagonismo em função da emergência – desde projetos de simulação de fluxos hídricos e avaliação de regimes pluviais até outros que buscam o desenvolvimento de soluções urbanísticas para áreas alagadas. As atividades de pesquisa envolveram todos os cursos do CT — desde Engenharia Ambiental e Sanitária até Ciência da Computação, Arquitetura e Urbanismo e Engenharia Civil.
Ao longo do último ano, o CT, além de ter organizado encontros próprios, que serviram de base para articulações com prefeituras, Defesa Civil e outras universidades, também participou de eventos e seminários que abordaram o tema. Um deles foi o Santa Summit – encontro realizado pela Agência de Desenvolvimento de Santa Maria, Sebrae, Inova Centro e Prefeitura Municipal de Santa Maria que reuniu setores privados e instituições públicas em junho do ano passado, no distrito criativo de Santa Maria, para discutir e pensar ações e projetos colaborativos para reconstruir e impulsionar a região central do Rio Grande do Sul.
Especialistas a campo na emergência
A atuação da universidade durante e após a tragédia também se deu no acompanhamento técnico das áreas atingidas. Professores e pesquisadores do Centro de Tecnologia, com experiência em diferentes áreas da engenharia, se mobilizaram de forma voluntária para atender demandas das prefeituras e da Defesa Civil, principalmente no interior do estado.
O professor Magnos Baroni, docente do Departamento de Transportes e especialista em Geotecnia, foi um dos que estiveram diretamente envolvidos nesse trabalho. Atuando com infraestrutura de contenção, fundações e estabilidade de encostas, Baroni explica que a dinâmica do desastre na região central do estado foi muito rápida, em função da geografia local: “Santa Maria e arredores são regiões com muitos morros e pequenas bacias hidrográficas. A velocidade das águas foi muito grande e grandes quantidades de água desceram pelos morros muito rapidamente, elevando os rios de forma absurda”, relata.
Após a enchente, as prefeituras passaram a lidar com outro problema: avaliar a segurança de áreas de risco e decidir se as famílias poderiam ou não retornar para suas casas. Segundo Baroni, muitas Defesas Civis municipais não tinham profissionais especializados para fazer esse tipo de vistoria. “O cargo de Defesa Civil é obrigatório, mas nem sempre quem ocupa o cargo tem a expertise necessária. E aí eles ficaram perdidos, sem saber se liberavam ou não as casas, se o terreno tinha estabilidade, se podia voltar ou não”, conta.
Sem pessoal técnico suficiente, as Defesas Civis locais recorreram à Defesa Civil estadual, que também estava sobrecarregada com a situação em Porto Alegre e no estado. Foi nesse contexto que docentes e pesquisadores da UFSM começaram a ser chamados. “Por nome, o pessoal sabia que existiam especialistas aqui. Então entravam em contato, perguntavam se podiam passar meu contato, se podiam indicar alguém. E a gente foi ajudando como dava”, lembra.
A logística das vistorias, na maioria das vezes, foi organizada de forma improvisada e voluntária. “A gente usava carro próprio pra chegar até as cidades e lá pegava os veículos da prefeitura. A universidade até disponibilizou caminhonetes, mas era difícil conseguir motorista e deslocamento oficial. Então, quase tudo foi na base da boa vontade mesmo”, comenta.








O grupo de atuação incluía, além de Baroni, os professores Daniel Allasia, Rutinéia Tassi e João Francisco Horn, todos ligados ao Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental e especialistas na área de recursos hídricos e geotecnia. Os trabalhos de campo foram realizados em diferentes cidades da região central, com avaliações de áreas afetadas, orientações para as Defesas Civis municipais e, sobretudo, conversas com a população, para explicar os riscos e a necessidade de desocupação de determinadas áreas. “A gente precisava conversar com as famílias, mostrar por que precisavam sair de casa, explicar os motivos técnicos e tranquilizar as pessoas também”, afirma Magnos.
