Você se lembra do que estava fazendo há um ano atrás, quando o Rio Grande do Sul enfrentava a maior catástrofe climática desde 1941? As chuvas começaram no dia 27 de abril, ganharam força no dia 29 e assolaram o estado durante todo o mês de maio, em forma de enchentes e deslizamentos de terra. Segundo dados da Agência Gov, as inundações causaram danos em 484 dos 497 municípios gaúchos. O Rio Guaíba atingiu a marca de 5,37 metros acima do nível normal em Porto Alegre — 61 centímetros acima da marca da enchente histórica de 1941. Foram 184 vítimas fatais, além de 806 feridos e 25 pessoas até hoje desaparecidas.
Antes do pico registrado na capital gaúcha, Santa Maria foi a cidade com o maior volume de chuva no mundo no dia 1º de maio, com cerca de 214 mm, de acordo com dados do site meteorológico Ogimet. Na UFSM, esse dado já era sentido na véspera: no início da tarde de 30 de abril, diversos locais do campus foram tomados pela água. No mesmo dia, as atividades acadêmicas foram suspensas e só retornaram em 20 de maio, focadas em ações de acolhimento e sem a aplicação de provas e trabalhos.
A Subdivisão de Comunicação preparou uma série de reportagens intitulada #CTnaReconstrução, na qual você vai relembrar ou conhecer os projetos, servidores e estudantes que atuaram na linha de frente, seja com iniciativas de apoio imediato à população, seja com projetos de recuperação e prevenção a médio e longo prazo de áreas atingidas pela tragédia climática no RS. Na segunda reportagem, destacamos dois projetos emergenciais que fizeram a diferença na reconstrução das casas dos atingidos.
Construção de móveis
Foi durante a suspensão das atividades que uma ideia veio ao professor Rene Quispe Rodriguez, do Departamento de Engenharia Mecânica da UFSM. Percebendo a mobilização de pessoas em diferentes cidades e universidades diante dos estragos causados pelas enchentes, o docente viu o exemplo de uma instituição que fabricava rodos para auxiliar na limpeza das casas atingidas e pensou que poderia fazer algo semelhante em Santa Maria. Acreditava que, com os recursos disponíveis, seria possível projetar no computador um modelo de rodo em madeira e contribuir de forma prática com a recuperação das áreas afetadas. A partir dessa ideia, tomou forma o projeto Móveis Solidários.
No início, em meio ao caos, o professor relata que foi difícil encontrar apoio imediato. “Pensei: ‘Não estou sozinho, vou conversar com meus alunos’”, foi então que Marina Senhor Sattler, Felipe Augusto Alves e Luis Fernando Mealho, estudantes que haviam realizado a disciplina de Mecânica dos Sólidos com o docente, abraçaram a proposta e começaram a mobilizar outros colegas.
O espaço utilizado para as atividades foi o Laboratório de Tecnologia Mecânica e Aeroespacial (Numae), cedido pelos professores responsáveis pelo local, que dispunha da estrutura necessária para a produção dos rodos e virou ponto de encontro para os voluntários. Embora o laboratório seja voltado principalmente para o trabalho com aço, a equipe percebeu que o espaço poderia ter outra função temporária. “A gente quis aproveitar [o espaço] para fazer alguma coisa por todo mundo”, conta Marina Sattler.
A ideia era produzir os rodos em madeira, por ser mais fácil de manipular do que o aço. A dificuldade inicial, no entanto, foi a escassez de materiais. As primeiras tentativas de conseguir doações foram insuficientes. O professor Rene relata que chegou a negociar com uma madeireira, que ofereceu preços reduzidos, mas a burocracia para formalizar doações ou tramitar a compra tornaria inviável o atendimento à necessidade da população no tempo necessário. “A enchente estava acontecendo, as casas estavam sujas, era uma coisa imediata”, explica. Diante da urgência, Rene decidiu comprar, com recursos próprios, a madeira necessária para dar início ao trabalho. Assim que o material chegou ao Numae, os alunos se mobilizaram para começar a produção. As ferramentas, também precisaram ser improvisadas. Furadeiras, parafusadeiras e lixadeiras vieram das casas dos próprios estudantes e professores.
No decorrer da produção, surgiram novas necessidades. Além das ferramentas de corte e montagem, a equipe percebeu que seria inviável lixar manualmente todos os rodos. A preocupação com a segurança também foi prioridade. “A gente se preocupou para não mandar um rodo todo áspero para a pessoa utilizar e acabar se machucando. Então, lixávamos, passávamos verniz — ficava bonito, mas, principalmente, seguro e mais durável”, conta Felipe Augusto.
Aos poucos, a experiência adquirida na confecção dos rodos permitiu que o grupo aprimorasse o processo. Os primeiros protótipos eram pesados e difíceis de manusear. “No começo ele era muito fraco e muito pesado. A pessoa não conseguiria utilizar com facilidade”, recorda Rene. Aplicando conceitos das aulas, os estudantes e professores ajustaram o modelo, e otimizaram a sua estrutura.
As melhorias incluíram a troca de pregos por parafusos, a redução de peças desnecessárias e o reforço em pontos estratégicos. Três protótipos diferentes foram produzidos até que a equipe chegasse a um modelo resistente, seguro e rápido de fabricar. No total, o grupo produziu 25 rodos, que foram distribuídos para moradores de áreas atingidas. A mobilização, que começou de forma improvisada, mostrou a importância da união e da iniciativa diante de situações de emergência.



