
Em um país estrangeiro, onde tudo é novo e diferente, a língua, os rostos, os costumes, há um lugar onde muitas pessoas conseguem se sentir em casa novamente: a cozinha. É ali que as lembranças ganham cheiro e sabor, e que a saudade toma forma de algo acolhedor. A comida tem o poder de, mesmo que por alguns minutos, nos transportar para lugares e momentos onde o afeto florescia.
Foi com essa essência que a pesquisadora colombiana e egressa da UFSM Diana Patricia Bolaños Erazo escreveu a tese “De Colombia con amor: a comida no processo de construção de memória coletiva das famílias de refugiados colombianos em Santa Maria, RS”. O trabalho foi desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSM, sob orientação da professora Maria Catarina Chitolina Zanini, coordenadora do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NECON/UFSM), e recentemente foi contemplado com o Prêmio de Teses, Dissertações e Monografias das Cátedras Sérgio Vieira de Mello, promovido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
A tese, de caráter etnográfico, acompanhou o cotidiano de famílias colombianas em Santa Maria entre 2019 e 2022. A pesquisa observou práticas como o cultivo e a busca por temperos, o preparo de pratos típicos, a partilha de refeições e os vínculos criados por meio da comida, tanto entre conterrâneos quanto com brasileiros.
A pesquisadora nasceu na Colômbia, é graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidad del Valle (Cali/Colômbia) e concluiu mestrado e doutorado na UFSM. Em sua dissertação, estudou a migração de brasileiros na Colômbia. Para ela, a ideia de ter a comida como artefato de pesquisa começou a surgir enquanto ainda estava escrevendo a sua dissertação, na qual realizou um trabalho de campo sobre brasileiros na Colômbia e observou o quanto o ato de fazer e partilhar a comida passou a se tornar uma importante ferramenta de reafirmação e inserção para os migrantes dentro do país de destino. “Meu interesse era indagar sobre os rearranjos familiares e de gênero a partir da experiência migratória, mas sempre que ia a campo a questão da comida aparecia, fosse como produto das relações: nas mesas de restaurantes, cafés e bares que frequentávamos, fosse como produtora: evocando sentimentos e memórias do país de origem”, relata.
Anos após a sua pesquisa de dissertação e agora, com ela própria sendo uma migrante colombiana dentro do Brasil, Diana decidiu realizar sua tese de doutorado focando em refugiados colombianos no Brasil e nessa importante relação que se mantém com a comida durante o período de migração. Assim, partindo do fato de que a comida do país de origem, neste caso, além de dar sustento fisiológico, também é considerada uma forma de se narrar e se recolocar no mundo após a experiência traumática da expulsão do país de origem, que caracteriza a experiência refugiada, Diana iniciou a sua pesquisa em 2019.
Para iniciar o trabalho, a pesquisadora contou com os laços que já havia formado dentro da comunidade colombiana presente em Santa Maria. A aproximação com essas famílias ocorreu de forma espontânea, enquanto buscava criar vínculos e na esperança de manter contato com a sua cultura. “Quis me manter próxima da comunidade de colombianos em Santa Maria para poder praticar a língua, descobrir com os mais antigos como se faziam as coisas e, claro, comer arepas — uma espécie de pão redondo e achatado feito à base de milho, podem ser grelhadas, assadas ou fritas, e costumam ser recheadas ou acompanhadas por queijos, ovos, carnes ou manteiga — sempre que possível. Mas essas relações foram se intensificando e assim viramos amigos que se reuniam aos sábados à noite”, dessa forma, Diana sabia que queria trabalhar com e entre as famílias de refugiados com as quais já tinha vínculos, confiança e amizade quando decidiu iniciar sua pesquisa de doutorado.
Mas como todo trabalho têm seus obstáculos, a autora conta que durante o processo de coleta de dados e escrita da tese, tentar separar e transitar entre a “Diana amiga” e a “Diana pesquisadora” foi complicado, já que por mais que as famílias soubessem que estavam participando da pesquisa, ela continuava sendo a mesma pessoa de sempre, então ao chegar em casa e enfrentar às narrativas e dados, precisava diferenciar o que lhe havia sido dito como amiga e o que poderia entrar na pesquisa.
Diana ressalta que para as famílias refugiadas, a comida se torna muito mais do que uma ferramenta de resistência, mas sim, uma mostra de como as mulheres agem em momentos de crise, sustentando a vida para garantir a sobrevivência de toda sua família e conterrâneos. “Estamos falando de pessoas que se deslocaram contra sua própria vontade. Eles foram expulsos do seu país de origem pelo ‘fundado temor de perseguição ou morte’ que é a base para a definição da condição de refugiado. Na prática, eles teriam todos os motivos para não se entenderem mais como colombianos, para não quererem ser lidos como tais, para não manter laços com o país de origem e para não receber em casa, tão facilmente, outros conterrâneos. Mas não é o que vemos. Com a reafirmação das suas identidades por meio da comida e da comensalidade, com a evocação de lembranças de um passado comum, eles ressignificam as dores sofridas e abrem caminho para novas lembranças que são construídas nas cozinhas das suas casas, junto aos colombianos que recebem”, explica. Essa resistência ocorre quando, de forma articulada e cotidiana, as famílias — as mulheres — utilizam temperos fundamentais para que o gosto das comidas seja semelhante e lembrem àquelas que eram consumidas na Colômbia, quando elas enfrentam filas, percorrem mercados e prateleiras na busca do ingrediente ideal, que irá garantir que a comida colombiana esteja presente em suas mesas.