Além das ações realizadas junto à Defesa Civil, os professores participaram de algumas atividades com os especialistas da área de estruturas, especialmente voltadas para a questão de infraestrutura viária, fundações e pontes. A situação climática exigiu, naturalmente, um trabalho multidisciplinar, com profissionais de diversas áreas técnicas. Magnos destaca que no entanto, o início dos atendimentos eram muito desalinhados: “quem podia ajudar, pegava o carro e ia até o local. Essa foi a realidade do primeiro momento, onde a urgência determinava a forma de atuação.” destaca o professor.
A experiência prática nunca deixou de estar alinhada ao compromisso teórico e científico dos docentes, como se evidencia no artigo “O desastre hidrológico excepcional de abril-maio de 2024 no sul do Brasil”, publicado pela Revista Brasileira de Recursos Hídricos. O estudo, dimensionou, com dados técnicos e oficiais, a extensão do desastre hidrológico de 2024 no estado. O professor Daniel Allasia representou a UFSM ao lado de pesquisadores da UFRGS, da Univates, do Serviço Geológico do Brasil, da UFPEL e da FURG.
Diagnóstico dos danos e apoio às prefeituras
Após as ações emergenciais, as prefeituras precisaram elaborar planos de trabalho para cadastramento oficial dos danos junto aos governos estadual e federal. Esse cadastro era necessário para viabilizar os recursos emergenciais, que seriam repassados via Defesa Civil. Nesse contexto, os especialistas voltaram a campo, mas não mais para avaliação de áreas de risco, e sim para realizar levantamentos técnicos: analisar e medir pontes destruídas, avaliar alternativas de solução e estimar valores de obra.
Os docentes relatam que muitas prefeituras não dispunham de toda a capacidade técnica necessária para fazer esse tipo de levantamento, especialmente em relação a encostas e deslizamentos. Em Santa Maria, por exemplo, os docentes e discentes atuaram na região da Estrada do Perau. Juntamente com a prefeitura, foi elaborado um anteprojeto e um plano de trabalho completo, que viabilizou a destinação de cerca de R$ 6 milhões em recursos. Esse apoio foi prestado de forma gratuita pela Universidade e reforçou o compromisso da UFSM com a comunidade. O valor foi liberado recentemente e atualmente a prefeitura dá andamento aos projetos executivos.
Ações semelhantes também aconteceram em outras cidades, como São Pedro do Sul e Candelária, especialmente em relação a pontes e acessos interrompidos. Em muitos casos, o grupo foi responsável pela vistoria, diagnóstico técnico e proposição preliminar de soluções.
Durante essas atividades, Magnos contou com o apoio de integrantes do GEOMA — Grupo de Pesquisa Geotecnia e Meio Ambiente. O grupo reúne discentes de graduação, mestrado e doutorado, mas boa parte dos que foram a campo com o docente são engenheiros civis formados, em processo de qualificação acadêmica. Baroni ressalta: “muitas vezes se usa o termo “aluno”, e a impressão que fica é que a universidade está deslocando estudantes em formação inicial para ações de grande responsabilidade técnica. Na prática, esses profissionais têm formação superior e atuam justamente na área dos problemas enfrentados”.
Em paralelo, outro grupo da UFSM, liderado pelo professor Rinaldo Jose Barbosa Pinheiro e composto por professores e estudantes da Geografia e Geologia, também atuou fortemente na região, especialmente em áreas como Silveira Martins e Júlio de Castilhos. Assim, havia dois grandes núcleos de trabalho geotécnico, que se dividiram para atender a demanda regional.
Magnos conta que o trabalho de campo sempre foi algo recorrente para o grupo de pesquisa, mas a magnitude das enchentes e a intensidade das atividades trouxeram uma experiência inédita. “Costumamos dizer que no GEOMA é difícil separar onde termina o ensino, onde começa a pesquisa e onde entra a extensão. Muitos pensam a extensão como um trabalho social mais elementar — como ensinar uma comunidade a construir um muro ou rebocar uma parede — mas, para nós, a extensão também é ir até uma encosta, monitorar o talude e contribuir para a segurança de uma rodovia, gerando impacto direto na vida da população.”
