“Nós estamos reunidos para lembrar dos nossos filhos na saudade, não mais no luto”. Proferida pelo presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Adherbal Ferreira, esta frase resume o sentimento da maioria das pessoas que estiveram presentes na UFSM durante a homenagem às vítimas do incêndio na boate Kiss. Realizada na parte externa do Espaço Multiuso, a homenagem ocorreu na manhã de hoje (27), dia em que se completa um ano da tragédia, a maior já registrada na história do Rio Grande do Sul. Das 242 mortes causadas pelo incêndio, 112 foram de alunos da universidade.
O ato realizado hoje na UFSM faz parte de uma série de homenagens, entre outras atividades, que ocorreram também no sábado (25) e domingo (26), dentro da programação do 1º Congresso Internacional Novos Caminhos – A Vida em Transformação. Ao longo do ato na universidade, a emoção foi pouco a pouco tomando conta de familiares de vítimas da tragédia, manifestando-se em lágrimas, mas também em abraços e palavras de consolo de todos em volta.
A homenagem começou com uma apresentação da cantora lírica Luciana Kiefer, professora de canto na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acompanhada ao teclado por Charles Medina Tones, aluno de Música da UFSM, ela cantou a Bachiana Brasileira Nº 5, de Villa-Lobos.
A música serviu de introdução para a parte mais carregada de simbolismo do evento, o plantio de uma árvore frutífera. A espécie escolhida para a homenagem foi a bergamoteira. O presidente e outros membros da AVTSM, acompanhados do reitor Paulo Burmann, encarregaram-se de plantá-la, ao que se seguiu o aplauso do público presente.
Logo após a conclusão do plantio, Luciana Kiefer cantou Canção da Primavera, música do compositor santa-mariense Dimitri Cervo criada sobre um poema de Mario Quintana. Finda a música, o presidente da associação, Adherbal Ferreira foi chamado para fazer o seu pronunciamento. Ele explicou o que significa para ele o simbolismo da árvore plantada junto ao Espaço Multiuso da UFSM:
“Que nós tenhamos plantado nesse congresso novos caminhos. Que essa semente brote e essa árvore cresça, frutifique, para que nós possamos ajudar vidas, ajudar a prevenir outras mortes.”
Ele enfatizou a necessidade de justiça para que haja paz de espírito entre familiares das vítimas e sobreviventes do incêndio, e para que a comunidade Santa Maria como um todo se recupere da tragédia. Falou também sobre a luta e os desafios que ele e outros familiares de vítimas têm enfrentado:
“Todos nós pais somos guerreiros e nossos filhos são verdadeiros heróis. São anjos que nos deixaram aqui para que possamos andar por novos caminhos, e estar com a vida em transformação todos os dias, mas para o bem, para o amor, para a paz. Porque nós vivenciamos momentos muito tristes durante esse um ano. Passamos por barreiras enormes. Atravessamos montanhas. E conseguimos estar aqui até agora por algum motivo, porque Deus nos permitiu que estivéssemos. E, se tudo isso aconteceu, eu não posso acreditar que não tenha um motivo.”
Ao final de seu pronunciamento, Adherbal falou também da necessidade de se trabalhar para que a tragédia na Kiss tenha como legado uma mudança de atitudes no país, no que se refere à segurança e à justiça.
“Nosso país perdeu com isso e nós temos que recuperar. Temos que tentar caminhar junto com essa dor, mas transformar tudo isso em algo de positivo, em algo bom, mas nunca esquecendo da justiça.”
O reitor da UFSM, Paulo Burmann, iniciou o seu discurso exaltando o “comprometimento voluntário anônimo” de centenas de servidores e estudantes da universidade no auxílio aos sobreviventes da tragédia e também a familiares e amigos de vítimas. Reconheceu ainda o trabalho neste sentido desenvolvido por profissionais do Exército, Brigada Militar, Corpo de Bombeiros, Aeronáutica, Defesa Civil, dentre outras instituições, e da sociedade civil como um todo.
Burmann lembrou o forte vínculo que tinham com a UFSM a maioria dos 242 mortos na tragédia. Além dos 112 que eram alunos da universidade, a boate Kiss vitimou vários egressos da instituição e também jovens que planejavam ingressar nela. Nas palavras do reitor, eram “estudantes que planejavam o futuro na universidade. Planejavam o futuro em uma sociedade mais humana, mais justa, mais fraterna, mais igualitária”.
O reitor ressaltou o compromisso da universidade para que a memória da tragédia não se apague e que o seu legado seja uma lição para todos, mesmo que tenha sido obtida a um preço alto demais:
“Que a partir da reflexão constante sobre essa tragédia possamos tirar lições, a mais cara das lições, a um preço que não estamos dispostos a pagar. E continuamos resistindo em pagar esse preço. A universidade, comprometida com o seu mais profundo espírito solidário e com ações proativas de parcerias, que precisam ser fortalecidas, se empenha em estar cada vez mais presente na formação de profissionais cidadãos. É uma das maneiras de expressar o seu comprometimento e respeito, assim como deve ser fazer solidária nesse momento.”
A homenagem às vítimas da Kiss encerrou-se com uma apresentação da banda da 6ª Brigada de Infantaria Blindada, que tocou músicas como Carinhoso, Hey Jude e My Way. A última música, e também a que mais emocionou o público, foi o tema do filme 1492 – A Conquista do Paraíso, tradicionalmente tocada em solenidades de formatura da UFSM.
Para introduzi-la, o regente da banda, tenente Jorge Berghahn, fez um pequeno discurso de improviso, no qual justificou a escolha da música de encerramento. Após expressar os seus sentimentos de solidariedade com relação aos pais e familiares dos jovens mortos na tragédia, ele disse que o título da música faz referência ao paraíso, lugar “onde eles estão agora”. Foi ao som desta música que o público presente encheu balões brancos e os soltou ao céu, encerrando o ato em homenagem às vítimas.