Pesquisadores do Laboratório de Arqueologia, Sociedades e Culturas das Américas (Lasca), da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), encontraram, entre os mais de 500 itens, fragmentos de dois tipos de telhado nas escavações nos fundos do Museu Gama d’Eça, na Rua do Acampamento. A pesquisa, coordenada pelo professor e arqueólogo André Luís Ramos Soares, concluiu que os fragmentos são de eternit, usada na cobertura original do palacete em que viveu Astrogildo de Azevedo, e de capa e canal, utilizada no anexos construídos posteriormente.
O eternit, como explica o professor André, pode ser considerado o avô ou o bisavô do brasilit. É um tipo de cobertura avermelhada de fabricação belga e vendida no início do século passado no Rio de Janeiro. Próximo às telhas, foram encontrados parafusos de fixação com a inscrição em alemão “werk”, que pode ser traduzido como “fábrica”. A partir da pista dos parafusos, os arqueólogos conseguiram identificar em um catálogo de anúncios do final do século XIX o eternit, o que contribui para a hipótese de que faziam parte da cobertura do palacete de Azevedo no início do século passado. Durante a apuração desta reportagem, na tarde do dia 26 de agosto, a equipe do Lasca encontrou um parafuso fixado em um pedaço de eternit na área de escavação, fato que contribuiu para a tese.
Já a capa e canal é uma telha cerâmica vermelha que permite o encaixe de umas nas outras – uma unidade para cima e a outra invertida -, conferindo uma estética mais rústica. O professor André acredita que como não estava disponível a telha eternit no período das benfeitorias, o novo proprietário, Miguel Beleza, genro de Azevedo, optou por usar nos anexos ao prédio original a telha capa e canal.
Indícios do palacete de Azevedo e das transformações de Miguel Beleza
O antigo palacete de Azevedo, onde funciona o Museu Gama d’Eça, foi construído entre 1912 e 1913 pelo escritório de engenharia Rudolph Ahrons no local onde funcionou, no final do século XIX, o consultório do médico Pantaleão Pinto e, a partir de 1882, a Farmácia Daudt. De acordo com o Museu Gama d’Eça, embora não existam fontes documentais, o projeto é atribuído a Theodor Wiederspahn, integrante do escritório de engenharia, e responsável por prédios importantes do Rio Grande do Sul, como o Hotel Majestic, onde hoje funciona a Casa de Cultura Mario Quintana. Ambas as edificações pertencem ao mesmo movimento arquitetônico, o eclético, caracterizado pela combinação de elementos de outras escolas e de diferentes materiais.
O coordenador do Lasca, professor André Soares, acredita que o palacete devia se destacar bastante na Rua do Acampamento de mais de um século atrás. A construção com dois andares e com telhado vermelho contrastaria com o casario modesto de portas e janelas.
Antes de ser sede do Gama d’Eça, o prédio passou por diferentes transformações. As mais significativas ocorreram após a morte de Azevedo, quando sua filha Stela e seu genro Miguel Beleza herdaram a propriedade em 1946. As principais modificações estão relacionadas ao jardim, que ganhou naipes de baralho, um pequeno zoológico com espécies exóticas e piscinas infantil e adulta – consideradas as primeiras de Santa Maria.
Durante a escavação do Lasca, uma surpresa: debaixo dos ladrilhos paulistas, feitos de caquinhos de lajota, surgiu o que seria um outro paisagismo com tijolos inteiros. Se os ladrilhos remetem ao projeto idealizado por Beleza, o segundo, provavelmente seja o original do palacete de Azevedo. Até hoje outros elementos do período em que a filha e o genro do médico viveram podem ser notados, como a área destinada à piscina adulta e os desenhos dos naipes de baralho.
Após a morte do casal, que não teve filhos, o palacete ficou desocupado. Inicialmente a Prefeitura firmou contrato de locação, em 1963, mas acabou declarando de “utilidade pública” com o intuito de, mais tarde, desapropriar, devido ao interesse manifestado pela Universidade. Durante a ditadura militar, de 1964 a 1984, a sede administrativa da Prefeitura funcionou ali. Em 1984, o Município se transferiu para a rua Venâncio Aires, no Parque Itaimbé. No ano seguinte, a UFSM instalou, no antigo palacete e nos anexos, o Museu Gama d’Eça, que funcionava no campus, e o Museu Victor Bernasi, que estava na sede da SUCV. Somente em 2013 a UFSM assumiu a titularidade do terreno, sob a condição de que seja mantido o museu.
Arqueologia histórica x arqueologia pré-histórica
A equipe do Lasca realiza as escavações em uma área de 25m² nos fundos do museu, local do antigo jardim, com autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O objetivo da pesquisa é identificar as camadas de ocupação humana a partir da materialidade.
Em meio aos objetos encontrados, destacam-se indícios da construção do palacete de Azevedo, do período de transformações idealizadas por Beleza. Os pesquisadores acreditam que o atual quintal do museu tenha funcionado como um aterro, ou seja, local em que as pessoas deixavam material de descarte das construções. “O que é lixo para alguns, para nós é história”, comenta o professor André Soares, coordenador do Lasca.
Há objetos mais antigos que os da construção do palacete original. Um item interessante é um artefato de vidro, que a equipe de arqueologia estima ser indígena. Muito antes do acampamento militar do final do século XVIII, que deu origem a Santa Maria, a região teve aldeamentos guaranis.