Orientações práticas para situações inesperadas
Desde 2009, o trabalho do professor Leandro Michels, do Departamento de Processamento de Energia Elétrica, é focado em sistemas fotovoltaicos e na pesquisa aplicada à energia solar. Leandro é coordenador do laboratório do Instituto de Energia e Mobilidade (IEM, antigo INRI). Por meio do trabalho dos pesquisadores desenvolvido neste laboratório, a UFSM se tornou referência nacional no desenvolvimento e certificação de inversores fotovoltaicos, dispositivos essenciais para a conversão e segurança dos sistemas solares.
Quando as enchentes afetaram a região metropolitana, provocando alagamentos em residências com sistemas fotovoltaicos instalados, surgiram preocupações sobre os riscos de choque elétrico e sobre como proceder diante da situação inesperada de equipamentos submersos. O professor conta que, como esses equipamentos não foram projetados para operar imersos em água, sua equipe atuou para fornecer orientações técnicas essenciais ao governo e aos profissionais do setor, a fim de aumentar a segurança nas operações. Sua atuação, então, foi no sentido de aconselhar tecnicamente os órgãos de controle, como o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA), que o convidou para fazer palestras com orientações técnicas que pudessem ser difundidas entre os profissionais do setor elétrico.
O trabalho foi desenvolvido em equipe, com participação do professor Lucas Bellinaso e estudantes de doutorado do Laboratório de Ensaios Fotovoltaicos, que realizaram experimentos para entender melhor o problema e auxiliar no desenvolvimento de guias práticos. Leandro enfatiza que a atuação teve caráter voluntário e foi organizada dentro de um projeto de extensão da UFSM, buscando dar suporte técnico e prático em um momento de crise.
A receptividade das ações ficou evidente pela grande audiência das palestras: um dos vídeos alcançou 23 mil visualizações e contou com mais de mil pessoas assistindo simultaneamente, interagindo e tirando dúvidas. O professor destaca que, em eventos do setor, muitas empresas e técnicos relataram que adotaram suas recomendações para a recuperação dos sistemas afetados, e que muitas pessoas usaram as suas orientações como base para agir na recuperação e para evitar riscos nos sistemas alagados.
No aspecto acadêmico, embora a segurança já fosse um tema presente, o episódio reforçou a discussão teórica sobre a importância de planejar a instalação dos sistemas em locais adequados, longe de áreas sujeitas a inundações. Leandro explica que, dada a natureza dos equipamentos, “assim como aviões não são feitos para voar debaixo d’água”, não é viável projetá-los para funcionar submersos. Por isso, a principal lição foi a atenção à escolha dos locais de instalação dos equipamentos, para garantir segurança e durabilidade. Ele destaca que agora as pessoas estão mais preocupadas em evitar instalar fotovoltaicos em locais que possam ficar sujeitos a alagamentos, o que representa uma mudança importante no setor.
Leandro ressalta que a segurança elétrica é uma preocupação central em sua atuação, especialmente para proteger usuários e técnicos contra riscos de choque elétrico e incêndio. Ele explica que, além das pesquisas e palestras, sua equipe colaborou diretamente com órgãos reguladores como o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (INMETRO) para aprimorar normas técnicas e garantir maior segurança na operação dos sistemas.
Por fim, o professor salienta o caráter institucional do trabalho desenvolvido, que envolveu o conhecimento técnico e a infraestrutura do IEM da UFSM, além do esforço conjunto de pesquisadores e estudantes em um momento de crise. O objetivo de minimizar danos e orientar a população e os profissionais para a reconstrução segura das instalações elétricas foi alcançado. Para ele, foi uma ação voluntária e institucional, feita com o conhecimento técnico da UFSM, que colaborou num momento tão complicado, ajudando a população e os profissionais a agir com segurança e responsabilidade.
Balanço da Direção do CT um ano após as enchentes
A direção do Centro de Tecnologia, representada pelo professor Tiago Marchesan, fez, a convite da reportagem, um balanço da atuação da unidade em função das enchentes ao longo do último ano. Para ele, o compromisso social da instituição ficou patente: “Sempre que a comunidade chama, a gente não diz não. Eu sempre procuro ser dinâmico, montar rapidamente uma rede de contatos dentro e fora da universidade, e todos atendem. É bonito ver o quanto as pessoas se colocam à disposição”, enfatiza Marchesan. Para o diretor, esse engajamento coletivo faz do CT um espaço de ciência, pesquisa e — acima de tudo — solidariedade. “A gente se junta e ajuda. Esse é o espírito que nos move: contribuir com soluções técnicas, mas também com a mão estendida na hora mais difícil.”