Da oficina às mãos de quem precisa
Com os rodos prontos, o grupo precisou definir para onde encaminhar as doações. A prioridade foi atender as localidades mais afetadas, e Nova Palma foi o principal destino. Moradores da cidade entraram em contato diretamente com o professor Rene relatando a situação. “Falaram da necessidade que tinham lá — a cidade tinha sofrido muito. Muita casa suja. Os bombeiros tinham acabado de se mudar de local e estavam com muita demanda”, explica Rene.
Para fazer os rodos chegarem às regiões atingidas, a equipe também enfrentou dificuldades logísticas. Foi quando a mobilização chamou a atenção da direção do CT e da Pró-Reitoria de Extensão (PRE), que passaram a apoiar formalmente a ação. Com o apoio institucional, o grupo conseguiu acesso a veículos da UFSM para o transporte das doações. Em uma das remessas, dois estudantes, Felipe Augusto e Marcos, organizaram a carga e seguiram com uma caminhonete até Nova Palma.
A situação encontrada na cidade foi de emergência e improviso. Os bombeiros, que haviam perdido o prédio recém-construído e equipamentos novos adquiridos, atuavam provisoriamente em outro espaço. “A gente chegou lá no Corpo de Bombeiros. Haviam recém terminado o prédio, comprado equipamentos novos — barcos, cintos, tudo novo — e perderam tudo”, relata Felipe Augusto. Os rodos foram entregues aos bombeiros, que se encarregaram de distribuir o material às famílias mais afetadas, já que conheciam melhor as áreas que mais precisavam.

