O Projeto de Lei (PL) 2159/2021, que propõe uma reforma na legislação ambiental brasileira, foi aprovado pelo Senado em maio deste ano e gerou forte reação da comunidade ambientalista. Apelidado de “PL da Devastação”, o texto, que deve ser votado ao longo desta semana na Câmara dos Deputados, é criticado por flexibilizar regras do licenciamento ambiental — processo que autoriza atividades com potencial de causar danos à natureza.
Entre os trechos mais polêmicos, está a previsão de dispensa total de licenciamento para determinadas ações, como cultivo agrícola comum, pecuária extensiva ou semi-intensiva, pequenas usinas de reciclagem, sistemas públicos de água e esgoto, além de obras emergenciais ou de manutenção. Além disso, com a redução da fiscalização, as comunidades indígenas passam a correr riscos de terem suas terras invadidas e degradadas.
Para além das críticas técnicas, o projeto reacendeu um debate dentro da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM): a ausência de diálogo entre o Congresso Nacional e os saberes científicos produzidos nas universidades na formulação de políticas ambientais.
Pesquisadores alertam sobre riscos devido a falta de aporte técnico
Para a professora Josita Monteiro, do curso de Engenharia Florestal e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política e Legislação Ambiental (Nepla), “a flexibilização de certas normas sempre traz algum risco”. Ela explica que, somadas à carência de profissionais capacitados nos órgãos de fiscalização, essas mudanças podem intensificar a degradação ambiental em diversas regiões. “Os fiscais em nível municipal, por exemplo, na maioria das vezes são contratados sem especialização. Isso dificulta o monitoramento e permite que mais situações de irregularidade ocorram”, explica a pesquisadora.
Josita também critica a falta de embasamento técnico na formulação de leis ambientais. Segundo ela, a escuta científica é essencial para evitar normas vagas ou ambíguas. “No Código Florestal, por exemplo, há especificações simplórias e com grau de subjetividade. Isso gera dissonância entre o que a lei prevê e o que a técnica considera adequado, e isso afeta diretamente o ambiente”, avalia.
Distanciamento entre ciência e política
A professora Cláudia Hertes de Moraes, do Departamento de Comunicação da UFSM em Frederico Westphalen e coordenadora do Programa de Educação Tutorial (PET) Educom Clima, também observa um enfraquecimento da relação entre ciência e Estado. “Passamos por uma onda de negacionismo muito forte durante a pandemia, e isso afetou a relação das universidades com o restante da sociedade”, analisa Cláudia.
Ela também destaca que o distanciamento das universidades com certos setores da sociedade precisa ser enfrentado. “O ingresso de estudantes de diversas classes sociais tem se mostrado cada vez mais necessário. Quando limitamos o acesso, perdemos a pluralidade de olhares e também deixamos saberes valiosos de fora. A inclusão enriquece a forma como a universidade enxerga e transforma a sociedade”, afirma.
Discussão do PL mobiliza comunidades indígenas
Além da crítica acadêmica, o projeto também mobiliza reações de estudantes indígenas, que denunciam o apagamento de seus saberes e o impacto direto nos territórios. Para Xainã Pitaguary, estudante de Direito da UFSM, comunicador indígena e um dos coordenadores gerais do Diretório Central dos Estudantes (DCE), o PL representa a oposição entre o modelo extrativista e a relação espiritual e ancestral dos povos indígenas com a Terra. “O PL da Devastação representa uma profunda violência epistêmica e territorial, porque foi construído sem ouvir nós, sem reconhecer que a terra tem espírito, que o rio tem dono, que a floresta tem voz”, aponta.
O estudante, natural da comunidade indígena cearense Pitaguary, ainda reflete sobre a precarização dos mecanismos de proteção ambiental. Segundo ele, o PL aprofunda um cenário recorrente de descaso com o meio ambiente. “Licenciamento ambiental, com todos os problemas que tem hoje, ainda era uma barreira mínima. Agora estão desmontando até isso”, argumenta.
Ao reforçar as críticas de Josita e Cláudia sobre a falta de diálogo entre ciência e política, Xainã amplia a discussão ao destacar a responsabilidade das universidades na defesa dos territórios e saberes ancestrais. “As universidades precisam ser trincheiras éticas, defensoras da vida e do conhecimento. Hoje, defender que esse projeto é inconstitucional é defender um projeto de país. E a universidade precisa estar do lado da terra e de quem cuida dela”, diz o estudante.