“Eu tenho uma teoria de que o ser humano só é completo se ele consegue vivenciar tudo que a cidade, onde ele vive, é capaz de proporcionar”, defende. Segundo ele, ao participar de ações sociais, projetos de pesquisa, atividades de extensão e da própria sala de aula, os estudantes ampliam sua visão de mundo e desenvolvem habilidades que vão além do conteúdo técnico. “Se você não vivencia todas as disparidades e diversidades da sociedade, você vive numa agulha. E não é legal viver numa agulha. A única forma de expandir seu conhecimento e sua visão de mundo é vivenciando o mundo”, completa.
Situações como a enchente que afetou o Rio Grande do Sul em maio de 2024 deixam aprendizados profundos não só quanto à necessidade de colaboração, mas também quanto à urgência de repensar o modelo de ocupação urbana e a relação com o meio ambiente. “Você pode ser um cientista super reconhecido, mas vai ter que ajudar a pessoa a tirar lama de dentro de casa. Isso é viver a integridade da vida”, resume.
O professor destaca que os especialistas do CT contribuíram com seu conhecimento na formulação de diretrizes técnicas para a reconstrução de pontes no estado. Atualmente, há exigência de estudos hidrológicos antes da elaboração dos projetos. “Toda prefeitura que precisa de um projeto de ponte é obrigada a fazer estudo de regime pluvial da região para definir altura e vão. E isso tem colaboração direta da UFSM, com o Escritório Modelo, com a Ambiental e Sanitária, Civil”, relata.
Um ano após a tragédia, o professor avalia que o principal desafio é evitar que o episódio caia no esquecimento. “O ser humano esquece rápido. Cabe à universidade relembrar. Relembrar que nós vamos ter que, na beira dos rios, manter mata ciliar, que há áreas onde não se pode ocupar, que o aquecimento global é uma realidade”, alerta. Ele destaca que a ciência e a universidade têm o papel de produzir conhecimento e de atuar como memória social, e prevenir que os erros do passado se repitam. “Se você passar lá daqui a um ano, vai estar tudo igual. Talvez isso fique só nos livros ou na história do avô, que vai contar que em 2024 foi a maior enchente da história. Mas se a gente não mudar, daqui a 10 anos pode vir outra ainda maior”, reflete.
Para Tiago, a formação universitária precisa preparar estudantes não apenas para o mercado de trabalho, mas para a vida em sociedade. “Quem se preocupa, se coloca no lugar do outro, vai ser um cidadão melhor depois. E a universidade está aqui para ensinar, mas também, como universidade pública, para formar cidadãos melhores, que transformem a sociedade”, conclui.
As ações relatadas acima são exemplos que reforçam o papel social da Universidade pública enquanto espaço de formação técnica e científica mas, acima de tudo, humana. Em momentos de crise, atuações como essas mostram que o conhecimento produzido dentro da academia pode e deve ser colocado a serviço da sociedade.
Esta é a quarta e última reportagem da série #CTnaReconstrução.
A primeira, #CTnaReconstrução: relembre os projetos do CT-UFSM em resposta às enchentes de 2024;
a segunda, #CTnaReconstrução: na emergência, Centro de Tecnologia virou fábrica de móveis e ponto de arrecadação de utensílios domésticos;
e a terceira, #CTnaReconstrução: Escritório Modelo de Engenharia recupera pontes em rodovias da região santamariense, abordaram as principais ações dos grupos e projetos do CT que ampararam Santa Maria e região no auge das inundações.
Texto por Marina dos Santos, acadêmica de jornalismo, com supervisão da Subdivisão de Comunicação do CT/UFSM.
Fotos: acervo pessoal dos professores.
Vídeos: Canal Diário de Santa Maria e Canal Aranda Eventos
Quer divulgar suas ações, pesquisas, projetos ou eventos no site? Acesse os serviços de Comunicação do CT-UFSM! Siga o CT nas redes sociais: Facebook e Instagram!