Dos rodos às camas
Com mais apoio institucional, foi possível o fornecimento de madeira sem burocracia por parte do CT e da PRE. Depois de produzir os rodos, o grupo, coordenado pelo professor Rene Quispe Rodriguez, decidiu seguir com o trabalho e ampliar a iniciativa.
A ideia de produzir camas surgiu de forma natural, como uma continuidade ao trabalho dos rodos. “Pensamos em outras possibilidades, como estantes ou armários, mas a cama era a prioridade. É a primeira coisa que a pessoa precisa quando perde tudo: um lugar para dormir”, conta Rene. Assim como no projeto anterior, os alunos analisaram diferentes ideias e testaram protótipos até chegar a um modelo viável, seguro e resistente.
A experiência adquirida na produção dos rodos ajudou na adaptação dos materiais disponíveis. O grupo passou a utilizar caibros — peças de madeira no formato retangular — para estruturar os pés das camas, substituindo soluções anteriores menos estáveis. O objetivo foi garantir durabilidade e segurança, considerando que muitas famílias, incluindo crianças, precisariam utilizar os móveis por tempo indefinido.
A iniciativa cresceu rapidamente, com a captação de mais materiais disponíveis para fabricação dos móveis. Os estudantes se organizaram em equipes para otimizar a produção: enquanto alguns acompanhavam os projetos no computador, outros atuavam na montagem, no lixamento e no acabamento das peças. Com o tempo, o espaço do Numae, tradicionalmente voltado para projetos em aço, ganhou uma linha de produção improvisada, incluindo uma serra construída pelos próprios alunos e mesas de corte adaptadas para agilizar o trabalho.
Além da contribuição prática para as comunidades afetadas, a atividade também serviu como oportunidade de integração entre estudantes e professores. “Já éramos amigos, e isso acabou nos aproximando ainda mais. Foi muito gratificante aplicar o que aprendemos em sala de aula em algo que realmente pudesse ajudar a comunidade”, destaca Luis Fernando.
Os estudantes também perceberam na atividade uma oportunidade de colocar em prática os conteúdos vistos em sala de aula. “A gente pode retribuir, fazer o bem e ainda colocar a teoria que a gente vê em aula em prática para ajudar”, comenta Luis Fernando, natural de Rio Pardo, onde também houve estragos pelas inundações. Para Marina, a motivação foi além da sala de aula. “A gente viu de perto todos os efeitos e achou uma ótima maneira de contribuir, de pelo menos tentar ajudar um pouco as pessoas que perderam praticamente tudo”, conta.


Projeto em suspenso

A logística para a entrega ágil das camas, maiores e mais pesadas que os rodos, também exigiu soluções criativas. Apesar do apoio da universidade e da visibilidade na mídia local, o ritmo do processo burocrático ainda dificultava a agilidade nas ações do projeto. Para contornar o problema, o estudante Felipe conseguiu organizar parte das entregas por conta própria. Por meio de contato com o pai de Felipe, a Campal — cooperativa de Nova Palma — disponibilizou um caminhão para levar as camas até a cidade. O material foi descarregado no quartel dos Bombeiros, que novamente ficaram responsáveis pela distribuição às famílias afetadas. “Eles mandaram foto para a gente mostrando que tinha chegado tudo certinho”, lembra Rene.
Mesmo com os desafios superados, a equipe de estudantes e professores da UFSM precisou interromper temporariamente a produção de camas de madeira destinadas às vítimas da enchente na região. “Conseguimos ficar ali por um tempo, falei com os professores e nos autorizaram. Mas depois de alguns dias, com o retorno total das aulas, tivemos que desocupar”, explicou Rene. Segundo o professor, o principal obstáculo para a continuidade do trabalho foi a falta de um espaço adequado. Como o Numae não é um ambiente próprio para trabalho com madeira, o uso do laboratório foi provisório.
A equipe então se transferiu para uma área próxima à Fábrica do CT, mas a estrutura também não estava disponível por muito tempo. “Quando conseguíamos um lugar, a gente seguia o trabalho. Mas foram duas mudanças e, na última, o novo espaço logo entrou em reforma, e tivemos que parar”, relata.
O professor conta que, apesar das dificuldades logísticas e do caráter emergencial da ação, o projeto poderia ter ido ainda mais longe. “Temos material suficiente para fabricar mais umas 15 camas. Parafusos, madeira, mão de obra — está tudo pronto”. O grupo segue disposto a reativar o projeto e a retomar a produção caso surja uma nova necessidade. “Deus queira que não, mas se acontecer outra emergência, agora a gente está preparado para atender”, afirma Rene.
Arrecadação de utensílios domésticos
Em meio à urgência e à vontade de ajudar, estudantes e professores do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSM também procuraram soluções criativas. Eles criaram o Nossa CAUsa, um projeto que se tornou referência pela mobilização em torno da arrecadação de utensílios domésticos de cozinha para famílias e estudantes afetados pelas enchentes na região de Santa Maria.
O nome, um trocadilho carinhoso com a sigla do curso de Arquitetura e Urbanismo e a palavra causa, surgiu nas primeiras reuniões. “Queríamos um nome que representasse o nosso envolvimento, e que se conectasse com quem acompanha o nosso perfil. Nossa CAUsa traduz esse sentimento de pertencimento e cuidado”, conta Anthonio Saraiva, acadêmico e participante ativo da iniciativa. A escolha também dialoga com o histórico do curso, que tradicionalmente se engaja em ações comunitárias e projetos de extensão voltados para o desenvolvimento social e urbano.

