Às quartas-feiras, o movimento é intenso para um grupo de professores, doutorandas, mestrandas e graduandas do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Entre salas da Universidade e escolas municipais, o vai e vem é constante, reflexo das ações do projeto Fluir, que busca refletir sobre a educação e as aprendizagens de crianças em contextos de vulnerabilidade. Contemplada pelo edital do Programa de Extensão da Educação Superior na Pós-Graduação (PROEXT-PG UFSM Além do Arco), a iniciativa tem como base um compromisso coletivo com a infância. “No princípio de formação do Coletivo temos um objetivo muito claro, um posicionamento radical, que é essa defesa das crianças em situação de vulnerabilidade. Essa é a espinha dorsal”, afirma Fabiane Bridi, professora do Departamento de Educação Especial da UFSM e atual coordenadora do projeto.
Ir e vir
Os encontros se alternam entre escolas e Universidade. Em uma das semanas, o grupo – formado por aproximadamente 134 integrantes da UFSM – se divide em três frentes, cada uma direcionada a uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) de Santa Maria: Chácara das Flores, Montanha Russa e Monte Bello. No espaço da escola, são montados os territórios educativos intersetoriais, com o objetivo de proporcionar espaços onde a brincadeira é entendida como forma de aprendizagem para as crianças.
Espaços onde as professoras possam discutir problemas da escola, possibilidades de mudanças e planejar ações. Onde monitoras e estagiárias podem refletir sobre suas atuações. E onde funcionárias – como faxineiras e cozinheiras – tenham espaço para compartilhar dores e desafios do ambiente escolar. “É um espaço de construção, de invenção, de criatividade – para nós e para as crianças”, define Fabiane.
Na semana seguinte, o encontro acontece na Universidade: uma sala ampla do Centro de Educação se enche de vozes, de abraços e de pessoas à medida que as professoras – tanto das escolas quanto da UFSM – chegam para um espaço de formação. A disciplina de extensão ‘Territórios Educativos Intersetoriais: práticas extensionistas em contextos de vulnerabilidade’ é dedicada à discussão sobre educação e as infâncias. Para os pós-graduandos, ela também integra o processo de pesquisa.
Denise Ferreira da Rosa, doutoranda em Educação e integrante do projeto, explica que a disciplina é uma oportunidade de integração entre acadêmicos e professoras das escolas: “É um espaço de escuta e de troca de experiências”, assinala. Ao mesmo tempo em que oportuniza esse diálogo e o compartilhamento de dificuldades entre as professoras das escolas, também representa para elas a chance de retomar o contato com a Universidade. É o caso de Juliana Cezimbra, professora e gestora na EMEF Chácara das Flores, que ressaltou a volta aos estudos e a reaproximação com a Universidade como um dos principais motivos para frequentar o espaço da disciplina ofertado pelo Fluir.
Vulnerabilidades das infâncias
Entre o final de abril e o início de maio de 2024, chuvas torrenciais atingiram o estado do Rio Grande do Sul e provocaram uma das maiores tragédias climáticas, sociais e políticas do país. A cidade de Santa Maria foi uma das primeiras afetadas. Na região leste, ocorreram deslizamentos de terra no Morro do Canário, no bairro Itararé.
Priscila Arruda Barbosa, professora na EMEI Criança Cidadã e moradora do bairro, lembra que, diante da tragédia, a preocupação com as crianças desabrigadas se tornou urgente. “Começamos a perceber que a educação sozinha não daria conta. As crianças precisavam de assistência, de abrigos, de novas casas, de novos locais para morar, de equipamentos, de mobiliários, de saúde, de alimentação, de nutrição, de estar bem fisicamente e emocionalmente”, destaca Priscila.
Foi nesse contexto que a UFSM se movimentou para responder às demandas sociais. Taciana Camera Segat, professora do Departamento de Metodologia de Ensino no Centro de Educação da UFSM, conta que o Coletivo Fluir surge a partir dessa calamidade climática e da iniciativa de um grupo de professoras comprometidas com as infâncias, que passaram a visitar abrigos, buscando compreender tanto o impacto vivido pelas crianças quanto o papel da Universidade diante dessa realidade.
Apesar da angústia e da dor de ver as crianças desabrigadas naquele período, Priscila guarda com carinho o início do projeto, que hoje ela considera uma mola propulsora. “Ali começa esse movimento muito grande, que depois a professora Taciana dá o nome de Coletivo Fluir. Eu vi nela uma necessidade de servir socialmente – pelo curso do qual ela é formadora, um curso de pedagogia que é uma ciência da educação e que trabalha com crianças”, destaca. Priscila pontua que foi um estreitamento de laços: “Não é olhar a Universidade de lá e a sociedade de cá. É um olhar da Universidade sobre o que eu posso fazer pela minha sociedade”.
Fluir
O que surgiu como ação pontual se transformou em demanda, virou projeto e foi contemplado no edital do Proext-PG. O primeiro passo foi a criação de territórios para as crianças: espaços de brincadeiras, de diversão, de convivência uns com os outros. São organizados a partir de objetos diversos, que podem ser tanto brinquedos quanto aquilo que as educadoras chamam de materiais não estruturados: galhos, folhas, caixas de ovo, bacias, caixas de remédio, esmaltes, géis de cabelo, secadores, alimentos coloridos, objetos de cozinha e outros itens que, mesmo não sendo brinquedos, provocam e incentivam o brincar.
