
Crédito: Matheus Fernandes.
O voo é uma habilidade rara no mundo animal. Entre os vertebrados, ele evoluiu apenas três vezes: em morcegos, aves e pterossauros, estes extintos há muito tempo. Os pterossauros foram os pioneiros, dominando os céus há mais de 220 milhões de anos, muito antes do surgimento dos primeiros parentes das aves, como o Archaeopteryx, há cerca de 150 milhões de anos. Enquanto os cientistas possuem um registro fóssil detalhado que esclarece como os cérebros das aves evoluíram para o voo, a história dos pterossauros era muito menos clara — até agora.
Um fóssil que muda o panorama
Em um novo estudo publicado na revista científica Current Biology, uma equipe internacional revela como os pterossauros evoluíram as estruturas neurológicas necessárias para o voo ativo. “O grande avanço”, disse Mario Bronzati, pós-doutorando pela Fundação Alexander von Humboldt na Universidade de Tübingen, na Alemanha, e autor principal do estudo, “foi a descoberta de um parente antigo dos pterossauros, um pequeno arcossauro lagerpetídeo chamado Ixalerpeton, proveniente de rochas triássicas de 233 milhões de anos no Brasil.”
“Já tínhamos informações abundantes sobre as aves primitivas e sabíamos que elas herdaram a configuração básica do cérebro de seus ancestrais dinossauros terópodes”, acrescentou o coautor Lawrence Witmer, professor de Anatomia no Ohio University Heritage College of Osteopathic Medicine. “Mas os cérebros dos pterossauros pareciam surgir do nada. Agora, com as primeiras informações sobre o cérebro de um parente antigo dos pterossauros, vemos que eles essencialmente construíram seus próprios ‘computadores de voo’ do zero.”
Para reconstruir essa história evolutiva, os pesquisadores utilizaram técnicas de imagem 3D de alta resolução, incluindo microtomografia (microCT), para reconstruir as formas cerebrais de mais de três dúzias de espécies. Isso incluiu pterossauros, seus parentes próximos como Ixalerpeton, os primeiros dinossauros e precursores das aves, além de crocodilos e aves modernos, e uma grande variedade de arcossauros do Triássico, o grupo mais amplo que inclui todos esses animais. A microtomografia computadorizada do fóssil de Ixalerpeton foi realizada no Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto.
“Em seguida, usando análises estatísticas com informações sobre o tamanho e a forma tridimensional dos moldes internos do crânio, conseguimos mapear as mudanças graduais na anatomia cerebral que acompanharam a evolução do voo”, explicou o coautor Akinobu Watanabe, professor associado de Anatomia no New York Institute of Technology College of Osteopathic Medicine.
O voo é uma forma de locomoção fisiologicamente exigente e, por muito tempo, presumiu-se que exigisse grandes adaptações neurológicas, incluindo aumento do tamanho do cérebro, para coordenar as informações sensoriais e motoras complexas necessárias ao voo ativo. Estudos anteriores da estrutura cerebral dos pterossauros já haviam mostrado que eles realmente compartilhavam algumas semelhanças neurológicas com os precursores das aves, como o Archaeopteryx, incluindo certo aumento de regiões cerebrais como os hemisférios cerebrais e o cerebelo, envolvidos na integração sensório-motora, além da ampliação de centros visuais, como os lobos ópticos.
Ixalerpeton, o lagerpetídeo parente próximo dos pterossauros, apresentava algumas, mas não todas, as características neurológicas dos pterossauros. Como observa Bronzati, “os lagerpetídeos provavelmente eram animais arborícolas, e seus cérebros já exibiam traços ligados à visão aprimorada, como um lobo óptico aumentado, uma adaptação que ajudava esses animais a navegar por um ambiente com muitas árvores e que, mais tarde, pode ter ajudado seus parentes pterossauros a conquistar os céus — mas eles ainda não possuíam características neurológicas essenciais dos pterossauros”.

Lagerpetídeos como Ixalerpeton tinham cérebros com forma intermediária entre os arcossauros mais primitivos e os pterossauros, mas ainda mais semelhantes aos dos primeiros dinossauros. Com exceção do lobo óptico ampliado, que ocupa uma posição no cérebro semelhante à observada em pterossauros, aves e seus parentes próximos, há pouco em Ixalerpeton que antecipe o que surgiria nos pterossauros. Uma característica única do cérebro desses animais é o flóculo extremamente expandido, uma estrutura do cerebelo envolvida no processamento de informações sensoriais vindas das asas membranosas e que ajuda a manter os olhos fixos em um alvo durante o voo. No caso de Ixalerpeton, o flóculo não era expandido como nos pterossauros, mas sim semelhante ao flóculo mais modesto de outros arcossauros, incluindo aves primitivas e seus parentes terópodes não avianos.
As novas análises também mostram que os pterossauros mantiveram cérebros relativamente pequenos. “Embora existam algumas semelhanças entre pterossauros e aves”, disse o coautor Matteo Fabbri, professor assistente de Anatomia Funcional e Evolução na Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, “os cérebros deles eram na verdade bastante diferentes, especialmente em tamanho. Pterossauros tinham cérebros muito menores que os das aves, o que mostra que não é necessariamente preciso ter um cérebro grande para voar.”
O que a descoberta revela sobre o voo
Surpreendentemente, o formato geral do cérebro dos pterossauros se assemelhava mais ao de pequenos dinossauros semelhantes a aves, como troodontídeos e dromeossaurídeos — animais que tinham pouca ou nenhuma capacidade de voo ativo. Ainda assim, pterossauros e aves representam dois experimentos totalmente independentes na evolução do voo. As aves herdaram um cérebro já adaptado de seus ancestrais dinossauros não voadores, enquanto os pterossauros evoluíram cérebros aptos ao voo ao mesmo tempo em que desenvolveram suas asas.
Os autores observam que o grande tamanho cerebral das aves provavelmente surgiu depois, associado ao aumento da inteligência e a comportamentos mais complexos, não ao ato de voar em si. Uma conclusão importante do estudo, segundo Bronzati, é que “aparentemente, não é preciso um cérebro grande para decolar, e a posterior expansão dos hemisférios cerebrais tanto nas aves quanto nos pterossauros esteve provavelmente muito mais ligada ao avanço da cognição do que ao voo propriamente dito”.
Outra conclusão importante é que o trabalho de campo em paleontologia continua sendo um motor de novas descobertas. Como observa o coautor Rodrigo Temp Müller, paleontólogo da Universidade Federal de Santa Maria, no Brasil, “as descobertas do sul do Brasil nos proporcionaram percepções extraordinárias sobre as origens de grandes grupos de animais, como dinossauros e pterossauros. A cada novo fóssil e estudo, conseguimos enxergar com mais clareza como eram os primeiros parentes desses grupos — algo que, até poucos anos atrás, teria sido quase inimaginável.”
Com informações do CAPPA/UFSM