Organização rápida e rede de apoio
A primeira reunião do projeto aconteceu no dia 8 de maio, quando os voluntários definiram o funcionamento e a logística de arrecadação, os critérios de composição dos kits, a escolha dos pontos de coleta e a mobilização de parceiros externos. A preocupação, desde o início, foi oferecer não apenas utensílios básicos de cozinha, mas também pequenos gestos de afeto que pudessem transmitir acolhimento, igualmente necessários.
No dia 13 de maio, as doações começaram a ser recebidas no átrio do prédio 9F do campus sede da UFSM, onde fica o curso de Arquitetura e Urbanismo, e em pontos organizados por apoiadores espalhados pela cidade. Segundo a professora Leonora Romano, o átrio se tornou um verdadeiro centro de encontro e solidariedade. “Era bonito ver pessoas chegando com caixas, sacolas, às vezes só com um prato ou uma caneca, mas sempre com a vontade de ajudar. Não importava a quantidade, tudo somava para fazer a diferença”, relembra.








Solidariedade com cultura e identidade
Além dos itens básicos, muitas doações incluíram pequenos detalhes que tornavam os kits mais acolhedores, como jogos de xícaras ou conjuntos de talheres bem conservados. A montagem dos kits seguiu uma linha de produção organizada, com mesas separadas para pratos, copos e talheres, o que garantiu agilidade no processo. “Chegou um momento em que a quantidade era tão grande que precisávamos organizar tudo como se fosse uma fábrica solidária”, brinca Leonora.
Entre os kits montados, alguns continham conjuntos de chimarrão, com cuia, bomba e erva-mate. Os itens típicos da cultura gaúcha se tornaram símbolos da campanha, não apenas pelo valor cultural, mas pela mensagem que carregavam. “O chimarrão tem um valor simbólico muito forte para a gente. Incluir isso nos kits era também uma forma de dizer: você ainda pertence, você ainda faz parte daqui”, destaca Anthonio.
Prioridade às cidades mais atingidas
Os kits foram destinados prioritariamente para famílias e estudantes de municípios da Quarta Colônia, como Silveira Martins, Agudo, Faxinal do Soturno, entre outros da região próxima a Santa Maria. A definição dos destinos foi feita com base em contatos locais e informações de voluntários da UFSM e prefeituras, que apontaram onde havia maior número de famílias carentes de utensílios domésticos.
A distribuição das doações contou com o apoio logístico do Sesc Mesa Brasil, que auxiliou no transporte e na entrega dos kits em comunidades mais distantes e áreas de difícil acesso. Além disso, o Rotary de Santa Maria foi parceiro essencial na triagem de famílias beneficiadas e na organização da entrega em algumas cidades da região. “Era fundamental que nossa ajuda chegasse até lá, porque a logística era difícil e nem sempre as grandes campanhas conseguiam alcançar essas localidades. Sabíamos que nosso papel era justamente chegar onde outros não conseguiam”, explica Leonora.

As ações relatadas acima são exemplos que reforçam o papel social da Universidade pública enquanto espaço de formação técnica e científica mas, acima de tudo, humana. Em momentos de crise, projetos como esses mostram que o conhecimento produzido dentro da academia pode e deve ser colocado a serviço da sociedade.
Esta é a segunda reportagem da série #CTnaReconstrução. A primeira abordou as principais ações dos grupos e projetos do CT que ampararam Santa Maria e região no auge das inundações. Acompanhe as próximas reportagens ao longo do mês de maio no site do CT!
Texto por Marina dos Santos, acadêmica de jornalismo, com supervisão da Subdivisão de Comunicação do CT/UFSM.
Fotos por Móveis Sólidarios e Nossa CAUsa.
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