Até o momento, a equipe do Lasca já encontrou mais de 500 peças de diferentes materiais, como lítico, cerâmica, louça, vidro, metal, plástico, osso, carvão e sedimento de solo. Entre os achados estão porcelana de origem inglesa e brinquedos do século XIX, frasco de perfume, cacos de garrafas, ossos de animais silvestres e de animais usados como alimentação. “Temos aqui restos de um churrasco”, brinca o professor.
Diferentemente da arqueologia pré-histórica, realizada onde há indícios de sociedades sem escrita, como as cavernas e os sítios com inscrições rupestres, a arqueologia histórica se preocupa com a materialidade de períodos mais recentes. No Brasil, a janela temporal compreende mais de cinco séculos e pode ser estendida até algumas décadas atrás.
“Nas escavações pré-históricas tem um deslumbramento visual”, comenta o historiador Patrick Ventura, mestrando em Patrimônio Cultural pela UFSM, sobre os dias de campo em cavernas e sítios rupestres. Nas históricas, a escavação pode acontecer num lugar até então despercebido do cotidiano e que guarda interesse histórico, como o entorno da rua do Acampamento. “Estamos aqui para reescrever a história ou quem sabe escrevê-la. O legal é contarmos a história que não está nos livros de história. É a vida cotidiana”, declara o coordenador do Lasca, professor André Soares..
Uma escavação no centro de uma cidade não é algo comum no Brasil. Por isso, o Lasca deve convidar pesquisadores de outras instituições para que tenham a oportunidade de participar de um dia de campo e, também, contribuir com os estudos. O primeiro convidado é o arqueólogo Suliano Ferrasso, que faz doutorado na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Suliano, especialista em zooarqueologia, deve contribuir com informações sobre os achados de fauna silvestre, que podem remeter ao antigo zoológico de Miguel Beleza ou quem sabe a períodos mais distantes.
Soldadinhos de chumbo, arquétipos dos papéis na guerra
Entre os objetos encontrados pela equipe de pesquisadores da UFSM, estão dois soldadinhos de chumbo do final do século XIX. Um dos bonecos militares traz consigo um trompete e o outro não traz nenhum acessório.
Os brinquedos carregam arquétipos, ou seja, representações de papéis sociais que as crianças poderiam desempenhar na vida adulta. “Os objetos em geral representam os valores da época e contribuem para a formação dos sujeitos infantis”, explica Marco Bottega, estudante do 4º semestre do curso de História que participa das escavações. É importante ponderar que o conceito de infância mudou e muito. No que se refere ao século XIX, a criança era percebida como um ‘pequeno adulto’ e os brinquedos diferiam conforme o gênero.
O historiador Patrick Ventura complementa que bonecos militares guardam relação com períodos de guerra. O pesquisador cita que bonecos militares encontrados, por exemplo, na França se referem a guerras na Europa e têm coloração relacionada com os exército que representavam. “Os soldadinhos daqui são diferentes dos que encontramos em catálogos. Eles não têm formato de rosto, o que ajuda a dar um datação”, destaca.
Além de soldadinhos do final do século retrasado, os pesquisadores identificaram brinquedos mais recentes e que, provavelmente, pertenciam a outras crianças, que são um botão vermelho de jogo de futebol de botão, uma perna e um braço de bonecas feitas de plástico.
Exposição no Lasca
Os itens encontrados em campo passam por diferentes etapas no laboratório. É lá que ocorre, depois da limpeza, o trabalho de identificação por meio de diferentes técnicas, como o uso de microscópio para melhor leitura e comparação com fotos em catálogos, e, depois, a categorização. As informações são inseridas em um banco de dados, que, por enquanto, é interno. A museóloga Aline Vargas, do Lasca, ressalta que a instituição deve adquirir o Tainacan, um programa usado para repositório digital e que permitirá o acesso de pesquisadores de todo o mundo.
Outra etapa fundamental é a publicação, que ajuda na disseminação das informações e na troca com outros pesquisadores. Estão previstos três artigos pela equipe do Laboratório, um sobre a escavação em geral, outro que relata a pesquisa das telhas e o último que conta o achado dos soldadinhos de chumbo.
Mesmo antes da conclusão do trabalho de campo, parte das peças devem ser expostas à comunidade na sede do Lasca, localizada ao lado do prédio da Antiga Reitoria, na Rua Floriano Peixoto. Aline adianta que em novembro a nova mostra do laboratório poderá ser visitada já com itens encontrados na escavação no jardim do Gama d’Eça.
Linha do tempo
Final do século XIX – Local abrigou uma edificação onde funcionava o consultório do médico Pantaleão Pinto
1882 – Parte do prédio foi cedido para o farmacêutico João Daudt Filho e funcionou como sede da Farmácia Daudt
1912 – Palacete de Astrogildo de Azevedo, onde funcionavam residência e consultório médico, começou a ser construído por empresa de engenharia Rudolph Ahrons
1946 – Stela Azevedo, filha de Astrogildo, herdou a propriedade. O marido dela, Miguel Beleza, coordenou uma série de mudanças de lugar, principalmente no jardim
1963 – A prefeitura firma contrato de locação do prédio após a morte do casal que não deixou herdeiros
1964 – O edifício passou a ser considerado de utilidade pública e, depois, foi desapropriado pela União. A partir deste ano até 1984, a Administração Municipal, a partir de comodato com a União, usou o palacete como sede
1985 – A UFSM transfere o Museu Gama d’Eça, do campus, e o Museu Victor Bersani, do prédio da SUCV, para o palacete
2013 – A titularidade do ´prédio foi transferida da União para a Universidade
(Fonte: Museu Gama d’Eça)
Texto: Maurício Dias
Fotos: Daniel Michelon de Carli