Nesses espaços, crianças e adultos trocam conhecimento. Taciana afirma que o foco não está no ensino, mas na aprendizagem. “Não é sobre como ensinamos, porque não queremos ir lá ensinar. Queremos criar espaços em que as crianças possam se movimentar, transitar e viver experiências que oportunizem aprendizagens. Que elas construam conhecimento. A ideia é oportunizar espaços de aprender”, explica. Em cada escola, são pelo menos cem crianças, desde bebês até crianças de seis anos, que participam dos encontros. “São um milhão de possibilidades de aprendizagem”, define Taciana.
A partir da formação deste primeiro território, voltado às crianças, surge um segundo. Fabiane explica que, ao propor o projeto às escolas, receberam a demanda da contrapartida de diálogo com as professoras, que sentiam necessidade de formação continuada – nem sempre suprida pelo Estado. “A partir dali se estabelece uma relação de construção de demanda, que é algo que é construído coletivamente, mas também de construção de vínculo”, pontua Fabiane. Para Taciana, esse movimento traduz o conceito que dá nome ao projeto: “Ele parte das crianças, aí flui para os professores, vai para a gestão e então abraça esse quarto território, destinado a processos de formação mais pontuais com professores”, reflete. Esse quarto território é a disciplina de extensão.
Dores da educação pública
Juliana Cezimbra sente que a gestão em escola pública é, por vezes, um trabalho solitário. “Quando tu vê os professores sobrecarregados, sem ânimo para trabalhar porque faltam horas para planejamento, faltam professores e não tem quem substitua, isso nos desmotiva, nos deixa entristecidos”, desabafa. Para ela, a educação básica deveria ser prioridade de todos os governos, como política pública.
Essa percepção também é de Priscila, que cita ainda a saúde mental dos professores como preocupação decorrente da precarização dos espaços educativos.
Esperançar a educação
O projeto se constitui também a partir de perspectivas freireanas da educação, adaptadas às realidades atuais e às infâncias. “O nosso projeto é muito freireano. Não estamos lá para ensinar verdades absolutas, mas para oportunizar que as crianças aprendam”, pontua Taciana.
Para Fabiane, trata-se de seguir o princípio de Paulo Freire de que o conhecimento não está apenas com o professor: crianças, adolescentes, adultos e idosos também sabem – sobre suas realidades, seus contextos, suas experiências. Cabe ao educador valorizar esse conhecimento e promover o diálogo, em uma troca em que o professor ensina aprendendo e o estudante aprende ensinando.
Juliana destaca que o projeto enxerga a criança de forma ampla e integral: ainda que em situação de vulnerabilidade, ela é atravessada por sentimentos, por relações sociais e familiares.
Impactos
Embora o foco esteja nas infâncias, os impactos do Coletivo Fluir se estendem para além delas. Denise Ferreira da Rosa observa que, em uma das escolas, colaboradoras, monitoras e estagiárias também têm sido mobilizadas pelas formações realizadas nos territórios, ganhando visibilidade e reconhecimento pela importância de suas ações e compreensões sobre o cuidado, as infâncias e os processos educativos. Esse caráter formativo e transformador não atinge apenas os profissionais da escola. Para acadêmicos e acadêmicas da graduação e da pós-graduação, Denise define o Coletivo Fluir como um espaço de vivência, pesquisa e extensão, o que contribui para o amadurecimento acadêmico e profissional.
A repercussão das ações se reflete ainda em outros âmbitos. Há uma crescente demanda por participação no projeto — atualmente presente em três escolas, mas procurado por outras instituições, inclusive de fora de Santa Maria. Mais do que o grupo consegue atender, de acordo com Taciana.
Para Fabiane, o Fluir não transforma somente as escolas, por meio das professoras, das crianças e das funcionárias, mas também os modos de fazer docência e pesquisa. “Isso começa a habitar o teu cotidiano. Você passa a falar muito sobre isso, a citar exemplos, a experienciar, a colher informações, a observar também”, explica Fabiane.
Esse movimento reverbera também no interesse pela Universidade: houve aumento na procura por vagas da pós-graduação pelas professoras das escolas públicas, além da ampliação de encontros e debates com gestores educacionais, tanto do município quanto da região. Fabiane acredita que a maior expectativa do projeto seja contribuir para alterar políticas públicas e propor novas formas de se pensar a educação. “Eu acho que esse é o nosso movimento: quanto mais pessoas conseguirmos envolver, maior a rede, maior a proteção, mais a defesa das crianças”, conclui Taciana.
Próximos passos
As atividades nas escolas e na disciplina de extensão continuam durante o ano. As ações do Coletivo Fluir podem ser acompanhadas pelo instagram (acesse neste link).
Reportagem e fotografias: Samara Wobeto, jornalista
Edição de texto: Luciane Treulieb, jornalista
Colagem de capa: Evandro Bertol, designer