Xainã ainda enfatiza que povos originários e periféricos são primeiros a enfrentar as consequências da crise ambiental e alerta que:
Educação como um caminho de transformação
Na UFSM, tanto Josita quanto Cláudia lideram iniciativas que buscam a divulgação dos conhecimentos produzidos no âmbito acadêmico por meio de atividades extensionistas — ações que fortalecem laços e trocas entre as universidades e a população em geral.
Tutorado por Cláudia, o PET Educom Clima realizou, ao longo de 2025, ações voltadas à educação ambiental e climática. O grupo promoveu oficinas em escolas da região, desenvolvendo materiais que integram comunicação, educação e conhecimento científico sobre o meio ambiente.
Uma das metas em desenvolvimento é tornar a educação climática e ambiental uma disciplina regulamentada na legislação local. Para isso, o grupo formalizou reuniões com o Centro de Educação e Cooperação Socioambiental. “Estamos em discussão para inserir, cada vez mais, essa pauta no currículo de ensino das escolas da rede pública municipal”, relata a professora.
O PET também atua em parceria com o curso de Licenciatura Intercultural Indígena da UFSM, buscando visibilizar os conhecimentos tradicionais dessas comunidades. “Nossa relação com o meio ambiente é muito diferente da indígena. Nossa cultura é extrativista, enquanto eles priorizam a preservação”, compara Cláudia.
Coordenado por Josita, o projeto de extensão Educa Floresta promove visitas a escolas e ações de popularização da engenharia florestal. O grupo produz cartilhas sobre a fauna e flora brasileira, abordando a importância do uso sustentável dos recursos naturais. “A ideia é desmistificar que a floresta deva ser intocada. Podemos usufruir dela, sim, mas com equilíbrio e responsabilidade”, elucida.
Do estudo à proposta
Na disciplina de Política e Legislação Ambiental, Josita promove oficinas em que os estudantes analisam e propõem melhorias às normas ambientais vigentes. As sugestões são publicadas no Portal da Cidadania, onde podem receber votos e, se atingirem aproximadamente 20 mil apoios, são encaminhadas ao Senado. “Neste ano, desenvolvemos oito propostas. Mas sem engajamento popular, elas não avançam. A falta de divulgação e de conhecimento da população sobre o portal é um grande entrave”, comenta Josita.
Para ela, a atuação da universidade na construção de leis é fundamental. “Refletimos sobre a legislação com um olhar técnico e crítico. Muitas vezes, quem propõe e vota nessas leis não têm formação na área. Por isso, a participação da academia é cada vez mais necessária”, defende.
Cláudia complementa: “As universidades públicas têm um papel central no letramento da sociedade. Precisamos sair do campus e garantir o direito à informação e à educação. Só assim as pessoas entenderão o valor da ciência”.
Câmara dos Deputados deve votar o PL nesta semana
A tramitação do projeto é antiga. O texto original foi submetido à Câmara dos Deputados em junho de 2004, antes numerado 3729/2004. No entanto, por diversas vezes, o documento retornou ao Senado para mudanças da proposta. O projeto voltou a ser discutido com prioridade em 2021, agora numerado 2159/2021.
Em maio de 2025, a Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado aprovou o projeto em votação simbólica. Alguns dias depois, em reunião conjunta com o CMA, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) confirmou o avanço do texto. Com essa última aprovação, o projeto foi novamente encaminhado à Câmara dos Deputados, que pretende discutir a pauta ainda nesta semana.
Caso seja aprovado na Câmara, o texto segue para sanção do presidente da República, que pode aprová-lo integralmente, vetar trechos ou vetar totalmente. Após isso, o Congresso ainda pode manter ou derrubar eventuais vetos presidenciais. Se sancionado, o projeto pode ser questionado no Supremo Tribunal Federal por inconstitucionalidade, o que abriria espaço para suspensão parcial ou total da nova lei. Caso o PL seja rejeitado na Câmara dos Deputados, ele é arquivado e não segue para sanção presidencial.
As atualizações sobre o andamento do PL podem ser acompanhadas no site oficial da Câmara dos Deputados.
Texto e arte gráfica: Pedro Moro, estudante de Jornalismo e bolsista da Agência de Notícias
Fotos: Gabriela Menezes/Arquivo PET Educom Clima/
Edição: Maurício Dias